Seja no Brasil, em Abu Ghraib ou Guantánamo, a prática da tortura se manterá na medida em que se assegurar a impunidade de seus agentes. Como já disse o então relator especial das Nações Unidas, Nigel Rodley, a tortura é um “crime de oportunidade”.
Na última semana, a soldada norte-americana Lynndie England foi condenada a três anos de prisão. Sua fotografia, arrastando com uma corda um prisioneiro nu iraquiano, foi símbolo maior dos maus tratos e das torturas praticados na prisão de Abu Ghraib.
Também nas últimas semanas começou o processo de esvaziamento da prisão de Guantánamo. Dos 660 suspeitos confinados na base naval norte-americana em Cuba, restam ainda 500 suspeitos, que serão extraditados ao respectivo país de origem. O processo de desmantelamento de Guantánamo responde a uma decisão proferida pela Suprema Corte norte-americana, em junho, que assegurou aos detidos o direito de recorrer às Cortes norte-americanas a respeito da ilegalidade da prisão.
Como combater a tortura? Quais os mecanismos e os instrumentos existentes? Qual têm sido sua eficácia?
No plano internacional, a tortura foi um dos primeiros atos a serem considerados, por sua gravidade, crime contra a ordem internacional. Daí a adoção da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, pelas Nações Unidas, em 28 de setembro de 1984, ratificada hoje por 132 Estados-partes. Dentre os instrumentos internacionais de direitos humanos, contudo, é a Convenção que conta com a menor adesão dos Estados-partes.
Não há qualquer possibilidade de derrogar a proibição da tortura. A Convenção é enfática ao determinar que nenhuma circunstância excepcional, seja qual for (ameaça, estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública), pode ser invocada como justificativa para a tortura.
Na experiência brasileira, embora o Brasil tenha ratificado a Convenção contra a Tortura em 1989, apenas em 1997 houve a aprovação da lei que define e pune o crime de tortura.
A Constituição de 1988 foi a primeira a consagrar que a tortura deve ser considerada crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, por ele respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-lo, se omitirem. Em 1997, foi aprovada a Lei 9.455, que tipifica o crime de tortura (como tipo penal autônomo e específico), tendo em vista que, até então, a tortura era punida sob a forma de lesão corporal ou constrangimento ilegal, em flagrante afronta aos comandos constitucionais e internacionais.
Todavia, passados mais de oito anos da adoção da Lei 9.455/97, o número de agentes condenados pela prática da tortura, no país inteiro, não chega sequer a 20. Na maioria significativa de casos, ainda se recorre aos tipos penais de lesão corporal ou constrangimento ilegal para punir a tortura (como no passado, quando inexistia a lei), em detrimento da efetiva aplicação da Lei 9.455/97.
Pesquisa realizada pelo Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça aponta que, em 5 anos de vigência da lei, foram apresentadas 524 denúncias de tortura, sendo que, deste universo, somente 15 foram a julgamento e apenas 9 casos resultaram em condenação. Os números tão reduzidos refletem um verdadeiro sistema de filtragens sucessivas, que envolvem a seletividade operada pelos aparatos da segurança e da justiça, ao que se acresce o desafio de encorajar a apresentação de denúncias da prática de tortura pelas suas vítimas.
Diversamente da prática da tortura perpetrada durante o regime militar, que era orientada por critérios político-ideológicos, a prática da tortura, na era da democratização, orienta-se fundamentalmente por critérios econômico-sociais, com forte componente étnico-racial, na medida em que suas vítimas preferenciais, conforme relatórios das Ouvidoriais de Polícia, são os jovens, negros e pobres.
Seja no Brasil, Abu Ghraib ou Guantánamo, a prática da tortura se manterá na medida em que se assegurar a impunidade de seus agentes. Como já disse o então relator especial da ONU, Nigel Rodley, a tortura é um “crime de oportunidade”, que pressupõe a certeza da impunidade. O combate ao crime de tortura exige a adoção pelo Estado de medidas preventivas e repressivas, sob o atento monitoramento da sociedade civil. De um lado, é necessária a criação e manutenção de mecanismos que eliminem a “oportunidade” de torturar, garantindo a transparência do sistema prisional-penitenciário. Por outro lado, a luta contra a tortura impõe o fim da cultura de impunidade, demandando do Estado o rigor no dever de investigar, processar e punir os seus perpetradores, bem como de reparar a violação.
Enquanto persistir a tortura em dependência policial ou prisional e enquanto se tolerar que os condenados a pena privativa de liberdade devam ter uma pena adicional por meio de tortura, maus tratos e condições degradantes, os padrões democráticos e civilizatórios restarão fortemente comprometidos. Isto porque a tortura revela, sobretudo, a perversidade do Estado que, de guardião da legalidade e de direitos, converte-se em atroz violador da legalidade, ao afrontar o direito fundamental à integridade física e mental de toda e qualquer pessoa, lançando-se no marco da delinqüência, no brutal exercício da violência, que avilta a consciência ética contemporânea.
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