E aí vale qualquer um, desde que reforce a idéia de que o ato de Morales precisa de uma resposta "forte", "à altura da crise", "que defenda o Brasil", e por aí vai. No fundo, o que se quer passar é a idéia de que o governo é fraco diante da "crise" e que o presidente Lula tem culpa no cartório porque foi o grande cabo eleitoral do líder boliviano. Portanto, "quem pariu Mateus que o embale", chegou a afirmar um editorialista da Folha de S. Paulo.

Tivessem acompanhado minimamente o que vem acontecendo no país ao lado e a surpresa de formadores de opinião e jornalistas não seria tanta. A decisão de Morales é, nada mais nada menos, do que o cumprimento de uma promessa de campanha. Então, por que lideranças empresariais e políticas, vocalizadas pela mídia, estão irritadas com o líder boliviano? Certamente não é porque ele está sendo coerente ao cumprir uma das promessas que o levou à vitória.

A hegemonia neoliberal não admite contra-ponto - não vou dizer crítica porque essa é permitida como "valor fundamental da democracia" para justificar o próprio modelo. Ao trilhar o caminho da nacionalização, Morales fez dois movimentos, ambos corajosos: colocou em xeque o pensamento único vigente no continente, à exceção de Cuba e Venezuela, e reanimou o sentimento da nacionalidade boliviana que há décadas presenciava a entrega do país aos interesses estrangeiros.

O Estado boliviano tem soberania para decidir sobre qual é o melhor modelo para o seu desenvolvimento. Se isto será eficaz, é outra história. Mas, pelo menos, jogou um pouco de luz na penumbra de um modelo econômico já desgastado e que trouxe graves conseqüências sociais aos povos do continente nos últimos 25 anos. Confronto, portanto, não é a melhor palavra - nesse caso nem interessaria à própria Bolívia que depende da exportação de seu gás para o Brasil.

O que está acontecendo, de fato, na Bolívia e, por extensão, em boa parte do continente latino-americano, fica mais embaixo - ou mais em cima, depende do ângulo de cada um. Os movimentos sociais e indígenas daquele país têm tradição de colocar presidentes no olho da rua, mas até então não haviam conseguido substituí-los adequadamente. A nacionalização do gás e do petróleo vem de longa data, embora a recente decisão admita, inclusive, o pagamento dos investimentos, caso a empresa estrangeira não aceite as novas regras. Acontece que em determinados períodos da história, alguns presidentes suportaram a pressão e levaram adiante a privatização dos bens naturais da Bolívia.

Nesses momentos de descenso, os movimentos sociais e indígenas não foram capazes de interditar a posição em favor do mercado. Desde 1995, porém, retomaram a iniciativa e, finalmente, elegeram Evo Morales, o primeiro indígena a se tornar presidente. Isto em um país cuja população é indígena em sua grande maioria.

Portanto, para discutir a validade ou não da decisão do governo boliviano precisamos deixar de olhar para o nosso próprio umbigo, quanto vamos perder com isso, se o preço do gás vai aumentar ou não. Ora, ninguém no Brasil vai perguntar quanto deixamos de pagar a mais pelo gás boliviano que chegou às nossas indústrias e residências durante esses anos todos? No mínimo, alguém fez um bom negócio e desconfio que a Petrobras tenha sua mão nisso. Isto já poderia servir de consolo para os que hoje se alvoroçam em assumir o papel de críticos da medida estatizante. Talvez prefiram, por exemplo, que nossas tropas invadam a Bolívia em busca de uma soberania que nós, brasileiros, em muitos momentos da história, não soubemos afirmar.

Fonte
Adital (Brasil)
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