Presidente Andrzej Duda ajoelha-se diante da bandeira militar ao assumir o posto de comandante-em-chefe das forças armadas da Polônia.

Primeiro vieram levar os socialistas, eu não disse nada—
Porque eu não era socialista.
Depois vieram levar os sindicalistas, eu não disse nada—
Porque não era sindicalista.
Depois vieram levar os judeus, eu não disse nada—
Porque não era judeu.
Depois vieram me levar—e não sobrou ninguém para falar por mim
.”
Pastor Martin Niemöller, teólogo alemão antinazista

Embora possa parecer exagero, a situação descrita no poema de Niemöller começa a tomar forma na Polônia. Um país considerado por muitos anos um símbolo da luta contra o totalitarismo e pioneiro das reformas democráticas na Europa Central e Oriental vem se transformando rapidamente em satrapia tirânica onde as liberdades civis estão cerceadas e a repressão é aplicada a pessoas de pontos de vista ideológicos diferentes do discurso político dominante.

Na manhã de 18 de maio de 2016, agentes da Agência de Segurança Interna Polonesa (ABW) [1] vasculharam os apartamentos dos membros da liderança nacional do Partido Zmiana (Mudança), exigindo a entrega de discos rígidos, pen drives, documentos, etc. A busca ocorreu simultaneamente em três cidades diferentes, e, em alguns casos (como em nosso escritório de Varsóvia), com graves violações dos procedimentos legais. Além de apreenderem computadores, telefones e discos rígidos, os agentes da ABW levaram todos os nossos livros, folhetos, cartazes, o sistema de som que usamos durante um protesto, faixas, bandeiras de nosso partido e até mesmo as nacionais da Polônia — para impedir e dificultar futuras ações e protestos políticos. Alguns membros de nosso partido que não cederam àquelas atividades ilegais da Agência de Segurança Interna foram intimidados.

Esse tipo de ação é uma forma óbvia de repressão política contra aqueles cujo ponto-de-vista sobre as políticas externas, internas e socioeconômicas da Polônia difere daquele das autoridades polonesas neoconservadoras e pró-OTAN.

O líder do Zmiana, Mateusz Piskorski, as organizações afiliadas e os grupos independentes estavam agindo em conformidade com a lei polonesa apesar do assédio das instituições do Estado, inclusive a demora burocrática para registrar o partido. A ação da ABW foi uma significativa transgressão da lei e da ordem, não aceitável em um estado democrático que proclama o respeito à liberdade de expressão.

Mateusz Piskorski é um dos ativistas anti-OTAN mais importantes da Polônia, especializado em política e cofundador do brainstorming polonês, o Centro Europeu de Análise Geopolítica. Foi membro do parlamento nacional de 2005-2007 e durante muitos anos pronunciou-se a favor da cooperação continental europeia, contra a OTAN e a política estadunidense para a Europa e o Oriente Médio.

Mateusz Piskorski está preso há três meses em regime de prisão preventiva, acusado de “espionar a favor de país estrangeiro”, e vários meios de comunicação vem divulgando histericamente “informes não-confirmados” de que ele teria atuado a mando dos serviços de inteligência de Rússia, China “e/ou” Iraque. Não constam acusações específicas, todo o caso está sendo conduzido em sigilo, e isto impede, portanto, que qualquer pessoa a ele ligada prepare sua defesa. Ao contrário, os meios de comunicação controlados pelo governo tem exibido um espetáculo de ódio e calúnia, pondo em circulação uma especulação irracional tanto sobre o detido quanto sobre os chamados “agentes de influência” — termo que de fato abrange qualquer pessoa que proclame pontos-de-vista diferentes dos determinados pelas autoridades polonesas.

A ação coordenada em larga escala contra o partido político Zmiana acontece nos calcanhares de uma situação política cada vez mais tensa na Polônia. Há várias semanas, ativistas do Partido Comunista da Polônia e a União dos Trabalhadores Patriotas de Grunwald (ambas associações são absolutamente legais) foram sentenciados a “liberdade restrita”, inclusive a serviços comunitários, ao pagamento de multas e à proibição de viajar, por “promoverem o totalitarismo”. Na sequência de tais eventos, e apenas dois dias antes de ser preso, Piskorski alertara que o governo tentaria “pacificar” as associações da oposição e os prováveis participantes da cimeira da OTAN a realizar-se em Varsóvia nos dias 8 e 9 de julho.

Citamos este texto de Mateusz Piskorski, que se tornou profético:

“As previsões para a vindoura cimeira da OTAN em julho começam a indicar claramente que, hoje, o objetivo do Pacto do Atlântico é antes e sobretudo impedir a emergência de movimentos sociais que exijam a libertação da Europa da tutela dos Estados Unidos”. Como se pode ver, a inadvertida menção das palavras de um dos comandantes superiores do exército polonês mostra que decisões podemos esperar neste verão [hemisfério norte. n. do t.]. São decisões que tanto minam toda a soberania de Varsóvia no campo da política externa quanto indiciam o fato de que, doravante, a OTAN passará a ser uma força policial sempre de prontidão para tomar parte na pacificação de eventuais protestos sociais ou para intervir nas políticas internas polonesas.

A real intenção das últimas decisões do pacto foram reveladas com honestidade e franqueza militares pelo General de Brigada Krzysztof Krol, comandante do Corpo Multinacional Nordeste. O objeto de consideração era o conceito da chamada força ponta de lança da OTAN, advogada durante anos pelos estadunidenses e tão esperada pelos políticos poloneses do governo passado e deste. Nas palavras do general: “A Força Conjunta de Reação Imediata deve lidar com as situações do Artigo 4 [do Tratado do Atlântico Norte], e é essa também nossa intenção.” O Artigo 4 fala da cooperação e consulta entre Estados-membros não abrangidos no Artigo 5, que trata de membros sob ataque armado, mas, sim, daqueles que estejam experimentando sentimentos subjetivos de ameaças paramilitares. A que tipo de situações estamos nos referindo aqui? General Krol não deixa dúvidas: “O plano foi desenvolvido para reagir a ameaças híbridas em nossa área de operação. Nossos planos são escalonáveis segundo a situação,” declarou ele ao The Financial Times.

O conceito de guerra híbrida ou ações híbridas brotou como definição das atividades da Rússia após a revolução ucraniana de 2014, mas o que é interessante é que, até hoje, ainda não logrou uma interpretação acadêmica que não seja ambigua, e que sua amplitude venha sendo definida de diferentes maneiras por vários autores e especialistas. No The Financial Times, entretanto, lemos que a força ponta de lança da OTAN pode agir em caso de desestabilização da situação interna deflagrada, por exemplo, por protestos públicos.

O que significa isto na prática? Qualquer distúrbio interno pode ser tratado e apresentado por defensores do “ponta-de-lança”, sejam nacionais ou estadunidenses, como parte das atividades vagamente definidas como guerra híbrida. Isto pode gerar uma situação em que protestos contra os efeitos da Parceria PTCI [2] apoiada pelo Estado polonês possam ser tratados como “atividades híbridas”. Os protestos dos poloneses contra os crimes cometidos por tropas estadunidenses aquarteladas na Polônia também poderiam ser considerados “guerra híbrida”.

A imaginação doentia de Antoni Macierewicz poderia sugerir dezenas de teorias diferentes. Afinal, o atual Ministro da Defesa está tão divorciado do senso comum que é capaz de acreditar que Radoslaw Sikorski, outro militarista pró-Estados Unidos, esteja a serviço de Moscou. A inquietação social, os protestos, as greves, as tentativas de criar recursos de informação que sejam independentes do sistema e exijam transparência nas políticas de defesa e relações exteriores das autoridades polonesas — cada caso destes pode tornar-se pretexto para motivar uma ou outra manobra dos consultores da OTAN (principalmente dos Estados Unidos) para prestar “auxílio fraterno” às unidades polonesas e aos serviços a elas subordinados.

Em tal situação, só resta esperar que oficiais e funcionários não queiram entrar em “relação oral” (a expressão pitoresca de Sikorski) com seus senhores estadunidenses, que se lembrem da dignidade da farda polonesa e mandem de volta para o outro lado do Oceano Atlântico todos os representantes dos interesses estrangeiros “preocupados com nossa segurança”.

Enquanto isso, só nos cabe uma coisa: protestar a plenos pulmões e bloquear por todos os meios legais a realização dos planos da OTAN a serem por ela anunciados em julho em Varsóvia. Também vale a pena organizar um movimento social em prol da saída da Polônia desse pacto, como condição para que ela resgate sua elementar soberania de Estado.”

Secretário-Geral da OTAN Jens Stoltenberg na Universidade de Varsóvia (31 de maio de 2016).

Assim, o que está acontecendo de fato na Polônia, e que ligação teriam os atuais acontecimentos com preparativos que possam anteceder uma guerra?

Primeiro, nossa maior preocupação deve ser destacar o fato de que, em paralelo às repressões políticas inspiradas pelos círculos pró-OTAN (sem precedentes desde a queda do Muro de Berlim), existe uma enorme onda de militarização e de uma retórica russófoba pró-guerra.

As autoridades neoconservadoras polonesas não só aumentaram signitivamente os gastos militares e criaram novos tipos de forças militares e paramilitares, bem como imploraram a presença na Polônia de tropas e instalações militares dos Estados Unidos. Depois que Antoni Macierewicz (que antes fora chefe da comissão paramilitar que tentou em vão rejeitar a versão oficial do desastre de Smolensk para tentar atribuir a responsabilidade deste a Vladimir Putin) foi nomeado Ministro da Defesa, ocorreu a decisão não só de permitir a criação de uma base estadunidense de mísseis balísticos (elemento do chamado “escudo antimíssel”), bem como a de instalar seis bases militares dos Estados Unidos. Para acalmar a opinião pública nos meios de comunicação, estas foram chamadas de “armazéns de equipamento militar”.

A definição de “guerra híbrida” chegou a extremos, a tal ponto que qualquer ação diferente da linha traçada pela propaganda oficial pode ser considerada hostil em termos tanto políticos quanto militares. Assim, a proclamação de ideias contrárias à propaganda oficial é vista abertamente pelos meios de comunicação geridos pelo governo como “inspirada por serviços de inteligência estrangeiros”.

Outra questão importante é o fato de que a Polônia foi um dos poucos países na Europa a apoiar oficialmente a versão agressiva da Parceria advogada pelos Estados Unidos, o que pode ser interpretado como um envolvimento direto das autoridades polonesas na sabotagem de um projeto competitivo — a Nova Rota da Seda — operado pela China.

Como se nada disso bastasse, o presidente polonês Andrzej Duda há alguns dias promulgou uma lei igualando aos direitos do exército polonês os direitos das tropas estadunidenses aquarteladas na Polônia, que assim podem circular livremente no país sem precisar dar satisfações ao governo. Vale a pena mencionar que tais privilégios jamais existiram sequer para as tropas soviéticas outrora aquarteladas na Polônia, que eram obrigadas a permanecer nos quarteis.

No conjunto, a situação na Polônia é tensa e lembra em muitos aspectos as mudanças ocorridas na Turquia durante o governo Erdogan. Essa combinação de autoritarismo, militarismo e repressão política é necessariamente preocupante, porque é uma mistura de medidas típicas de autoridades que estão se preparando para uma guerra. A considerar as condições geopolíticas da Polônia sob qualquer perspectiva, uma guerra fadada a um fim trágico.

Tradução
José Eduardo Ribeiro Moretzsohn

[1ABW: em polonês Agencja Bezpieczeństwa Wewnętrznego [N. do T.].

[2Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimento. No original, TTIP: Transatlantic Trade and Investment Partnership [N. do T.].