Em meio ao tempo em que se espera a vinda do Menino e o nascimento do Novo que faz a história girar sobre seus gonzos, recebo uma notícia que me choca e entristece profundamente. Morreu José Paulo Moreira da Fonseca. Morreu o pintor e poeta de olhos claros e profundos, que marcou, sem dúvida, a história da cultura no Brasil e muito especialmente no Rio de Janeiro, cidade onde viveu e que amava com paixão.
Conheci José Paulo em seu atelier, no Leblon, onde passava os dias entre tintas, pincéis, telas, papel e caneta. Ora pintando, ora escrevendo, ora recebendo pessoas e amigos para longas e carinhosas conversas. O carinho e a amizade, a hospitalidade amiga e educadíssima, a cortesia antes de tudo, eram características marcantes deste homem que era nobre em tudo: no corpo, na alma e no coração.
Fui pela primeira vez para ver um quadro que meu marido e eu, ainda recentemente casados, queríamos adquirir para a casa que estávamos montando. Éramos apaixonados por suas fachadas, marinhas, portas, e queríamos uma de suas telas. Saímos com uma tela adquirida e outra dada de presente com uma amorosa dedicatória escrita na parte de trás. E uma amizade imorredoura no coração. José Paulo, com seu jeito fino, discreto e amigo de ser, havia nos conquistado para sempre.
Daí em diante, a convivência foi se fazendo, sempre profunda e mais amiga. Convivemos muito aqui no Rio, nas respectivas casas, em Petrópolis, em casa da comum amiga e inesquecível musicista Maria José Levi Carneiro, em suma, em várias ocasiões. As conversas eram daquelas para as quais hoje dificilmente se encontram parceiros e interlocutores: arte, música, poesia. E muitas, inúmeras vezes, sobre a fé comum que nos unia e a Igreja que amávamos com amor filial.
José Paulo era um homem de profunda fé. Esta fé, ele a bebeu desde o berço. Seus pais, o médico Joaquim Moreira da Fonseca e dona Dulce, eram pessoas de muita fé e compromisso eclesial. Desde cedo, em sua casa, José Paulo conviveu com padres, bispos, que ali faziam reuniões ou iam simplesmente partilhar da convivência amiga e da hospitalidade do casal Moreira da Fonseca.
José Paulo recebeu, viveu e conservou com carinho esta fé que recebeu da família e no lar. Não só a integrou como herança familiar genética, mas a assumiu com adesão pessoal, fazendo-a seu mais caro tesouro, a pérola de
grande valor que um dia encontrou.
Tão imbuído estava da fé cristã e da expressão religiosa que dela jorrava, que esta pode ser encontrada também em sua arte. Seus quadros e poemas, muitos
deles pelo menos, transmitiam a fé que ele tinha em Deus e nas pessoas. Alguns de seus poemas, até mais que seus quadros, são inclusive religiosos explicitamente falando. Falam de Deus ou invocam a Deus em primeira pessoa, tal como desde tempos imemoriais os salmistas, poetas por excelência do povo de Israel, o faziam em relação ao Deus pelo qual suas almas suspiravam qual terra seca, árida, desejando chuva.
Muitas vezes conversamos sobre a fé que nos anima, sobre o futuro da Igreja, a qual amamos como mãe. Mesmo quando o assunto era empolgante ou havia outros interlocutores mais exaltados presentes, José Paulo nunca perdia a serenidade e a paz. Transmitia - com o olhar, o falar, o ouvir, a presença, enfim - bondade e paz. E apesar de ser um homem a quem a vida não negou muitos golpes e conheceu de perto o sofrimento, nunca o vi perder essa paz, essa doçura, esse carinho no trato com as pessoas. Qualquer um que se aproximava dele podia ter certeza de que seria bem tratado, receberia atenção, dos mais humildes aos mais nobres. A todos dava o que tinha de melhor: sua inteligência, atenção, arte, sua pessoa enfim.
Como seus pais, dona Dulce e doutor Joaquim, dava um enorme valor à família. Tinha grande amor pelos filhos e netos, dos quais falava com entusiasmo e orgulho, sempre. E possuía essa virtude real da amizade. Era um bom e fiel amigo. Conosco e com outros que conhecemos, tivemos oportunidade de presenciar o exercício que fazia dessa virtude, generosa e abundantemente.
Muito culto, gostava de organizar e participar de jogos e exercícios lúdicos onde a cultura entrava em jogo: o jogo do dicionário, Máster etc. Assim como de assistir a filmes, óperas e concertos musicais no vídeo e no DVD.
Mas era, ao mesmo tempo, muito modesto. Jamais usava seu saber ou sua cultura para se impor ou sobrepor aos outros.
Há em sua arte algo que me parece metafórico neste momento em que celebramos sua páscoa definitiva para a vida que não termina. Como pintor, José Paulo ficou muito conhecido por sua mania de pintar portas e janelas. Tinha vários quadros onde apareciam portas coloniais, bonitas, janelas encimadas de telhas, fachadas de casarões antigos. E todas elas quase sempre davam sobre uma paisagem marinha, ou deixavam entrever um verde, uma saída para algum horizonte infinito e inalcançável...
O símbolo da porta me faz lembrar a passagem que ele agora, em pessoa, realizou. Passou pela porta estreita, como diz o Evangelho, e entrou para sempre em uma vida mais plena, onde a comunhão e o amor são para sempre. Certamente está em paz e junto de Deus, junto d’Aquele que tanto amou durante a vida e que, certamente, o acolheu de braços abertos.
Enquanto isso, nós que aqui continuamos a peregrinação em direção à Luz que vem chegando no Natal, e que já chegamos à idade na qual nos sentimos sobreviventes, olhamos para cima e nossas testemunhas que já partiram são mais numerosas que as estrelas do céu. Meu amigo de olhos claros, José Paulo Moreira da Fonseca, é uma dessas estrelas que brilham no céu que eu olho e que me confirma que tudo em que cremos é verdade que se vive plenamente lá onde ele agora se encontra. Junto ao Presépio, na Noite Santa, ele com certeza será presença privilegiada, ao lado de tantos outros e outras que festejam a chegada do Menino já em outra dimensão, plena e gloriosa.
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