Posse de Tabaré Vázquez fortalece eixo de esquerda no comando da política externa latino-americana, num momento em que estão sendo reconstruídas coalizões neoliberais, como a de FHC no Brasil e Menem da Argentina.
A América Latina não foi mencionada no encontro do presidente Bush com as autoridades européias da Otan e da União Européia, ocorrido em Bruxelas, nos dias 22 e 23 de fevereiro. Nem tampouco nas reuniões posteriores de Bush com o chanceler alemão Gerhard Schröder e com o presidente russo Vladimir Putin. A viagem de Bush foi concebida e planejada como um reencontro “fraternal” entre os Estados Unidos e a Europa, reunidos pelos seus valores e interesses comuns, numa espécie de espetáculo de reconciliação da “comunidade atlântica”.
A revista The Economist chamou a atenção para a “inconsistência” e a “hipocrisia” da reunião, mas, apesar disto, foi de fato a primeira tentativa - ainda que “hipócrita” - de levar a frente uma rodada de conversações multilaterais sobre o futuro do mundo, depois da guerra do Iraque. Na nova agenda, o terrorismo perdeu presença, cedendo espaço para um conjunto diversificado de questões e problemas mais “clássicos” e que explicitam de forma mais nítida as dificuldades e os limites do poder global dos Estados Unidos, neste início do século 21.
Problemas com relação a imprevisibilidade da velha Rússia; ao desequilíbrio crescente das relações entre a China, Taiwan e Japão; ao belicismo da Coréia do Norte e, eventualmente, do Irã e da Síria; ao tema da contenção nuclear e do controle das armas de destruição de massas; a necessidade de construção de um sistema global de segurança energética; a cronificação dos conflitos no Oriente Médio, e a crescente exclusão africana do sistema econômico mundial.
Para não falar dos problemas financeiros criados pela inexistência de qualquer tipo de regulação ou acordo global entre os três grandes blocos econômicos que comandam a economia mundial, em particular, neste momento, o problema das relações entre a política monetária americana e o comportamento dos bancos centrais do Japão, Coréia do Sul, China, Taiwan, Hong Kong e Índia.
Como se pode ver, uma agenda extremamente pesada e com problemas que permanecerao por muito tempo sem acordos, depois desta primeira rodada de sorrisos e abraços trocados durante os dias da visita do presidente americano ao território europeu. Mas também é verdade que todos disseram o que desejam e pensam, sem receio de explicitar seu desacordo sobre quase tudo, apesar da repetição recorrente de que todos querem “virar a página” e começar uma nova relação entre si, onde os Estados Unidos se mostrariam mais dispostos a ouvir a opinião dos Europeus sobre as suas decisões e sobre sua política de propagação global da “democracia e da liberdade”.
De qualquer forma, o que chama a atenção neste primeiro debate aberto entre os governantes ocidentais, sobre o desenho de uma nova ordem mundial, é a total ausência da América Latina como parceira da nova ordem, ou mesmo como fonte de problemas e preocupações coletivas para as Grandes Potências.
A primeira impressão que fica deste silêncio é que a América Latina segue ocupando o mesmo lugar que detém desde sua independência, no século 19, como zona de controle incontestável dos países anglo-saxões, primeiro da Inglaterra, e depois dos Estados Unidos. Na verdade, a América é o único continente onde jamais houve nenhum tipo de disputa hegemônica entre os países americanos, ou com qualquer outra potência externa, depois da desmontagem dos impérios ibéricos, ao sul do Rio Grande, e da formulação da Doutrina Monroe, concebida e aplicada pelos ingleses, durante todo o século 19.
Apesar disto, o futuro talvez não seja tão simples nem linear neste continente que navega longe do epicentro das disputas geopolíticas das Grandes Potências. Basta ver que a América Latina não freqüentou as conversações oficiais de Bruxelas, mas esteve presente durante toda a semana em alguns dos principais jornais europeus, exatamente durante o período em que se desenvolvia a “cúpula atlântica”.
Numa mesma semana, a revista The Economist publicou uma extensa matéria sobre a expansão do conflito entre os Estados Unidos e a Venezuela, e seus impactos sobre relações entre os demais países latino-americanos; o jornal Finacial Times deu destaque ao relatório produzido pelo Fórum organizado em Washington - pelo Dialogo Interamericano - sobre os mesmos temas tratados pela Economist, o qual foi liderado por duas pessoas do grupo do ex-presidente Bill Clinton (a norte-americana Carla Hilss e o brasileiro Fernando Henrique Cardoso); e, finalmente, o jornal espanhol El Pais publicou uma matéria em 26 de fevereiro sugerindo que o “presidente Lula esta promovendo uma revolução na política externa brasileira”.
A Economist faz um mapeamento mais completo dos problemas envolvidos na relação entre Chavez e Bush, incluindo a convergência ideológica e a aliança político-econômica entre Chávez com Fidel; as novas encomendas de armamento não americano, por parte do governo venezuelano, inclusive do Brasil; o temor de que a Venezuela forneça petróleo para a China, pressionando o mercado americano; e por fim o tema recorrente da ameaça à democracia venezuelana, apesar de que Chávez tenha aceito e ganho o último plebiscito pedido pela oposição e defendido pelos Estados Unidos.
O mais importante, entretanto, na matéria da Economist é sua discussão do papel dos demais países latino-americanos, liderados pelo Brasil, na diluição da recente crise entre Colômbia e Venezuela. Episódio que deixou a administração americana isolada, uma vez mais depois do seu apoio ao fracassado golpe do ano retrasado, que afastou Chávez do governo durante 48 horas.
O jornal El Pais, por sua vez, analisa esta mudança na relação entre os países latino-americanos a partir da política externa do governo brasileiro e como resultado de uma convergência crescente entre os objetivos estratégicos e de longo prazo das políticas externas de alguns outros países do continente, com especial destaque para a Argentina e a Venezuela.
No caso brasileiro, a imprensa sublinha o papel que vem cumprindo o Itamaraty na sustentação das democracias latino-americanas, e no estreitamento dos laços políticos e econômicos entre os países do continente, incluindo a disposição de construir uma nova base material capaz de transformar a vontade política de integração numa realidade econômica concreta, começando pela montagem de uma infra-estrutura de transporte e comunicação que conecte todo o continente.
Mas, além disso, a imprensa destaca com razão a inteligência da política externa brasileira quando procura internacionalizar os problemas do continente, sem agredir os Estados Unidos. Como no caso da criação do G-20, nas negociações da OMC, e na criação de vários outros blocos transversais e outras alianças, envolvendo países da África e da Eurásia.
Os europeus têm apoiado de forma discreta esses novos movimentos diplomáticos e econômicos dos latino-americanos. Não pretendem se envolver excessivamente com a zona incontestável do poder global dos EUA. Mas vêem com simpatia a possibilidade de algum tipo de competição no continente que contribua para o seu projeto de “multipolarização” do sistema político mundial. Nada que assuste aos americanos, mas que pelo menos abra as portas do continente a uma maior influência política da União Européia.
Por isso, estão apoiando a entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, e o presidente Jacques Chirac, da França, não tem perdido oportunidade de demonstrar sua simpatia e apoio a todas as iniciativas internacionais do presidente Lula. Por outro lado, do ponto de vista da administração Bush, não existe uma posição unificada frente a esses novos desdobramentos latino-americanos. A América Latina sempre ocupou um lugar secundário na agenda internacional dos Estados Unidos, e hoje o governo Bush mantém uma posição ambígua frente à política externa do governo brasileiro, que não é antinorte-americana e que propõe o fortalecimento das novas democracias do continente, em linha com os objetivos missionários da segunda administração Bush de difundir urbe et orbi a “democracia e a liberdade”. Além disto, o Itamaraty não é responsável pelo fato de que no momento quase todos os governos da América do Sul sejam de esquerda ou de centro-esquerda.
Por isso, a posse do novo presidente de esquerda do Uruguai, Tabaré Vázquez, no dia 1° de março, significa um passo importante na consolidação da atual política externa brasileira, e mais do que isto, na consolidação de um eixo de esquerda no comando da política externa latino-americana. Uma oportunidade sem precedente para que o continente levante-se sobre suas próprias pernas e se proponha coletivamente como um ator e como um tema da nova agenda internacional das Grandes Potências.
Mas esta não é evidentemente a posição noticiada pelo Financial Times, e defendida pelo grupo de seguidores de Clinton, liderados neste caso por Fernando Henrique Cardoso, no Fórum Diálogo Interamericano. Eles vêm acusando o presidente venezuelano de ter posições populistas, nacionalistas e antidemocráticas, e apostam todas suas fichas num alinhamento e numa relação preferencial com os Estados Unidos, parecido com o que tiveram os domínios ingleses do século 19.
O mesmo objetivo estratégico que orientou a política externa do governo FHC entre 1994 e 2002 e que agora, de novo, está se transformando na nova trincheira que separa de forma cada vez mais nítida e radicalizada o projeto externo dos governos progressistas do continente dos interesses e das alianças que estão sendo reconstruídas pelas mesmas coalizões neoliberais da década de 90. Coalizões que foram derrotadas neste início do novo século e que se propõem voltar ao poder sob a liderança servil dos senhores Carlos Menem na Argentina, Andrés Perez na Venezuela, e Fernando Henrique Cardoso no Brasil.
Agência Carta Maior
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