A Quaresma é tempo propício para a penitência, uma vez que esta nos abre e nos dispõe à conversão que pede este tempo litúrgico. Em momentos como os que estamos vivendo, com o terror da violência abatendo-se não somente sobre o mundo senão também sobre nossa cidade, toma ainda mais sentido o exercício da penitência.
No entanto, em nossos tempos modernos e mesmo pós-modernos, somos levados a nos questionar sobre o sentido de mortificar o corpo, o desejo e o sentimento. Na impotência em que nos encontramos diante de horríveis, sangrentos e diários conflitos, nos perguntamos em que consiste a penitência e se pode realmente ajudar a que a violência cesse e a paz se faça.
“Fazer penitência”, ou seja, mortificar corpo e espírito, só será algo autêntico se se traduzir em gestos e atos concretos. Esta dimensão objetiva e visível deve acompanhar o movimento interno e subjetivo, invisível, que generosamente se faz pela própria conversão e salvação da humanidade. A prática da penitência nos lembra que a vida cristã não se dá na tranqüilidade e no repouso. Seguir Jesus Cristo significa aventurar-se por uma estrada onde está de atalaia não a paz, mas a espada (Mt 10,34-36).
O discípulo deve saber que a palavra de Jesus é um fogo e que caminhar no seu encalço provoca conflitos e divisões. Há na espiritualidade cristã algo de dramático. O que é pedido supera as forças humanas. E, no entanto, o ser humano se vê inexplicavelmente capacitado pelo mesmo Deus que o chama a responder a esse chamado. A exigência é precedida pelo dom e pela graça, não tirando nada, porém, da gravidade do seu radicalismo. O que está em jogo quando se fala de ser cristão é a vida ou a morte, a salvação ou a perdição. E dessa alternativa radical nenhuma categoria de cristão está excluída.
Mas essa vocação e essa espiritualidade, como tudo que diz respeito à vida cristã, não podem ser vividas solitariamente. O cristão é necessariamente um solidário. Por um lado, experimenta que o mal por ele produzido com o pecado é difusivo e deslancha um processo de espiral que vai atingir a outros além dele. Por outro, sente também e não menos que os outros são não apenas companheiros
de jornada, como também sua condição mesma de possibilidade de viver o ideal proposto pelo Evangelho.
Dogma de fé hoje um tanto esquecido, a comunhão dos santos é a possibilidade mesma de que ainda possa haver santidade no mundo. Assim como só se peca porque se é precedido no mal, assim também a santidade é como um útero que recebe sempre mais e mais filhos, nutrindo-os da seiva vital que faz a própria vida da Igreja de Cristo. E, para isso, a prática da penitência é elemento constitutivo.
Onde um falha, o outro persiste; onde um desanima, o outro permanece na entrega; onde muitos desistem, um só é fiel e carrega em sua cansada mas vitoriosa fidelidade a fadiga dos irmãos que, por sua vez, o carregarão mais à frente, com sua oração, seu sacrifício, seu amor.
Quando muitos praticam a violência, o cristão é, portanto, chamado a penitenciar-se construindo a paz, fazendo gestos explícitos de não violência ativa, estendendo a mão, dando a outra face e arriscando
a vida para mostrar que Deus é Pai e não quer que haja discórdia e matança entre Seus filhos.
A santidade exige a comunhão. E, em se tratando da comunidade eclesial, a santidade do clérigo supõe a do leigo; a santidade do bispo exige a entrega humilde e anônima da mãe de família; a
santidade do profissional jogado nas fronteiras da tecnologia de ponta é devedora a não sei que obscura carmelita perdida no fundo de algum mosteiro; a santidade do religioso necessita da militância apostólica daqueles que, desde sua condição leiga, escolheram a política ou a luta sindical como lugar de expressão de vivência plena do Evangelho.
E ainda: o pecado de alguns poderosos tresloucados de ambição, que sacrificam vidas inocentes em nome de ambíguos objetivos, requer a penitência dos mansos que, preferindo morrer a matar, são proclamados bem aventurados e possuirão a terra.
Fazer penitência pela paz no mundo, no Brasil, no Rio de Janeiro e nas capitais brasileiras é, portanto, um dos grandes chamados a nós dirigidos nesta Quaresma.
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