João Paulo II foi um aliado incondicional da política agressiva de Ronald Reagan, nos anos 80. Em uma visita à Nicarágua, o papa condenou o regime sandinista e a atuação de religiosos ligados à Teologia da Libertação. Só não contava com o comprometimento do povo com o governo, que o vaiou em uma de suas aparições públicas. A análise é do colunista Emir Sader.
Como tantos relataram suas experiências de convivência com o papa João Paulo II, decidi também contar as minhas. Não se deram em Roma, no Chile ou no Brasil. Foram na Nicarágua, em 1983. O papa visitava a Nicarágua sandinista [1] depois de ter criticado a participação de padres católicos no governo, dando apoio ao cardeal, um notório somozista. Negara-se a ir até Cuba, apesar do convite recebido.
Miguel d’Escotto e Ernesto Cardenal, padres católicos da Teologia da Libertação, participavam do governo sandinista e foram humildemente receber o papa no Aeroporto Sandino, em Manágua. Ali pude ver a primeira das atitudes prepotentes de João Paulo II. Logo após descer do avião, depois de ser cumprimentado pelos comandantes da direção sandinista, quando chegou diante de Cardenal e este buscou a mão do papa, para beijá-la, João Paulo II retirou a mão e seguiu adiante, deixando o poeta ajoelhado sozinho no chão.
Dava para notar que o papa chegava em uma atitude beligerante, no momento em que o governo de Ronald Reagan nos EUA aumentava o cerco e a agressão militar contra a Nicarágua - que ele chegou a denominar de “fronteira sul dos EUA”, ainda que a maioria esmagadora dos estadunidenses não tivesse sequer idéia de onde ficava o país (um jornal humorístico sugeriu que se lhes indicasse da seguinte maneira: “Você vai até o Texas e vira à direita”). O papa João Paulo II foi um aliado incondicional da política agressiva de Ronald Reagan, e foi nessa condição que ele visitou a Nicarágua durante o regime sandinista.
Depois do episódio na chegada, também pude presenciar sua ida à grande manifestação que o governo nicaragüense preparou para que ele se dirigisse ao povo. Diante de um gigantesco palanque, com um cartaz enorme de Augusto César Sandino e tendo todos os comandantes sandinistas sentados em um dos lados, João Paulo II chegou caminhando com uma vestimenta branca impecável e um cetro de ouro, que contrastava fortemente com a pobreza daquele povo que compareceu à praça.
Ele começou a discursar, sem que as pessoas prestassem muita atenção - até porque seu castelhano com forte sotaque dificultava a compreensão para grande parte dos presentes. Até que o povo foi se dando conta de que o papa passou a criticar e a chamar a atenção dos dirigentes sandinistas e do seu governo. Começou a haver uma reação de protesto, de gritos, que logo se tornaram vaias.
Acostumado ao mundo da hierarquia e da submissão, João Paulo II começou a pedir silêncio, de forma cada vez mais reiterada e em tom cada vez mais alto. A reação popular foi a de aumentar as vaias e os gritos em favor da revolução sandinista e contra o imperialismo norte-americano. A situação se tornou insustentável, as vaias, os gritos, as músicas cantadas pelos milhões de pessoas presentes foram tornando impossível ao papa continuar seu discurso. Ele se pôs a gritar exigindo silêncio, mas aí o povo já tinha se dado conta do seu poder e confirmou sua decisão de terminar ali mesmo o ato.
O papa terminou se retirando da praça, enquanto o autofalante passou a tocar músicas sandinistas e o povo passou a marchar pela praça, cantando. O papa havia sido expulso pela sua prepotência. O que poderia, segundo alguns, ser uma visita de reconciliação, mas que já havia começado com a atitude prepotente no aeroporto, anunciando que sua disposição não era aquela, tornou-se mais um ato do endurecimento da Guerra Fria, de que o papa participou ativamente do lado do bloco imperialista.
Em atos como esse e na perseguição que colocou em prática contra a Teologia da Libertação, o Papa João Paulo II matou a galinha dos ovos de ouro da Igreja Católica. Perdeu a grande alternativa - incentivada por João XXIII - de reconquistar um caráter popular para a Igreja Católica. Como resultado, quando ele morreu, a Igreja Católica possui muito menos adeptos do que antes, os evangélicos e os muçulmanos se expandiram às custas do catolicismo. A Igreja Católica é muito mais fraca do que no começo do seu papado, mesmo que ele tenha se projetado midiaticamente como nenhum outro papa anterior.
Pensemos no que significa para a Igreja Católica brasileira perder alguém como Leonardo Boff - o mais importante representante da Teologia da Libertação entre nós, que teve a atitude digna de abandonar a Igreja. O que significa marginalizar dom Paulo Evaristo Arns, punir dom Pedro Casaldáliga - alguns dos mais significativos e prestigiosos membros da Igreja Católica, vítimas da prepotência e da repressão do Vaticano sob João Paulo II.
Não há nenhuma ilusão de que aqueles jovens que foram assisti-lo no Vaticano obedeçam a seus pontos de vista conservadores sobre relações sexuais, sobre aborto, divórcio, pílulas, homossexualismo e, menos ainda, seus pontos de vista reacionários sobre as mulheres e, em geral, sobre as políticas sociais. Ele foi o anti-João XXIII. Representou, no plano da Igreja Católica, a mesma virada para a direita e a extrema-direita que o mundo viveu nas décadas do seu papado. Ninguém pode ser adepto dos dois pontífices - ou João XXIII ou João Paulo II.
[1] A Revolução Sandinista na Nicarágua (1979), promovida pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, sob a liderança de Daniel Ortega, derrubou a ditadura de Anastacio Somoza. O programa dos revolucionários propôs o confisco dos bens do clã Somoza, a liquidação da Guarda nacional, a construção de uma economia mista, um sistema político pluripartidário e política externa não alinhada. A política dos sandinistas em relação aos vencidos foi "implacáveis no combate, generosos na vitória". Essa medida permitiu a organização de forças contra-revolucionárias patrocinadas pelos EUA. O desgaste econômico produzido pela contra-revolução levou à perda das eleições pelos sandinistas em 1990, com a eleição de Violeta Chamorro (João Bonturi, Folha Online)
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