Uma alternativa para a idéia de livre comércio
O mês de janeiro do ano de 2005 era para ter sido o marco do início de um super acordo de livre comércio entre as Américas do Sul, Central e Norte. A proposta, apresentada pelos Estados Unidos ainda no governo de George Bush (o pai), tem o nome de ALCA, que é a sigla para Área de Livre Comércio das Américas.
Durante todos esses anos, os EUA tentaram garantir que os países, os quais chamam de periféricos, se rendessem ao canto da sereia de que poderiam "se dar bem" caso servissem de mercado consumidor para os produtos estadunidenses. Para isso, propuseram as reformas de Estado que, imediatamente, foram sendo feitas pelos governantes, sem qualquer espírito crítico. Isso acontece inclusive no governo Lula, do Brasil, que já reformou a Previdência (tirando direitos) e tenta adequar a universidade, os sindicatos e as leis trabalhistas aos desejos do capital internacional.
Mas, a idéia da ALCA, logo vista e denunciada como uma segunda colonização, não encontrou eco entre gentes da parte de baixo do Rio Bravo. Protestos, manifestações, greves, passeatas e até mortes foram pondo freio ao desejo dos Estados Unidos em vários países. Enquanto isso, uma outra proposta de integração tomou corpo no coração dos venezuelanos, protagonistas do que chamam de "revolução bolivariana".
Eles acreditam que a América Latina precisa se integrar, mas não só do ponto de vista econômico e mercadológico como quer o governo estadunidense. A integração, afirmam, precisa ser cooperativa, solidária e amorosa, gestada na mente e no coração, comunitariamente. Para isso propõem a ALBA, que é a sigla de Alternativa Bolivariana para a América Latina e Caribe. É uma queda de braço com o império, e já começa a andar.
O que é a ALCA
O capitalismo é um modo de viver que se ampara numa regra muito simples: para que um viva, outro tem de morrer. Não é à toa que o sistema já nasceu manchado com o sangue de povos inteiros. Como conta Eric Williams, ex- primeiro ministro de Trinidad e Tobago, no seu livro Capitalismo e Escravidão, toda a riqueza que produziu a Revolução Industrial na Inglaterra foi conseguida às custas das vidas dos escravos negros perdidas nas plantações do "novo mundo".
Desde então, a vida tem sido assim. Para que alguns empresários comam caviar e tomem champanhe é necessário que existam trabalhadores explorados e mergulhados na miséria. É certo que há uma camada média, que também toma champanhe nas festas dos patrões, mas ela não fica livre de cair em desgraça. É a servidão voluntária que tem o seu preço e o cobra, mais dia, menos dia.
E é justamente para fazer valer a regra simples do capitalismo que o governo dos Estados Unidos está tentando impor aos países pobres e em desenvolvimento o que chama de Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA, contra a qual povos inteiros vêm se levantando em grandes manifestações. Mas, segundo alguns analistas, o que o governo Bush (o filho) pretende é submeter os demais países em nome do seu bem-estar.
A equação parece infalível. Para que os EUA consigam superar seus déficits astronômicos é necessário expandir seus mercados, fazendo com que a raia-miúda consuma o que eles produzem. Com isso, promove-se a quebra geral na agricultura e na indústria dos países pobres, impedindo o desenvolvimento desses territórios. Segue, então, a eterna dependência e a idéia de soberania fica cada dia mais distante.
A proposta de "integração" apresentada pelos Estados Unidos com a ALCA, além de ser um projeto de dominação geopolítica, está claramente amparada nos interesses expansionistas de pelo menos 200 empresas transnacionais que, juntas, controlam cerca de um quarto das atividades econômicas mundiais. Então, acenando com a possibilidade de as elites latino-americanas se lambuzarem no festim do capital com a implantação da ALCA, os EUA fazem suas exigências.
A primeira delas é a reforma do Estado, coisa que os brasileiros já conhecem bem. Passa-se a preparar o Estado para ser um mero gerente do capital. É o Estado mínimo, mas só para os pobres. Flexibilizam-se as leis trabalhistas, privatiza-se tudo o que é público e estatal, desmonta-se o serviço público. É mais ou menos o que, no Brasil, podemos identificar na já aprovada reforma da Previdência e nas reformas universitária, sindical e trabalhista que estão em curso.
A ALCA, então, é muito mais do que um mero acordo comercial. Acaba interferindo em todo o espectro da vida coletiva nas suas dimensões institucionais, políticas, sociais e culturais. Para se ter uma idéia do alcance da ingerência do tratado que os Estados Unidos quer impor aos países em desenvolvimento basta dar uma lida nos documentos da Quarta Reunião Ministerial da ALCA. Lá está escrito um dos princípios inamovíveis do processo: "Todos os países devem assegurar que suas leis, regulamentos e procedimentos administrativos estejam conformes com as obrigações do acordo da Alca". Isso significa colocar todas as leis do país a serviço dos interesses dos EUA. Concretamente é abrir mão da soberania. No Brasil e em outros países da América Latina esse processo parece estar indo de vento em popa.
Desde os anos 80 - concretamente após a crise da dívida do México em 1982 - que os países em desenvolvimento vêm ajustando suas vidas aos ditames do acordo. Reformam leis, regulamentos e até as constituições para se adequarem ao jogo da ALCA, sem se importar com o fato de que é impossível fazer um acordo comercial justo quando os parceiros são tão desiguais. Um exemplo disso é a agricultura, que vai estagnar. Como os Estados Unidos têm uma política pesada de subsídios, nenhum outro país vai conseguir estar em igualdade de condições.
Será necessário criar ilhas de monocultura, mas apenas com produtos autorizados pelos EUA, o que enfraquece sobremaneira o aparato produtivo dos países e, consequentemente, a produção de alimentos. "O que os governantes parecem não entender é que a produção agrícola é muito mais que produzir mercadoria, é um modo de vida que define relações com a natureza, ocupação do território, seguridade e soberania alimentar. Portanto, não é uma atividade qualquer para ficar ao sabor do mercado", diz Hugo Chávez, no caderno "Principios rectores del Alba", distribuído à população.
Outro problema sério que os países em desenvolvimento vão enfrentar é com relação à propriedade intelectual. Com o acordo de livre comércio como quer os Estados Unidos, estarão entregando de mão beijada toda a diversidade genética dos territórios. Estarão permitindo que o conhecimento milenar dos índios e camponeses seja apropriado pelas indústrias farmacêuticas, pondo um ponto final, inclusive, nos genéricos.
A vida que viceja nos países será patenteada pelos estrangeiros. E é bom que se diga, 60% da biomassa, energia renovável do futuro, estão na América latina. Para se ter uma idéia, hoje, 80% das patentes sobre alimentos transgênicos já estão nas mãos de treze (13) transnacionais e as cinco maiores companhias agro-químicas do planeta controlam todo o mercado de sementes. A vida virou mercadoria. Até as festejadas células-tronco já têm donos conhecidos. E, a seguir a receita básica do capitalismo, já se sabe muito bem a quem vão servir. Para que uns vivam, outros têm de morrer.
A resistência existe
Quando a idéia de ALCA começou a se consolidar nas mesas de negociação dos governos, as gentes iniciaram a resistência. Muito rapidamente perceberam que as perdas acabam sempre sendo do povo. Os governantes negociam para o povo pagar. Isso é tão velho quanto o mundo. Assim, tão logo os problemas que seriam gerados pela ALCA foram sendo levantados, multidões principiaram um processo de insurgência que continua firme até hoje, embora os governantes se façam de surdos. Mas, justamente porque há luta, que a ALCA, que era para estar em vigência no início de 2005, ainda não vingou conforme o projeto original.
O começo dos anos 90 foi o tempo de ajustes nas economias e políticas de toda a América Latina. Era preciso preparar o terreno para o grande acordo que estava por vir. Rondas, conferências, encontros, debates, tudo acontecia na surdina, sem a participação popular. Apenas representantes de governos, em salas fechadas, iam decidindo o destino de toda a gente.
Em cada país da América Latina os governantes iniciaram as privatizações e as mudanças nas leis. Reformas de todo o tipo aconteceram para que os países se adequassem à ALCA. Alguns desses países conseguiram realizar todas as mudanças, outros não. Os povos se ergueram e lutaram. Muito das reformas ficou no meio do caminho, premido pela força popular. Por causa disso, o governo dos Estados Unidos teve que apelar para o plano B: os acordos bi-laterais.
Sem sucesso na caminhada de um grande acordo que unisse de uma só vez todos os países latino-americanos no seu laço, os Estados Unidos passaram a negociar país a país. Assim, lenta e gradualmente, foram realizando reuniões para convencer os dirigentes de quanto poderia ser bom abrir seus mercados para o "maior país do mundo". Como tem sido praxe nas terras do sul do mundo a aceitação de tudo o que propõem os EUA, acordos foram sendo fechados.
Mas a resistência das populações tem colocado freio à efetivação dos acertos. O ano de 2004 foi paradigmático. Levantaram-se os índios colombianos, em marchas gigantescas, negando que o tal TLC (Tratado de Livre Comércio) viesse a tomar conta de suas terras, de suas sementes milenares. Também saíram às ruas os hondurenhos em defesa da água, os guatemaltecos, os equatorianos, os chilenos, os paraguaios, os nicaraguenses, os salvadorenhos. Enfim, em cada ponto das Américas do Sul, Central e do Caribe a luta foi grande. Na Bolívia, o presidente Sànchez de Louzada, denunciado como cria dos EUA, foi derrubado pela força do povo porque queria entregar o gás e a água aos estrangeiros.
Agora, em 2005, durante a ratificação do TLC na Guatemala, as gentes foram às ruas e gritaram. Assim como no Brasil, a luta contra a ALCA vem se fazendo a cada dia, em encontros e manifestações. No Peru, em que pese viver cenas grotescas como o bandeamento de seus representantes governamentais, em plena mesa de negociação do TLC, para as fileiras das empresas farmacêuticas, o povo protesta e exige que o governo não entregue sua soberania. No Panamá, o governo insiste na assinatura do acordo e, apesar da forte campanha de aceitação feita pela mídia, a população não acredita que algum bem possa vir de um acordo com um parceiro tão poderoso e vai às ruas.
Mas, de alguma maneira, a estratégia estadunidense está dando certo. Surda aos gritos e protestos das populações, a classe dirigente dos países segue cumprindo cada fase do processo. Privatizações, destruição da agricultura familiar, entrega dos bens naturais a empresas transnacionais. Alguns movimentos em determinados países ainda conseguem barrar certas coisas, como o povo da Bolívia atualmente, retirando uma empresa privada de água da cidade de El Alto e garantindo alguns avanços na Lei dos Hidrocarburos. Outros não conseguem se fazem ouvir, mas ainda assim insistem e se insurgem. O certo é que 2005 raiou e, como disse, em alto e bom som, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, no Fórum Social Mundial, " a Alca se fue al carajo".
Esta frase de Chavez não deixa de ser uma meia verdade. A ALCA não se fez dentro dos parâmetros do projeto original, mas os TLCs estão sendo fechados um a um. Na hora em que cada país já tiver assinado seu tratado bi-lateral com os EUA, a ALCA se torna real. Daí a necessidade de continuar a resistência. A eleição de Tabaré Vasquez - um governo de centro-esquerda- no Uruguai e o não alinhamento de Kirchner, na Argentina, podem, junto com Chávez, fazer a diferença. A esperança de que Lula pudesse fazer parte desse grupo está quase desvanecida.
A viagem do "primer-capo" José Dirceu aos EUA e suas declarações de que é possível um acordo com aquele país joga por terra a idéia de que o Brasil poderia ser o líder de uma virada histórica. Nesse momento, os EUA acenam com a possibilidade de dar ao Brasil uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, o que pode levar o país a uma barganha e à aceitação da ALCA.
Uma proposta bolivariana de integração
Pois é justamente da Venezuela que vem a proposta mais provocadora e instigante de insurgência contra o projeto ALCA. Surgiu assim, num dos discursos inflamados do presidente Chávez, tomou corpo, aqueceu o coração dos venezuelanos e, agora, principia a andar pelas Américas. É a idéia da Alternativa Bolivariana para a América Latina e Caribe, a ALBA.
Segundo Chávez não dá para falar em integração sem que se enfrente os seguintes problemas: a desigualdade entre os países, os obstáculos no acesso à tecnologia, as disparidades frente ao norte, o peso da dívida externa e o impacto negativo das políticas de ajuste. "Há que trabalhar numa abordagem que caminhe para diminuir as assimetrias e disparidades, com a transferência de recursos dos países mais ricos para os mais pobres. Para que isso se dê é preciso fortalecer o Estado", diz, ainda no caderno "Princípios rectores del Alba".
Só nessa pequena frase já está escondido um mundo. O caminho de Chávez, fortalecendo o Estado, é diametralmente oposto ao dos EUA, que quer o enfraquecimento dos Estados Nacionais. Só o deles pode ser forte. Não é à toa que, desde Miami, a sede do mau-caratismo mundial, saem ameaças de morte ao presidente venezuelano. Se a idéia de ALBA pegar, os Estados Unidos podem perder essa queda de braço.
Até porque a ALBA é muito mais do que uma proposta de integração econômica, ela propõe uma nova cultura, um jeito novo de ser no mundo, solidário e cooperativo, ao contrário da cultura capitalista. Na ALBA, a lógica do: "para que um viva, outro tem de morrer", não tem lugar.
O fortalecimento do Estado proposto por Chávez não quer nem a hegemonia deste nem o fundamentalismo do mercado. É um equilíbrio, mas sempre em favor das gentes. "Temos que ter tanto mercado quanto seja possível e tanto Estado quanto seja necessário", enfatiza. O que ele diz ter certeza é de que as políticas liberalizantes da década de 90 não são boas para os países e tampouco favorecem o crescimento. Por isso, a ALBA vem como uma idéia que põe a ênfase na luta contra a pobreza e a exclusão, buscando criar mecanismos de cooperação entre as nações para que, juntas, em comunhão, possam superar as desigualdades.
Uma das idéias que Chávez tem trabalhado é a criação de Fundos Compensatórios ou de Convergência Estrutural, que teriam o objetivo de reduzir as desigualdades no desenvolvimento dos países. "Depois, teríamos que criar também os instrumentos de medição de desenvolvimento que nos dariam a condição de saber como acabar ou diminuir as diferenças. Só assim, pode-se pensar em começar a negociar".
A economista venezuelana Judith Valencia também é uma fervorosa defensora da idéia da ALBA e tem caminhado pela América Latina participando de encontros, debates e conversas com dirigentes governamentais e com os movimentos sociais, buscando aquecer o coração das gentes para a proposta da ALBA. "A alternativa bolivariana propõe o renascer de projetos que ficaram inconclusos, abortados, reprimidos por séculos. Ela deve ser elaborada por cada um de nós, com o que fazemos, resistindo à humilhação e nos insurgindo dignamente. A ALBA é tudo o que se escuta sobre esse processo e nos atrai. Na verdade, essa alternativa sempre existiu como um sonho subterrâneo e, agora, está renascendo. É a nossa atividade coletiva que vai excluir as negociações intergovernamentais".
Judith lembra como a ALBA já está em curso no seu país. "Ela se concretiza no projeto das Missões, por exemplo, que são as brigadas país adentro para acabar com o analfabetismo, para levar saúde, para ensinar e organizar as populações. É também o compromisso de olhar o mundo sempre a partir da nossa América, é buscar a felicidade de forma coletiva, para todos". A economista entende que se os demais países latino-americanos começarem a caminhar nas veredas da ALBA, as propostas estadunidenses de livre-comércio vão se esvaziar de sentido e o que hoje são brechas acabarão sendo os caminhos soberanos.
"Com a ALBA, vamos integrar e dar vazão às capacidades criadoras dos povos para satisfazer sua gente. Vamos, juntos, suprir a necessidade de alimentação, de abrigo, de ócio, de corpo, de espírito e de porvir. Vamos tomar conta dos nossos territórios e nos apropriar deles contra o totalitarismo mercantil. Com nossa prática, vamos tecer outras redes sociais que permitirão novas subjetividades não comprometidas com a dominação imperial. Serão novidades subterrâneas a princípio, mas tenho certeza de que vão fluir e sair à luz, brotando das culturas milenárias".
Pois então, aí está. A idéia já está andando e propondo um outro modo de viver, em oposição à arremetida do capitalismo. Cabe agora, a cada ser vivente desta "nuestra América", como dizia José Martí, fazer coagular a proposta da ALCA, não permitindo que ela toque a terra. E isso só é possível com o que Judith Valencia chama de resistência insurgente. "Não se resiste só esperando mudanças no sistema ao qual se resiste. Resiste-se regatando os terrenos onde vamos cultivar a insurgência. Então, é preciso resistir e se insurgir".
Ele enfatiza que a ALBA é um projeto muito além da ALCA, não tem a sua lógica e é elaborada desde outro lugar. Nela, cada vivente tem o compromisso de ser um a mais no seio do povo, buscando a felicidade coletiva. "É uma integração sem fome, com trabalho, saúde, educação, vida digna. É uma tradução dos desejos culturais das multidões, deixando sem lugar as exigências rentáveis da cultura capitalista. Não é algo feito nem algo para copiar. É um invento de cada dia que anota necessidades e organiza capacidades".
Princípios da ALBA
– Negociações transparentes e de livre acesso a toda a gente
– Cronogramas lentos e participativos
– Todas as decisões devem ser submetidas às populações
– A luta contra os subsídios agrícolas não nega o direito de os países pobres protegerem seus camponeses.
– A agricultura tem de ser tratada como um modo de vida e não como mera produção de mercadoria.
– Deve-se atacar a pobreza, as desigualdades, o peso da dívida, a imposição de políticas de ajuste, obstáculos para o acesso à informação e o monopólio das comunicações.
– Desenvolvimento endógeno
– Desenvolver a capacidade criativa dos povos
– Enfrentar e barrar as reformas do Estado propostas pelo ideário neoliberal.
– Fortalecer o Estado
Adital
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