Cassandra

Há tendências na esquerda especializadas em fazer balanços das derrotas, mas incapazes de apontar caminhos para a construção de alternativas hegemônicas. São cafetões das derrotas; não perdoam avanços, mas se lambuzam com os tropeços.

Os tempos de crise são propícios para as Cassandras. O que mais se ouve e se lê é: Eu não disse? Bem que eu avisei... Eu sabia que ia dar nisso!

Profetas do apocalipse têm seus minutos de glória. Vivem do catastrofismo. Desdenham da capacidade dos homens de transformar as condições em que vivem, confiam que sempre as piores soluções triunfarão, porque apostam em que as condições de alienação, de degradação da capacidade de homens e mulheres de entenderem as coisas que vivem, se apropriarem delas e impor-lhes um outro curso sempre se imporão. Inclusive porque esses profetas de talk-shows televisivos - quanto mais convidados a falar e a escrever, tanto mais abusam do vocabulário, radicalizando vernaculamente, em discursos nos quais expressões como “camarilha”, “traidores”, “canalhas” devem ocupar lugar predominante e reiterado - fazem pouco ou nada para que as coisas deixem de ser assim.

Agem individualmente na busca de espaços para suas atividades, mas não costumam trazer consigo nada de construção coletiva. São livre-atiradores, quando não simplesmente aventureiros, de estilo individualista e conflitivo, renomados por dividir e não por agregar, dentro mesmo da esquerda, na qual pregam radicalismo mas escrevem programas políticos e participam de governos bem pouco ortodoxos - para não dizer “bem pouco religiosos”, o que neste caso não caberia.

Unem-se alegremente à direita e têm em comum o ataque ao PT e a tudo o que lembre o PT, seja porque foram deslocados por esse partido, seja porque perderam a luta para ocupar o espaço central da esquerda, seja pelo rancor de terem sido injustiçados pelo PT.

Comentando uma análise de Trotsky, Gramsci comparou-a a uma menina, a quem se prevê que um dia será mãe. Não se nega a ela esse inegável potencial, diz Gramsci, mas não se pode por isso violentá-la aos cinco anos. Falta a compreensão das condições que permitem os avanços históricos, as relações entre as condições que os homens e mulheres encontram, herdadas das gerações anteriores, e as que conseguem gerar, para transformar o mundo, rumo a uma outra direção. Não compreender isso é ficar no plano do funcionalismo e do catastrofismo: “Ia dar errado, tinha que dar errado, deu errado e sempre dará errado”.
Os que propugnam o abandono da política, pululam e comemoram.

Parece que a natureza humana está definitivamente condenada à degeneração. O poder e a política corrompem. Fiquemos na luta social ou protestemos contra os políticos. Salvamos a biografia e o mundo seguirá tal como está, com a política e o poder nas mãos de quem sempre o deteve - os poderosos do dinheiro, das armas e da mídia. Com estes instrumentos seguirão enriquecendo, fazendo guerras e fabricando a alma e a cabeça das pessoas.

“Mudar o mundo sem tomar o poder”, dizem uns. “Deixar que a multidão faça a história”, abandonando os partidos, o Estado e tudo o que a história teria jogado na lata do lixo. Esses iluminados seguem tentando colocar o social no lugar do político. Por um caminho em que, no máximo, se resiste, pode-se chegar até às portas dos palácios presidenciais - como se chegou tantas vezes no Equador e na Bolívia, recentemente -, mas se delega o poder e se sente frustração pelos ideais uma vez mais não realizados, porque delegados à política, que volta pela janela, depois de ter sido magicamente jogada fora pela porta da frente.
Dessas análises não se deduz nada, salvo que se está querendo escrever página para a biografia, para daqui a uns tantos anos poder, de novo, retomar o discurso: “Eu não disse?”, “Bem que eu avisei...”. Há tendências na esquerda especializadas em fazer balanços das derrotas, mas totalmente incapazes de apontar os caminhos para a construção de alternativas hegemônicas. São cafetões das derrotas; não perdoam os avanços, mas se lambuzam com os tropeços.

O funcionalismo se caracteriza por armar quebra-cabeças, em que tudo é montagem do império e da direita. Há intelectuais que chegam a dizer que a política externa deste governo não passa de armação, uma farsa, uma cobertura para a política econômica, sua única alma. Não há contradições, o governo Lula é igual - ou pior - que o de FHC. “Nada es mejor, todo es igual”, no estilo cambalacho. Viva Talcot Parsons e adeus Hegel!
O papel do intelectual e do dirigente político - e dificilmente um bom dirigente político pode assumir o papel de estadista se não tiver capacidade teórica própria - não é o de amalgamar a história, mas de captá-la nas suas diferenças específicas, compreender seus elementos de continuidade e de ruptura, para poder propor linhas de ação transformadora.

Qualquer análise funcionalista e catastrofista termina com a data do jornal que a publicou e do brilhareco da TV que a exibiu, substituído pelos comerciais. Não terá captado o nervo do real senão desembocar na forma, nos espaços e na direção política de acumulação de forças, de construção das forças que podem retomar e dar continuidade ao processo de transformação do real. Mas isto só vale para os que efetivamente estão empenhados nessa transformação e não para os que surfam na crise para vender pragas, exibir rancores e posar, como nova Cassandras, para a Playboy. Tempos propícios, aliás, para as Cassandras e para a Playboy. Mas estes só querem mesmo é transformar suas contas bancárias.