Debate em Porto Alegre reuniu petistas históricos em busca de respostas sobre a natureza da crise e sobre a possibilidade de futuro para o partido e a esquerda. Não surgiram soluções mágicas, mas uma certeza: é hora de ouvir e falar com a militância.
Debate em Porto Alegre reuniu petistas históricos em busca de respostas sobre a natureza da crise e sobre a possibilidade de futuro para o partido e a esquerda. Não surgiram soluções mágicas, mas uma certeza: é hora de ouvir e falar com a militância.
A desconstituição, ora em curso, do projeto partidário do PT significa bem mais do que a desconstituição da experiência de 25 anos deste projeto. Este projeto afeta uma trajetória que envolve décadas de lutas da esquerda no Brasil, com repercussões também na esquerda latino-americana e internacional. A reflexão de Jéferson Miola, do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), abriu, terça-feira (16) à noite, o debate realizado no auditório da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul sobre o significado da crise política que afeta o PT e o governo Lula.
Em pauta, não apenas a sobrevivência política do PT, mas da esquerda brasileira e latino-americana que, até a eclosão da crise devastadora, tinham na experiência petista uma referência estratégica. Outra preocupação central: como superar a tendência à desilusão, à desesperança e à desistência da luta política, que já se manifesta entre muitos militantes.
O sentimento de perplexidade e incerteza sobre o presente e o futuro foi um dos principais personagens do debate na Assembléia gaúcha. Na mesa, estavam cinco painelistas, todos eles petistas de larga data: o economista Paul Singer, secretário nacional de Economia Solidária; a professora Ermínia Maricato, secretária executiva do Ministério das Cidades na gestão Olívio Dutra; Flávio Aguiar, professor de literatura brasileira e articulista da Agência Carta Maior; o deputado estadual Raul Pont, candidato à presidência nacional do PT; e o deputado estadual Flavio Koutzii.
Foi uma noite longa, instigante, dolorosa, mas carregada de esperança. Todos rejeitaram, com diferentes inflexões, a idéia da desistência e do abandono da luta política. Mas todos concordaram também que o que vem por aí é um período de dureza, de avaliação sobre as causas da crise, de recomposição de laços deteriorados com a sociedade, de muita conversa.
Falar e ouvir
“Estou aqui ansioso para falar e para ouvir”, começou dizendo o economista Paul Singer, expressando um sentimento que era dominante na platéia. “Precisamos disso mais do que qualquer outra coisa no momento”, acrescentou, definindo já uma das tarefas apontadas na noite para a reconstrução do que foi perdido na crise: retomar a arte da conversa e da escuta, de uma conversa genuína sobre como as coisas vão ser duras daqui para frente. Petista histórico, Singer foi logo adiantando sua posição sobre o que fazer diante do quadro atual. “A vida não acabou, o país não acabou, a idéia do socialismo como utopia não acabou. Temos muito o que conversar”. E ele iniciou essa conversa admitindo que o futuro é incerto. “Nós não temos uma idéia muito clara do que ainda virá. A questão da origem do dinheiro é estratégica para definir a dimensão da crise. Também o é saber quem são os corruptores”, emendou, apontando duas faces da mesma moeda.
Apesar de reconhecer a dimensão extremamente grave da crise, Paul Singer chamou a atenção para o fato de que as suspeitas iniciais, apontando para a existência de focos de corrupção no interior do governo federal, até agora não foram comprovadas por fatos que mostrem, efetivamente, o desvio de dinheiro público para fins clandestinos. “A tragédia maior que enfrentamos neste momento é assistir a direita numa ofensiva total contra nosso projeto histórico, enquanto nós permanecemos paralisados e perplexos”, alertou, recomendando logo em seguida: “a única coisa que não podemos fazer agora é ficar parados”. Fugir da paralisia implica várias tarefas urgentes, sendo uma delas identificar a origem da crise.
Para o economista, ela não surgiu ontem e tampouco é fruto do acaso, possuindo raízes ligadas à história recente do PT. E no trabalho de identificação destes fatores, Singer defendeu que não basta pedir a punição dos dirigentes culpados. Isso seria insuficiente.
Freud tinha razão
Ele defendeu a necessidade de uma autocrítica por parte da esquerda partidária. “Todos nós fomos, no mínimo, distraídos. Freud tinha razão ao dizer que não queremos ver as coisas que nos ferem”.
Essa distração, segundo Singer, está ligada a fatos que andaram de mãos dadas com o crescimento eleitoral que o PT experimentou no decorrer da década de 90. Ele resumiu assim essa evolução: “Na primeira metade de sua história, o PT cresceu com a esquerda, na luta contra a ditadura e na campanha das Diretas, desembocando na Constituinte, um processo que teve grande participação popular. A partir daí, lá pelos meados dos anos 90, o PT começou a ganhar grandes prefeituras (Porto Alegre, São Paulo, Vitória, Santos, entre outras cidades), desencadeando um processo de mudança estrutural na vida partidária. A principal mudança o um elevado grau de profissionalização de quadros partidários, que passaram a ocupar funções importantes em governos e no parlamento”.
Esse giro teve conseqüências, apontou. Houve um progressivo afastamento entre a direção e os militantes não profissionais que compunham a base social do partido. “Não creio que isso tenha sido deliberado”, sustentou. “Foi um processo quase automático, mas aí iniciou um processo de degeneração do partido”.
O problema, disse Singer, é que para um partido como o PT, que nasceu com uma proposta de transformação social da sociedade brasileira, o poder é um meio e não um fim em si mesmo (um ponto que vai aparecer também na fala de outros debatedores). “A partir da metade dos anos 90, não perder eleições tornou-se vital, praticamente um fim em si mesmo. Daí, o dinheiro também se tornou vital na vida do partido, mais ainda no momento em que as campanhas foram se tornando cada vez mais caras. Só para se ter uma idéia, a campanha de 2002 foi dez mais cara do que a de 1998. Isso implica uma mudança qualitativa enorme”, apontou.
A partir daí, o partido entrou de cabeça no mundo encantado do marketing político. O PT, registrou Singer, começou a tentar captar com mais ofensividade um eleitorado que tradicionalmente não era de esquerda. “Essa grande massa de eleitores normalmente só se mobiliza em véspera de eleição e foi se tornando cada vez mais seduzido pela propaganda de televisão. E o PT entrou direto nesta armadilha.
Na campanha de 2002, isso ficou claro: "os programas eleitorais na televisão se tornaram muito parecidos. Além disso, fomos capturados pelo mimetismo originado pelas pesquisas qualitativas. Passamos a pautar nossos programas por essas pesquisas, só falando aquilo que aparecia nelas como sendo o que as pessoas queriam ouvir”, resumiu. E admitiu: “só percebi a dimensão disso no dia em Duda Mendonça revelou ter recebido R$ 15 milhões do PT em um esquema clandestino. Devia ter percebido antes”.
Desprofissionalização do partido
Mas Paul Singer não ficou apenas no terreno dos diagnósticos, adiantando algumas propostas que julga necessárias para a reconstrução do projeto partidário petista. Em primeiro lugar, destacou, está a tarefa de mobilizar a militância. “Isso já está acontecendo em vários cantos do país. Os petistas não estão desistindo do PT tão facilmente. Nós, por exemplo, estamos aqui hoje não porque queremos salvar o PT, mas sim porque queremos refundá-lo. Neste sentido, o PED (Processo de Eleições Diretas) não poderia ter vindo em melhor hora. É uma oportunidade de ouro para nós”.
Além disso, defendeu a necessidade de uma desprofissionalização do partido, uma proposta que certamente causará polêmica. A idéia é que 50% da nominata em qualquer chapa partidária para eleição de dirigentes, em todas as instâncias, seja composta por militantes não profissionais, ou seja, por pessoas que não recebem salários para se dedicar à política.
Considerando o que é o PT hoje, muita gente vai torcer o nariz para essa idéia, mas ela ganhou aplausos quando foi apresentada. Singer foi mais longe e propôs a desprofissionalização também das campanhas eleitorais do partido. Isso tem seu custo, obviamente, registrado pelo economista. “Significa, em um primeiro momento, abrir mão de votos, de poder e inclusive de mandatos. Mas creio que isso é absolutamente necessário porque precisamos garantir a autenticidade eleitoral do PT”, sintetizou.
Esse resgate da autenticidade eleitorado foi mencionado, de diferentes maneiras, por todos os participantes do debate, sendo associado a outras tarefas: redefinição da identidade programática, do horizonte estratégico do partido, da política de alianças, da estrutura de funcionamento, da conduta dos dirigentes e do modo de financiamento da atividade política. Todas elas, tarefas para ontem e não subordinadas às exigências de curto prazo da próxima eleição.
A deterioração da democracia interna
Segunda debatedora da noite, a professora Ermínia Maricato seguiu na mesma linha, fazendo uma crítica incisiva à deterioração da democracia interna no partido. “O programa partidário tem que ser discutido, as políticas de governo têm que ser discutidas previamente com o conjunto do partido, para que não tenhamos surpresas desagradáveis como a que estamos tendo agora”, assinalou. Maricato rejeitou as leituras que apontam uma suposta raiz leninista do PT como um dos principais fatores responsáveis pela crise atual.
A história do Brasil, sustentou, tem elementos suficientes para explicar esse fenômeno. “É muito difícil fazer política em um país marcado pelo patrimonialismo e pela privatização da esfera pública, como bem mostrou a obra de Raymundo Faoro (Os donos do poder). O PT, infelizmente, enveredou por esse caminho. Tornou-se um partido fechado, dominado por quadros profissionais e anti-democrático”, resumiu.
Essa rendição ao patrimonialismo e ao autoritarismo, acrescentou Maricato, veio acompanhada por uma estética própria, a estética do marketing eleitoral. E ela deve ter um preço altíssimo, previu. “Está ocorrendo uma profunda mudança da simbologia ligada à sigla e isso não é pouca coisa. Agora, vem por aí um período de conservadorismo e precisamos ter isso muito claro para não criar ilusões”.
A professora da USP chamou a atenção também para o fato de que o alvo da direita brasileira não é simplesmente o PT e o governo Lula. “A campanha a que estamos assistindo não é para demolir o PT, mas sim para derrotar a esquerda. Não podemos minimizar esse ataque que está aí, o que significa, entre outra coisas, que não podemos ser voluntaristas e achar que vamos superar essa crise com apelos e palavras de ordem entusiasmadas”. O diagnóstico de que “não é nada de bom o que vem por aí” veio acompanhado por algumas propostas sobre o que fazer agora.
“Não podemos nos afastar”
“Precisamos procurar trazer de volta aqueles que se afastaram do PT, dar voz e ouvidos a essas pessoas. É claro que estamos todos muito angustiados neste momento, mas não podemos nos afastar, pois a tarefa principal é defender as forças de esquerda e os setores democráticos do país contra a campanha que vem sendo construída contra a esquerda brasileira. Passada a perplexidade, precisamos ficar muito atentos ao que está acontecendo no Brasil”, resumiu Ermínia Maricato. Falar, escutar e prestar atenção.
Essas tarefas foram repetidas durante toda a noite no auditório da Assembléia gaúcha, como remédios imediatos para combater o autoritarismo que tomou conta da vida partidária no PT, com seus desdobramentos no governo Lula. Reafirmando as críticas à política econômica adotada pelo governo federal, Maricato chamou a atenção, por outro lado, para alguns avanços pontuais que seriam exemplos do que é possível e preciso fazer para mudar o país.
“Uma parte do governo está fazendo coisas muito importantes, das quais nos orgulharíamos se as conhecêssemos”, disse Maricato, reconhecendo que “infelizmente, o governo não teve uma boa política de comunicação”.
Citou, entre elas, o combate ao trabalho escravo, a demarcação de terras no Pará, o programa Luz para Todos e o trabalho no Ministério das Cidades, durante a gestão de Olívio Dutra. “Do ano passado para este ano, dobramos o orçamento destinado a investimentos em habitação para a população de baixa renda. Para se ter uma idéia do que isso significa, é importante lembrar que, durante o governo Fernando Henrique, cerca de 50% dos recursos para habitação foram destinados a famílias com renda acima de cinco salários mínimos”, exemplificou. “Estou muito orgulhosa do que fizemos, com uma equipe de petistas, no Ministério das Cidades”, acrescentou, sem esconder a emoção. “E ele trocou o Olívio pelo PP”, gritou alguém na platéia.
O gesto espontâneo foi uma exceção na noite. As intervenções de Paul Singer e Ermínia Maricato foram ouvidas sob um eloqüente silêncio, como a comprovar a urgência de algumas das tarefas apresentadas em suas falas. A necessidade de falar, escutar verdadeiramente, conversar com um grupo de milhares de militantes que acompanha perplexo e dilacerado, em todo o país, a evolução da crise.
A retomada da “arte de escutar” teve um momento de exemplaridade no auditório da Assembléia. Todos estavam ali para escutar e conversar, tentar entender o que está acontecendo e o que é preciso fazer para superar a fase da paralisia. Na segunda parte deste artigo, apresentaremos as reflexões de dois petistas históricos do Rio Grande do Sul, Raul Pont e Flavio Koutzii, e a síntese feita pelo professor Flavio Aguiar que, no final de sua fala, apresentou um sólido argumento de natureza ética em defesa da necessidade de reconstruir o PT e contra a idéia da desistência.
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