Mudanças políticas em países como Argentina, Venezuela, Brasil e Uruguai são debatidas por representantes de movimentos sociais, na Cúpula dos Povos. A pergunta-chave é: "como se posicionar frente a uma nova e mais progressista etapa política na América Latina?".
“Movimentos populares e desafios ante o surgimento de governos progressistas”, debate convocado neste primeiro dia da Cúpula dos Povos pelo mais importante movimento social argentino, os Barrios de Pie, demonstra uma certa preocupação, subliminar mas renitente, com a caixinha de supresas que pode se revelar um governo eleito com apoio popular.
Se, por um lado, existe uma avaliação otimista entre parte dos movimentos frente ao crescimento dos partidos de esquerda na América Latina (citando-se repetidamente o Brasil, o Uruguai, a Venezuela, a Argentina e as chances reais de Evo Morales, do partido Movimiento al Socialismo, nas próximas eleições bolivianas), por outro se fortalece a tese de que não basta lutar pela tomada do poder do partido em que se milita e, concretizado o projeto, sair de férias.
A pergunta “como se posicionar frente a uma nova (e mais progressista) etapa da América Latina” - como Isaac Rudnik, líder dos Barrios de Pie (e, curiosamente, funcionário da Subsecretaria de Assuntos Latino-americanos do Ministério das Relações Exteriores da Argentina) avalia a situação – por exemplo, está deixando em alerta os movimentos bolivianos.
Segundo o analista político Pablo Solón, na Bolívia a grande força demonstrada pelos movimentos de “vecinos” (emigrantes rurais que vivem na cidade de El Alto, logo acima da capital La Paz) nos bloqueios contra a privatização das águas e pela nacionalização do gás este ano reforçou um questionamento: o que fazer se ganha Evo Morales? E a conclusão, tirada em assembléias em todos os bairros, foi: independente de diferenças e concordâncias com o projeto de Morales, o que não se pode é perder a autonomia frente ao governo.
“Não queremos repetir a experiência do Brasil. Vimos o que passou com Lula nesse país, esperávamos todos grandes mudanças, que não só não ocorreram mas também vemos o Brasil mergulhado em uma profunda crise política. Este exemplo não queremos seguir, assim como não queremos repetir a experiência equatoriana, onde o presidente Lucio Gutierrez foi apoiado pelo movimento indígena e depois descumpriu todos os acordos até ser afastado. Nós bolivianos, por todas as nossas experiências, somos muito desconfiados”, afirma Solon.
Segundo ele, a melhor saída para as organizações sociais frente a “governos amigos” é primeiro confiar na própria força antes de depositar as esperanças em um caudilho. “A única garantia de que não haja uma derrocada do projeto popular (que elegeu um governo de esquerda) é pressão constante por parte dos movimentos. Quando nossa opção política chega ao governo, é aí que começa de fato o trabalho”, explica.
Participação direta
Muito delicada, por outro lado, é a opção por participar ou não do governo em alguma de suas instâncias oficiais. Sobre esta questão, as opiniões se dividem. O líder dos Barrios de Pie, Isaac Rudnik, funcionário da chancelaria argentina, acredita que não se pode abrir mão de uma participação direta nas instâncias institucionais justamente para “acelerar as mudanças demandadas pelos movimentos”. Já um representante do Comitê Cubano de Defesa da Revolução não faz distinção entre governo e sociedade
civil, defendendo a tomada do poder (leia-se governo) como única via de efetuar mudanças. E Solon discorda.
Principal painelista do debate, o boliviano acredita que, apesar da inevitabilidade da integração de quadros sociais a instâncias governamentais, a perda da autonomia inexoravelmente leva à perda da liberdade de criticar.
A manutenção da autonomia em nome da “liberdade de expressão”, por outro lado, também pode criar situações complicadas. “É como andar num caminho estreito com abismos dos dois lados. Não se pode permitir que críticas usadas como forma de pressão reforcem o discurso destrutivo da direita, mas também não se pode abrir mão da pressão. Estar entre a complacência e a cumplicidade com a direita... É um caminho que depende da conjuntura”, procura explicar Solon.
O “como fazer” também não tem fórmula e é conjuntural, continua Solon. Mas ajuda, em todos os casos, se os movimentos se abstiverem dos grandiloquentes discursos generalistas “contra o neoliberalismo e o imperialismo yanqui” e foquem suas demandas em propostas concretas. “Os discursos são o labirinto do poder, é difícil sair dele”.
Projeto econômico: ponto central
Ações sociais na área da democracia, como a abertura dos arquivos da ditadura na Argentina, que perdeu toda uma geração nas mãos dos militares, ou o combate à fome no Brasil, muitas vezes são ações adotadas pelos governos progressistas que despertam grande simpatia. Nem por isso, adverte Solón, há que se relevar posições conservadoras em outras áreas, principalmente na economia. Esta, segundo o analista político, acaba sendo o calcanhar de aquiles da maioria dos governos latino-americanos.
Neste sentido, o que na Cúpula das Américas (que começa no dia 4 e reune 34 chefes de Estado em Mar del Plata) será discutido em termos de acordos de caráter econômico e ligados à regulamentaçao dos mercados, deve ser cobrado dos respectivos mandatários.
Na agenda dos presidentes, segundo Solon, desta vez não estão as privatizações como condicionalidades de acordos econômicos ou de financiamentos, mas simplesmente a liberalização dos mercados sob a égide da ALCA, dos Tratados de Livre Comércio (TLCs) e da Organização Mundial do Comércio (que deverá aprofundar os debates travados nos acordos regionais).
“Se fala em combate à pobreza na cúpula oficial, mas temos que cobrar mudanças radicais do modelo econômico que gera a miséria. Sobre isso, como vão se colocar os governos? Lamentavelmente, a população tem dificuldade de comprender os complexos termos das negociações macro-econômicas. Mas isso os governos não podem negociar às escondidas, nas nossas costas”, diz Solon.
Carta Maior
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