O termo populista, nascido para designer, por parte de algumas correntes da sociologia política, a governos como os de Getúlio e de Perón, foi retomado, no marco do discurso neoliberal, para designar políticas consideradas “irresponsáveis”, “aventureiras”, “inflacionárias”, que promoveram concessões sociais incompatíveis com as leis de ferro do ajuste fiscal.
Seriam concessões fictícias, que terminariam produzindo o seu contrário – a inflação corroeria o poder aquisitivo dos salários reajustados, o desequilíbrio fiscal levaria a crises financeiras que freariam o crescimento econômico, a elevação de impostos e o aumento dos gastos estatais inibiria a capacidade de investimento, etc. etc. Não me alongo mais, porque os que ainda têm paciência de ler As colunas econômicas e de escutar os entrevistados nos programas econômicos da mídia, conhecem de cor.
Um dos mais promovidos escritores neoliberais da América Latina, o mexicano Enrique Krauze, - protagonista recentemente de entrevista reproduzido por toda a imprensa ocidental, junto com Vargas Llosa, para denunciar a política externa do novo primeiro ministro espanhol José Luiz Zapatero, nostálgicos de José Maria Aznar -, escreveu um artigo para o jornal espanhol El País, chamado “Decálogo do populismo iberoamericano”, em que resume os pontos de vista dessa corrente.
Consciente de que o problema original do populismo é sua raiz, proveniente da detestada e desqualificada palavra povo, que ele chama, de forma irônica, de “palavra mágica”. Mas a preocupação agora não é com Perón, nem com o peronismo ou com Getúlio, mas com o “populista posmoderno”- Hugo Chávez e seu “socialismo do século XXI”.
Krauze resume em dez pontos o que seriam os traços específicos do “populismo”. Em primeiro lugar, exaltaria o “líder carismático”, um líder providencial que se propõe a resolver de uma vez por todas os problemas do povo. Esse líder usaria e abusaria da palavra, apoderando-se dela, “como intérprete supremo da verdade geral e também a agencia de noticias do povo”, “iluminando seu caminho”. Não contente com isso, “o populismo fabrica a verdade”, abominando a “liberdade de expressão”.
Os fundos públicos seriam utilizados de forma “discricionária” pelos populistas, sem “paciência com as sutilezas da economia e das finanças”. Para ele todo gasto seria investimento. Não contente com isso, o populista cometeria o maior dos pecados: “distribui diretamente a riqueza”. Paralelamente, “incentiva o ódio de classes”, “hostilizando aos ricos”, mobilizando permanentemente aos grupos sociais, convocando e organizando as massas, valendo-se da praça pública como cenário privilegiado. Além disso, o populismo fustiga o “inimigo externo”, como bodes expiatórios, despreza a ordem legal e, se já não bastasse, “mina, domina e, em ultima instância, domestica ou cancela as instituições da democracia liberal”.
Como todo texto liberal, ele é ambíguo, contraditório, diz o que não é, escondendo o que realmente significa. No caso do populismo, busquemos a tradução do que Krauze afirma. Em primeiro lugar, diabolizar um conceito que tem sua origem na palavra povo, já fala suficientemente no ódio ao povo votado pelo liberalismo. No nosso continente, em particular, o liberalismo foi reiteradamente instrumentalizado a favor de pensamento conservador. Afinal foram as idéias “liberais” que trabalharam para preparar o clima do golpe militar dee 1964 – o maior atentado à democracia, à liberdade e aos direitos, coletivos e individuais, que o Brasil conheceu. Isto é, o maior atentado contra os interesses do povo.
Este decálogo é uma radiografia de corpo inteiro do cinismo liberal. Ao que se referem, quando falam da “exaltação do líder carismático”? Ao pânico que têm ao surgimento de lideres populares, de dirigentes que unifiquem o povo, que traduzam em projeto político as necessidades populares. Querem manter ao povo fragmentado, submetido, de forma inerte, à influencia de sua infernal máquina midiática, às condições embrutecedoras de exploração. Precisam que o povo fique distante da política, que delegue estas aos “políticos” profissionais, que governam a sociedade em nome dos interesses dominantes.
Incomoda que os lideres “populistas” se apropriem das palavras. A ordem capitalista requer o silêncio dos discursos alternativos, requer que todos que se manifestem, o façam dentro do universo dos seus discursos, nos seus termos, das suas alternativas – isto é, dentro do sistema de poder que dirigem. Incomoda que esses líderes expressem as palavras, os interesses e os sentimentos dos que foram condenados ao silencio por esses sistemas de monopólio da palavra.
Essas palavras produzem uma verdade, que é criticada por ser “fabricada”. E as verdades do sistema de poder atual, não é gigantescamente fabricada, a ponto de Noam Chomsky cunhou o termo “consenso fabricad”, para expressá-la? Suas verdades – as do “mercado” – são “naturais”, as que se contrapõem a elas, são fabricadas. Toda verdade é construída – a diferença está entre as que o são democraticamente, representando os de baixo e as que são fabricadas desde as cúpulas do poder.
Uso discricionário dos fundos públicos? Repartição da riqueza? Significam: redistribuição de renda, prioridade do social, opondo-se à prioridade do ajuste fiscal e aos interesses do grande capital. Mobiliza permanentemente os grupos sociais? Alenta o ódio de classes? Diagnostica as raízes da miséria e propõe ações de combate às suas maiores vítimas.
Fustiga o inimigo exterior? Aponta para a exploração pelos capitais internacionais e os governos que os defendem – os globalizadores - dos países do sul do mundo – os globalizados. Despreza a ordem legal, enfraquece a democracia liberal. Tradução: coloca a justiça acima das expressões legais de uma ordem social injusta, identifica democracia com governo do povo e não como sua expressão limitada no liberalismo.
Na era neoliberal, populismo serve para tentar desqualificar a prioridade do social – eixo da alternativa posneoliberal.
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