No dia 3 de setembro de 2004, George W. Bush entrou no palco da Convenção Republicana, dirigiu-se ao pódio e fez seu discurso de candidato à reeleição presidencial. Falou de muitas coisas, como cabe a um homem na sua posição. Impostos, seguridade social, meio ambiente, energia, segurança, guerra. Em casa, milhões de americanos acompanharam atentos cada palavra. Mais tarde, como escreveu Frank Rich, articulista do “The New York Times”, uma nação de testemunhas não se deixaria convencer de que o pódio de Bush não trazia no centro a sugestão de uma cruz.
Trazia sim, claramente, apesar das negativas insistentes do estrategista da campanha, Karl Rove - uma cruz escura incrustada na madeira clara, ladeada por duas faixas da mesma cor que corriam do pé da estrutura ao brasão da presidência, já no topo. Menos um pódio, então, e mais um púlpito. Alegoria, talvez, de uma incômoda aproximação entre o poder secular, republicano, e uma determinada fé, de natureza cristã, protestante e evangélica.
Bush não é tão desinteligente como reza a lenda, mas certamente a ponderação metódica e o gosto pelo raciocínio não são os seus atributos mais notáveis. É nítido que não se sente bem diante de perguntas cujas melhores respostas exigiriam sutileza e alguma originalidade. Questões intelectuais não lhe interessam. Já questões do espírito, sim. Nos três debates com o senador John Kerry, seu melhor momento foi quando falou da própria fé. Não disse nada de surpreendente. Foi apenas sincero, um homem despido. Ao contrário do que ocorre com tantos políticos, essa crença não parece ser uma estratégia, um instrumento a mais na batalha eleitoral.
Na autobiografia que escreveu, Bush credita seu destino ao fato de ter dedicado o coração a Cristo. A história é bem conhecida. Ele era tido como o mais incapaz dos irmãos. Até os quarenta anos, havia acumulado fracassos e era alcoólatra. Em meados da década de 80, dependendo da versão, caminhou com Billy Graham numa praia ou deu as mãos para um pastor excêntrico numa lanchonete de beira de estrada, e se converteu. Bush não sabe ou não se interessa por muitas coisas, mas as que conhece parecem todas derivar, se não do conteúdo de sua fé religiosa, ao menos da forma como esse conteúdo se manifesta - sem ambigüidades, descomplicado.
Se aquilo que lhe é mais essencial aflora com tal evidência, compreende-se que questões seculares também sejam enfrentadas assim. Bush insistiu, durante a campanha, em que seu governo possuía “clareza moral”. Onde outros, os adversários, viam complexidades, ele percebia o simples. Sua fé é daquelas que apontam caminhos - a revista “The Economist” nota que o presidente mencionou ter tomado decisões “de joelhos dobrados” - e ajudam a apaziguar as dúvidas. É uma religião serena.
“É importante ponderar a dificuldade de classificar a si próprio como cristão”, escreveu Czeslaw Milosz (1911-2004); “os obstáculos que encontro derivam da vergonha”. Durante os noventa anos de vida do poeta, a linguagem dos catequistas foi substituída pela fala rigorosa e impessoal da civilização científica, o céu e o inferno desapareceram e o universo se desinteressou. “A era do desamparo”, segundo Milosz. “O que dizer da morte? Sua aparição foi especialmente espetacular neste meu século.” Ele faz a pergunta essencial: como justificar a fé diante do sofrimento dos inocentes? “Pode Deus existir se Ele é responsável, se consente naquilo que nossos valores condenam como monstruoso? Camus dizia que não. Estamos sozinhos no universo.”
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No entanto, o mesmo Camus perguntaria a Milosz se não era meio indecente o fato de ele, Camus, um ateu, mandar os filhos para a primeira comunhão. Milosz julgava Camus um cátaro inconsciente, um bom herege em estado puro que, como seus companheiros espirituais da Idade Média, rejeitava deus por amor a deus, visto não poder justificá-lo.
Assim como a poesia foi possível depois de Auschwitz, também a fé foi possível, mas não mais a mesma fé. Diante dos horrores do século, um vasto grupo de intelectuais não abriu mão de acreditar - Michel de Certeau, Czeslaw Milosz, Graham Greene, Simone Weil, para ficar apenas nos católicos -, mas também não pôde, nem quis, escapar dos problemas extraordinariamente complexos suscitados por um deus assim tão indiferente. Acreditando contra todas as evidências, eles propuseram uma reflexão que nos ajuda a compreender os limites, e talvez os perigos, de uma religião fácil. A figura central nesse debate é Simone Weil.
Weil nasceu em Paris em 1909, numa casa burguesa de judeus agnósticos. Tanto ela como seu irmão André apresentaram, desde cedo, sinais de uma inteligência incomum. André resolvia problemas complexos de matemática antes dos dez anos de idade; Simone aprendeu grego clássico e latim e, adolescente, às vezes se comunicava com ele na língua de Platão, seu filósofo do coração. Em 1929 entrou em primeiro lugar na École Normale Supérieure. (Simone de Beauvoir foi a segunda colocada.) Lecionou em escolas secundárias (não quis a pompa da vida universitária), e só abandonaria o magistério ao ser expulsa de um liceu por participar de uma marcha contra as condições de trabalho dos operários da cidade.
Tomou a decisão de viver entre os desamparados. Durante os anos de 1934 e 1935 foi operária da Renault e de duas outras fábricas. Em 36 alistou-se nas brigadas anarquistas que lutavam na Espanha. Quis combater, mas a saúde frágil, debilitada ainda mais pelas condições insalubres da fábrica, obrigou-a a trabalhar como cozinheira na linha de frente. Testemunhou os horrores da Guerra Civil, e vem daí sua desilusão com as ideologias.
Em meados da década de 30 começa a se aproximar da religião. Ao ouvir monges cantarem num monastério francês, e depois também em Assis, na capela de São Francisco, teve as primeiras experiências místicas. Em 38 se converteu ao cristianismo e se aproximou da fé católica. No início da Segunda Guerra, em Marselha, conheceu o padre Perrin, com quem manteve uma rica correspondência até a morte precoce. A invasão nazista obrigou a família Weil a fugir para os Estados Unidos.
Simone seguiu depois para a Inglaterra, de onde tentou articular a volta para a França a serviço da Resistência. Trabalhou como secretária do movimento France Libre, de De Gaulle. Morreu de inanição em agosto de 1943, num sanatório para tuberculosos - já doente, recusara-se a ingerir mais do que a ração diária que os alemães destinavam aos franceses. Tinha 34 anos. Morreu no exílio e só, em perfeita sintonia com sua visão trágica da condição humana.
Durante os poucos e prolíficos anos de correspondência com Perrin, o padre tentara convencê-la a se batizar. Para a fé intensa de Simone Weil, receber o sacramento seria a certeza de um abrigo eterno. Por isso mesmo disse não. Talvez, no delírio das últimas horas, tenha sido batizada, mas o ato, se não à revelia, seguramente foi levado adiante sem que ela pudesse decidir soberanamente. Essa recusa inquebrantável está no centro da sua vida exemplar. Num mundo de que deus decidira retirar-se, Simone Weil, que não duvidava da existência dele, fez a difícil opção de se afastar.
Quis ficar com os desabrigados, longe do paraíso. Abraçou voluntariamente a desventura. Ao morrer, não publicara mais do que uns poucos artigos. Hoje sua obra reunida soma dezesseis volumes. T.S. Eliot a chamou de gênio. Czeslaw Milosz reconhece nela sua maior influência, e Camus, em 1957, no dia em que recebeu o Prêmio Nobel, caçado por jornalistas e fotógrafos, escolheu como refúgio o apartamento em que ela passou os últimos dias antes de ser obrigada a fugir de Paris.
O que nos diz Simone Weil a respeito da fé? Em primeiro lugar, que “a religião como fonte de consolo é um obstáculo à verdadeira fé, e nesse sentido o ateísmo é uma purificação”. Ninguém deve crer para reconciliar-se com o mundo, pelo contrário. Como observou Milosz, existe uma contradição entre a nossa “aspiração pelo bem” e o universo indiferente a qualquer valor, regido pela “necessidade inclemente das causas e das conseqüências”. Weil escreverá: “Qualquer um que queira escapar dessa inevitável contradição é um covarde. Estamos num deserto. Aquele de quem necessitamos está ausente - Deus absconditus”. A idéia de deus, particularmente no cristianismo, só pode se manifestar pela contradição: uno e trino, pessoal e impessoal, potente e fraco, senhor e servo, deus e homem. Não há síntese possível.
“A inteligência aceita a contradição como insolúvel”, apontam Attilio Danese e Giulia di Nicola, dois grandes intérpretes do pensamento de Weil; contempla os paradoxos e as aporias irredutíveis já sabendo não ter garantia de solução, mas justamente essa suspensão evita o embuste das ideologias. Para Simone Weil, a fé é o contrário da certeza e o equivalente da contradição. A fé é o oposto da ideologia; é uma antiideologia.
Acreditar é estar perplexo, não compreender e aceitar - sobretudo, a complexidade das coisas. Deus é indemonstrável, e sobre ele absolutamente nenhum discurso pode ser elaborado, nem mesmo o discurso moral. (Até os santos sabem disso. É o “Não posso” de são Tomás de Aquino, afásico diante da revelação do rosto de deus. O absoluto é a concisão de tudo, o silêncio.) “Todo esforço para fundamentar a moral na teologia destrói tanto a moral como a teologia.” E é precisamente aqui que Simone Weil nos ensina a temer a fé de Bush.
Três dias depois do 11 de setembro, o presidente americano fez um discurso na catedral de Washington. Em certo momento, disse: “O mundo criado por Deus possui uma estrutura moral”. Aceitando-se a hipótese da existência de deus, é provável que sim e também que não - a onipotência lhe confere todos os direitos, inclusive o de ser intermitentemente moral e amoral. (No século XIV, o franciscano Guilherme de Ockham já advertia que não há como nos defendermos da arbitrariedade divina. Nada impede que deus salve os pecadores e perca os inocentes. Se não o faz, é porque não o deseja. Mas poderia desejar.) A ousadia maior, porém, está em pretender que se tem conhecimento de tal projeto. Pior: é se achar instrumento dele. Bush é extremamente cauteloso ao exprimir suas crenças e evita falar como alguém que privasse de contato direto com o absoluto.
No “Discurso do Estado da Nação” de 2003, declarou que “não conhecemos - e não afirmamos conhecer - os desígnios da Providência”. Porém, como mostra o jornalista Alan Cooperman, do “Washington Post”, Bush já disse, publicamente e em privado, que concorreu à presidência por achar que assim respondia a um chamado de deus. Sugeriu, algumas vezes, que sente a vontade divina exprimir-se por intermédio dos atos do seu governo. No livro “Plano de ataque”, Bob Woodward reproduz uma afirmação dele, de que rezou “para ter coragem de levar adiante o desejo de Deus” no Iraque. “Acredito que Deus me quer presidente”, teria dito ao reverendo Richard Land (Bush não confirma a declaração). Seus seguidores são mais explícitos; o pastor Pat Robertson, por exemplo, não tem dúvida de que “o Senhor ungiu George. W. Bush”, enquanto Tim Goeglin, um colaborador próximo, com gabinete na Casa Branca, disse ao “Post” que o presidente seria um homem escolhido por deus.
Um dos quatro pilares da fé evangélica é a infalibilidade da Bíblia. Em 2000, Bush sugeriu que a doutrina do criacionismo deveria ser ensinada lado a lado com o darwinismo - “afinal, a religião entrou em cena há muito mais tempo do que Darwin”. Frases assim evidentemente ressoam bem nos bolsões religiosos da América. Uma pesquisa recente da “Newsweek” revelou que 17% dos americanos acreditam que o mundo vai acabar durante suas vidas. Uma coleção de livros sobre a proximidade do Apocalipse já vendeu 40 milhões de exemplares. Mais americanos crêem na Imaculada Conceição - 79% da população - do que na teoria da evolução. Há poucos meses, o departamento federal de parques nacionais passou a oferecer em suas lojas um livro intitulado “Grand Canyon: Uma visão diferente”, no qual se afirma que o cânion, assim como todo o resto, foi criado em seis dias.
Bush consolidou seus votos não apenas junto aos evangélicos - em 2004, mais de 26 milhões deles saíram de casa para votar, perfazendo 23% do eleitorado (fonte: “Washington Post”) -, mas também junto àqueles que se declaram praticantes de outras religiões, particularmente católicos e judeus ortodoxos. Um artigo recente no “American Conservative” destaca que o atual presidente venceu as eleições em 25 dos 26 estados com a maior taxa de fertilidade dos Estados Unidos, enquanto John Kerry ganhou nos dezesseis com a menor taxa. Parece razoável supor que nos estados onde prevaleceu o voto em Kerry a contracepção não seja anátema, e naqueles que elegeram Bush, sim. Por si só o voto religioso não explica a vitória do atual presidente - a revista “Time” mostra que ele também cresceu entre hispânicos, mulheres, aposentados e pessoas que não freqüentam igrejas -, mas é inegável que tais eleitores formam hoje um grupo de pressão considerável, capaz de ditar parte das políticas sociais, culturais e educacionais do governo.
O historiador Diarmaid MacCulloch, autor de um livro extraordinário sobre a Reforma, mostra que a Inglaterra exportou dois tipos de protestantismo para os Estados Unidos. Um primeiro tipo, que ele qualifica como de “alta temperatura”, teria sua expressão maior nos movimentos de reavivamento que estão na origem do pentecostalismo e das diversas denominações evangélicas. O segundo, de “baixa temperatura”, mais ponderado, com mais nuances, seria uma espécie de protestantismo da sociedade civil, de matriz anglicana e presbiteriana; sua influência pode ser constatada na Constituição americana, redigida por homens que, segundo MacCulloch, eram deístas, e não produto das correntes mais ortodoxas do protestantismo.
Certamente Bush representa a vertente de alta temperatura. Uma das versões da sua conversão reproduz a história clássica do pecador que “nasce de novo” após um encontro com Jesus. Em 1985 Bush teria pedido um encontro com Arthur Blessitt, um pastor evangélico conhecido por arrastar uma cruz de quatro metros mundo afora. A conversa entre os dois teria acontecido no restaurante vazio de um Holiday Inn no Texas:
– Se você morrer hoje, tem certeza de que irá para o céu? - perguntou Blessitt.
– Não - Bush respondeu.
– Então me deixe explicar como é que você pode ter essa certeza e como pode sair daqui com a garantia de que será salvo.
– É o que eu quero.
Os dois se deram as mãos e rezaram pela salvação de Bush.
Se no protestantismo de Lutero a dúvida é constitutiva da condição humana - o homem não pode conhecer as razões de deus, nem o mal que traz dentro de si -, nas religiões de alta temperatura a dúvida dá lugar à quase-certeza. (Parece inegável a existência de um impulso simplificador na Reforma. Um muro caiado de branco é infinitamente menos complexo do que uma nave pintada por Giotto ou Piero della Francesca.) MacCulloch lamenta o definhamento das religiões de baixa temperatura, que, segundo ele, são livres de entusiasmo. O termo é preciso. O entusiasmo assemelha-se à convicção, enquanto a hesitação é próxima da dúvida.
As conversões evangélicas trazem deus para muito perto e são o oposto do Deus absconditus de Simone Weil. Quase sempre o convertido fala de um deus pessoal que se revelou a ele. A atriz Lily Tomlin tem uma boa frase: “Quando falamos com Deus, estamos rezando; quando Deus fala conosco, estamos esquizofrênicos”.
Não é o caso de Bush - ele nunca disse ter ouvido a voz de deus -, mas, pelo que costuma declarar, é evidente que sua fé lida muito mais com certezas do que com dúvidas. Simone Weil já advertia que o risco de um deus próximo e pessoal é a instrumentalização da Providência. Daí à transformação da fé em imposição de uma visão ideológica, basta um pulo. Possivelmente é o que está acontecendo neste momento nos Estados Unidos.
No caso particular de Bush, há nele um horror a toda complexidade. É a isso que alude quando menciona a “clareza moral”. A ponderação e o exercício da dúvida crítica são sintomas de vacilação, não apenas intelectual, mas também do espírito. Esse estado de coisas representa a vitória momentânea do mau leitor da Bíblia sobre o bom leitor da Ilustração.
É evidente que nenhum político americano jamais se elegeu apenas com os votos do eleitor de baixa temperatura. Bill Clinton carimbou suas credenciais junto ao eleitorado da América profunda quando, em plena campanha de 1992, regressou a Little Rock, capital do estado do qual era governador, para presidir a execução de um doente mental chamado Ricky Ray Rector. O problema é que, no atual clima político, isso já não basta.
Durante a campanha de 2004, para desespero dos seus redatores, Kerry costumava riscar as frases mais óbvias dos discursos, alegando que “pareciam slogans”. Ele odiava se repetir e quase nunca fazia duas vezes o mesmo discurso, “desvantagem séria para um político”, segundo a revista “Newsweek”. Já Bush repetia as mesmas frases tantas vezes quanto necessário fosse. Kerry pagou caro pelo que os jornais chamaram de seu “intelectualismo”.
Diante de um presidente repleto de certezas e respostas simples, um homem que diz coisas como “Seria anti-republicano se, como católico, minhas convicções pessoais a respeito do aborto se transformassem em políticas públicas” é necessariamente incompreendido. Bush e seu eleitorado transformaram complexidades em complicação.
O que não significa que o atual presidente americano seja um populista. Não é. Parte do seu êxito eleitoral se deve precisamente ao fato de ele ter insistido em dizer coisas que o eleitorado americano não queria ouvir. Recusou várias vezes o conselho de seus homens de marketing, que lhe imploravam para não falar da guerra do Iraque e da exportação de democracias para o Oriente Médio.
Também parece não ter defendido idéias nas quais não acredita, apenas por serem eleitoreiras. Seria uma surpresa se propusesse casas a um dólar. Nisso ele mudou pouco desde 1973, quando lentamente, vestindo chapéu de caubói e botas texanas, com seu famoso passo de xerife prestes a sacar, atravessava o campus de Harvard coalhado de estudantes que protestavam contra a guerra do Vietnã. Bush é um homem de convicções. Não tem medo de defendê-las em público, mesmo quando são impopulares. Nas coisas em que acredita, acredita sem hesitação.
É evidente que as características histórico-sociais dos Estados Unidos tendem a fortalecer as certezas. Uma matéria publicada em outubro na “The New York Times Magazine” traz um diálogo extraordinário entre o jornalista Ron Suskind e um alto funcionário da Casa Branca:
No verão de 2002, [...] um conselheiro graduado de Bush expressou o desagrado da Casa Branca [com um artigo que eu escrevera para a Esquire] e me contou uma coisa que na época não compreendi muito bem; hoje entretanto acredito que a história leva diretamente ao coração da presidência Bush.
[Ele me disse] que pessoas como eu vivem “no que chamamos de comunidade baseada na realidade”, que ele definiu como gente que “acredita que é possível encontrar soluções a partir de um estudo cuidadoso da realidade perceptível”. Assenti com a cabeça e murmurei algo sobre princípios iluministas e empirismo. Ele me interrompeu. “O mundo não funciona mais assim”, disse. “Hoje somos um império e, quando agimos, criamos nossa própria realidade.”
Trata-se da versão imperial do messianismo, ou, se preferirem, de uma redefinição teológica da frase de Luís XIV: “La réalité c’est moi”. Em boa parte, isso explica a observação de Thomas Friedman, do “The New York Times”, segundo a qual a eleição de 2004 foi a respeito de nada: o desastre da guerra, o déficit calamitoso, a incompetência da política externa, os escândalos corporativos, os favorecimentos, o privilégio dado aos mais ricos, a tortura - nenhum dos verdadeiros problemas que afligem o país foi discutido, como se uma realidade paralela houvesse prevalecido sobre as impurezas do mundo real.
O que importa nisso tudo é que os mandatários de deus não têm dúvidas. É curioso como o vocabulário empregado pelo terror é muito parecido com o vocabulário daqueles que o combatem. Palavras como mal, bem e pecado afloram nos dois lados com igual insistência. O que mais chama a atenção, porém, é o uso da palavra culpa. Czeslaw Milosz, leitor atento de Simone Weil, aponta uma dialética fundamental entre o pecado e a culpa. Numa carta ao religioso Thomas Merton, ele faz uma observação preciosa:
A culpa é individual, é a minha culpa. O pecado é universal - não sou eu o culpado, mas a sociedade, e posso ser salvo, não pelo meu esforço (a Graça que me é concedida), mas pela coletividade da qual sou um elemento. A responsabilidade pessoal é diluída, e eu presenciei, em 1945, crimes cometidos por soldados russos tomados por um profundo sentimento de pecado, mas isentos de quaisquer sentimentos de culpa pessoal [...] Durante um bombardeio, em Moscou, um polonês perguntou a uma multidão que olhava para o céu por que eles não se refugiavam no metrô e ouviu a seguinte resposta: “Nitchevo, somos muitos”. Isso é esplêndido como humildade: minha morte não tem importância. Porém os perigos são tremendos, pois isso também significa: minha culpa não tem importância.
Santo Agostinho dizia algo semelhante. Segundo ele, nenhuma teoria da justiça podia eximir de culpa os guerreiros. “Qualquer um que contemple males tão grandes, tão hediondos, deve admitir a tragédia; e se alguém os experimentar, ou mesmo se os testemunhar, sem angústia, sua condição será ainda mais trágica, pois terá permanecido sereno por perder a própria humanidade”.
Uma notícia recente de jornal informava que Hollywood já está produzindo um filme sobre a batalha de Faluja. Será estrelado por Harrison Ford. Será baseado num livro cujo autor declarou: “Os marines são mesmo a mais perfeita arma de morte que o mundo já conheceu. Eles sabem que têm uma missão nobre a cumprir. Jamais hesitarão em puxar o gatilho e certamente não perderão uma única noite de sono por isso.”
Há poucos dias ficamos sabendo que as cartas de condolências que Donald Rumsfeld enviava às famílias dos soldados mortos eram assinadas por uma máquina. Podemos nos supor então diante de um homem sem senso de responsabilidade pessoal. Sem culpa, portanto.
O presidente Bush jamais pediu desculpas por um erro cometido. Uma guerra iniciada sob falsos pretextos, talvez mais de 50 mil iraquianos mortos. Nenhum perdão.
É o que mais tem faltado aos Estados Unidos de hoje. Menos entusiasmo, mais culpa.
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