Os dois anos iniciais de governo Lula coincidiram com um raro período de ausência de crises externas. A superoferta de dinheiro favoreceu a política econômica, mas pouco se fez para blindar a economia contra uma temida - e, para muitos, inevitável - reviravolta na conjuntura externa. O câmbio é peça fundamental das tentativas de blindagem. E não há sentido em se fazer superávits comerciais gigantescos se o Banco Central não usa o excedente para aumentar substancialmente as reservas cambiais.
A armadura anticrise se esculpe por meio da formação de reservas compostas por capitais não-ariscos, os que debandam ao menor sinal de hostilidades. Para isso, um dos pilares da atual política econômica neoclássica, o câmbio, precisaria ser mudado. Esse é o primeiro passo. O segundo: reduzir a Selic para que o pagamento anual de juros não supere R$ 50 bilhões, o equivalente a um superávit primário de 3% do PIB.
A defesa de mudanças nas políticas cambial e monetária é feita hoje sobretudo por um punhado de economistas afastados da corrente principal. Embora pós-keynesianos, os economistas aninhados no Grupo de Moeda do Instituto de Economia da UFRJ são hoje os protagonistas de um pensamento divergente do atual consenso neoclássico que prevalece no governo e no mercado.
Defendem teses de "esquerda"?
As propostas resultam de uma reelaboração das idéias defendidas pelo economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946). Intelectual requintado e dândi, lorde Keynes ficou rico especulando na City, o centro financeiro de Londres. E Keynes abjuraria o rótulo de "esquerdista". Na verdade, ele é o anti-Marx.
Ao cortar impostos para incentivar o consumo, o governo Bush pratica hoje uma política econômica recomendada, para outros tempos e circunstâncias, por Keynes. Mas, comparadas às teses neoliberais vitoriosas no Brasil desde o início da década de 90, as idéias pós-keynesianas são consideradas "pirotecnia aventuresca", "esquisitices heterodoxas", "aberrações pró-caos".
Os pós-keynesianos não se entediam em defender suas propostas excêntricas. Apenas se recusam a introjetar, como fazem extensas fileiras petistas, o lema "There is no alternative" fincado nas mentes, no começo da década de 80, por Margareth Thatcher, ao lançar as bases da plataforma neoliberal.
João Sicsú, professor-doutor do Instituto de Economia da UFRJ, organizador da coletânea recém-lançada "Novo-Desenvolvimentismo - Um projeto nacional de crescimento com eqüidade social" (editora Manole) apresenta nessa entrevista exclusiva ao Valor apenas algumas alternativas existentes nas áreas de câmbio, juro, inflação e crescimento.
- O Brasil efetivamente melhorou em 2004?
- O crescimento econômico de aproximadamente 5% é um ponto positivo do ano de 2004 se comparado com o desempenho de 2003, quando o crescimento foi de 0,5%. Contudo, a média de crescimento do PIB de 2,7% do governo Lula (2003-4) é somente pouca coisa maior que a média dos anos de FHC (1995-2002), quando o crescimento foi de 2,3%.
Durante o governo de FHC, a economia também teve ciclos de forte crescimento que foram abortados principalmente por crises cambiais (que foram seis: 1995, 1997, 1998, 1999, 2001 e 2002) e/ou pelos limites impostos pela falta de infra-estrutura (o exemplo é o "apagão" de 2001).
Valor: O BC projeta para 2005 uma expansão do PIB de 4%. O mercado, de 3,5%. Não dá para crescer mais do que isso?
- Não há sentido em se fazer superávits comerciais gigantes e não formar reservas vultosas e de qualidade?
- Não foi um ponto positivo, em 2004, a despreocupação dos governantes com a elevação da taxa de crescimento para 2005. Muito pelo contrário, o crescimento de 5% está sendo comemorado como a chegada ao céu - e como o céu é o limite, não admitem falar em um crescimento muito superior a "taxa-céu de 5%" para os próximos anos. Aliás, parece que o presidente Lula adquiriu recentemente medo de crescimento. A dupla Meirelles-Palocci certamente possui essa fobia. O Copom tem revelado em suas atas: "Preocupação com o crescimento".
- O que, para efeitos de crescimento, é mérito da política econômica e o que é apenas efeito de uma conjuntura externa benéfica?
- O Brasil está crescendo somente na média das economias latino-americanas (que devem crescer um pouco mais de 5% em 2004) impulsionadas pela demanda mundial por commodities e devido à abundância de liquidez internacional. É bom lembrar também que o Brasil já cresceu a taxas muitos mais elevadas no passado e atualmente há vários países que não se contentam com taxas de crescimento em torno de 5% e crescem muito mais que isso; China, Índia e Irlanda têm uma taxa média de crescimento de aproximadamente 9% ao ano, há anos, e até mesmo a nossa vizinha Argentina, que cresceu em 2003 quase 9% e em 2004 repetirá o mesmo desempenho. Em dois anos, a Argentina terá crescido 18%, o Brasil, 5,5%. Talvez essa diferença numérica expresse bem a diferença de idéias entre Lula e Kirchner.
- O crescimento já pode ser considerado sustentável?
- O governo não mostra preocupação com a sustentabilidade do crescimento. A sustentabilidade somente será alcançada quando os "fatores-aborto" do passado recente forem eliminados, ou seja, quando o governo decidir investir em infraestrutura e quando economia estiver blindada contra choques financeiros - em outras palavras, crises cambiais. O investimento público em 2004 será de 0,5% do PIB (em 2003, foi 0,4%) enquanto no governo FHC foi em média aproximadamente o dobro ao ano, o que já era muito pouco.
E, para se proteger de crises cambiais, o país deveria realizar megasuperávits comerciais com o exterior (o que vem fazendo com êxito), necessitaria constituir reservas, precisaria mudar o perfil da pauta de exportações para torná-la menos volátil à variação dos preços internacionais das commodities (ou seja, fazer uma política industrial desenvolvimentista) e poderia organizar instrumentos que reduzissem o impacto dos movimentos de capitais especulativos de curto prazo sobre a taxa de câmbio - reduzindo a entrada desses capitais, que valoriza o câmbio e prejudica as exportações (como está acontecendo agora) e controlando o impacto de saída que se conforma na própria a crise.
- O acordo com o FMI bloqueia a formulação de uma outra política econômica?
- O governo substitui a iniciativa ofensiva de blindagem da economia pelos acordos defensivos com o FMI, que não resolvem o problema e ainda retiram a autonomia para que os eleitos governem de acordo com os interesses do seu eleitorado. É mais um ponto negativo de 2004 a notícia que o governo vai renovar o acordo com o FMI em 2005.
- O que precisa ser feito para blindar o país?
- Controles do fluxo de capitais especulativos de curto prazo seriam somente o ponto de partida. Nos últimos 10 anos dos governos de FHC-Lula tivemos seis crises cambiais. As crises cambiais ocorrem como resultado da fuga de capitais que se viabiliza por intermédio das conhecidas contas CC5, chamadas atualmente de TIR - Transferência Internacional de Reais. Hoje qualquer um pode enviar recursos sem qualquer restrição para o exterior - sem restrição de quantidade e a qualquer momento. Todas as trajetórias recentes de crescimento se transformaram em "vôos de galinha" porque fomos abatidos por crises cambiais.
Então precisamos isentar a economia brasileira dos humores dos grandes investidores/especuladores financeiros, desestimulando a entrada de capitais estrangeiros de curto prazo e restringindo a saída de capitais de brasileiros em momentos de crise. Mas o controle de capitais especulativos não é um fim em si mesmo, é apenas um passo necessário para evitar crises e para que possamos ter autonomia para fazer políticas fiscais e monetárias mais responsáveis.
Estas não são desejadas pelos sistemas financeiros, cujo revide seria ameaçar o país diante da possibilidade de redução da taxa de juros ou diante da ameaça de tributação de ganhos financeiros exorbitantes. O controle do movimento de capitais especulativos é uma medida de recuperação da soberania nacional adotada por diversos países em épocas diferenciadas e legítima segundo os estatutos do FMI (artigo VI).
- Os juros atrapalham o crescimento ou o crescimento independe do juro?
- A interrupção da trajetória de queda da taxa de juros foi danosa. Tal trajetória não foi somente interrompida pelo Copom, mas foi revertida, transformado-se numa nova trajetória ascendente dessa variável. A elevada taxa básica de juros é um instrumento eficaz de controle da inflação porque provoca redução da demanda. Esse debate sobre juros e inflação deve ser enfrentado de forma bem mais profunda. Primeiro, é preciso ficar claro que os juros somente são capazes de controlar a inflação se a elevação da taxa de juros reduzir a demanda e, então, travar planos de investimento e aumentar o desemprego, reduzindo ou impedindo o crescimento.
Os juros elevados geram um exército de desempregados e de empresários em situação de dificuldade - mas os preços se mantém controlados. Por exemplo, digamos que a tarifa de energia elétrica aumentou, mas o empresário não consegue passar esse aumento de custos para as mercadorias que vende, porque está com dificuldade de vender ao preço corrente, logo, venderá menos ainda a preços reajustados, assim mantém os preços. É dessa forma que os juros elevados controlam a inflação.
O resultado é que empresários demitem trabalhadores para tentar recompor a sua margem de lucro, comprimida pela elevação dos custos que não foram repassados aos preços, e, então, a correia do resfriamento da economia é reforçada com mais desemprego. Ora, o que devemos buscar é um sistema que controle as causas da inflação. A causa, no nosso exemplo, é o aumento da tarifa da energia elétrica. A tentativa empresarial de reajustar seus preços é somente o sintoma.
O exemplo é real, a inflação medida pelo IPCA desde 1999 até hoje (o período do regime de metas de inflação no Brasil) foi de aproximadamente 61%, mas a energia elétrica aumentou 217%. A causa da inflação no Brasil tem nome e é conhecida: preços administrados. Outros números da inflação dos administrados são reveladores dessa distorção: gás (encanado e de bujão) aumentou no período 154%; transportes públicos, 96%; combustíveis para veículos, 145%; e telefonia, 93%. Basta lembrar que os juros bloqueiam apenas o reajuste de preços livres, mas o que precisamos é de uma política de reajuste dos preços administrados que estão "livres" para aumentar, enquanto os preços livres são no modelo atual "administrados" pela taxa de juro. A Colômbia, nossa pobre vizinha, tem um a taxa de juro nominal de 8% e uma inflação de 6% e a Argentina tem uma inflação de 5% e uma taxa de de 3%. Portanto, é possível ter juros mais baixos e uma inflação sob controle, desde que as causas da inflação sejam controladas.
- Como o senhor definiria a política econômica petista?
- O modelo de política econômica da dupla Lula-Palocci é tipicamente um modelo de "transferência de renda", é um modelo de transferência de fortuna e migalha. Em 2003, transferiram R$ 145 bilhões (a fortuna) ao sistema financeiro e R$ 5 bilhões (a migalha) aos pobres/miseráveis. Para os primeiros, pagam juros; para os outros, concedem benefícios sociais. Em 2004, esses números serão respectivamente R$ 110 e R$ 6,5 bilhões. Só para se ter uma idéia, o orçamento do Ministério da Educação foi, em 2004, aproximadamente R$ 14 bilhões; e o da Saúde, R$ 27 bilhões. O modelo alternativo que a sociedade brasileira precisa é um modelo de geração de renda e empregos, em que os atores principais seriam os trabalhadores e os empresários do setor produtivo.
- Uma alteração de política econômica seria muito difícil e tumultuada?
- O crescimento econômico atual é insuficiente e de continuidade incerta. Não gera postos de trabalho em quantidade suficiente para reduzir significativamente o desemprego (que é superior a 10%) e está apoiado em um cenário internacional extremamente favorável. Caso esse cenário seja revertido, não existe um plano de blindagem da economia brasileira. Bastaria que algumas medidas fossem tomadas para que o modelo atual fosse superado com tranqüilidade e segurança.
Basta ter coragem para contrariar o sistema financeiro e reduzir a taxa de juro, basta que o governo decida que o seu Banco Central vai comprar dólares para fazer reservas e desvalorizar o câmbio. Assim, recursos que são "desperdiçados" com pagamentos de juros poderiam fazer parte de um plano de obras públicas e de transformação do modelo educacional e de saúde. Bastaria pagar de juros, por exemplo, somente R$ 50 bilhões por ano que sobrariam muitos e muitos bilhões para a construção de estradas, ferrovias, hospitais e escolas. Este país precisa ser fisicamente transformado, precisa ser transformado a curto prazo em um enorme canteiro de obras públicas.
- O governo celebra o superávit fiscal e negocia com o FMI o deslocamento de verbas para a infra-estrutura. Não é um avanço?
- O governo não fez o ajuste fiscal necessário. Ajuste fiscal necessário e responsável do ponto de vista de um "modelo de geração de renda e empregos" , ou seja, desenvolvimentista. Significaria tão somente organizar o orçamento de tal forma que os compromissos financeiros pudessem ser honrados, assim como os compromissos com a sociedade brasileira.
O governo tem uma visão muito limitada da administração fiscal, somente observa a necessidade de honrar compromissos financeiros, mas deveriam ter uma visão mais ampla, para enxergar também que é necessário reconstruir o país fisicamente. O governo precisa entender que é possível ter uma visão ampla para se fazer uma boa administrarão fiscal. É possível cumprir esses dois objetivos sem fazer a dívida crescer.
Basta ter uma taxa de juro compatível com o superávit primário gerado. Por exemplo, uma taxa de juros nominal de 8% ao ano, tal como a Colômbia possui, obrigaria o governo a pagar R$ 50 bilhões de juros por ano. Então bastaria fazer um superávit primário de 3% do PIB. Nesse tipo de ajuste fiscal, a dívida não cresceria, porque os juros seriam integralmente pagos, mas o PIB e os empregos cresceriam, porque a taxa de juro, mais baixa, estimularia o investimento e existiriam recursos para a realização de investimentos públicos e programas sociais universalizantes.
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