Por que o Fórum Social Mundial continua atraindo multidões e despertando sonhos, num tempo em que parte da esquerda parece tragada pelo desânimo? Um debate em São Paulo procura explicar o fenômeno, e revela as novidades do encontro mundial das alternativas
Duas surpresas aguardam, a partir de 25 de janeiro, as milhares de pessoas[1] que rumarão a Porto Alegre, atraídas pelo V Fórum Social Mundial (FSM). A primeira saltará aos olhos. O evento deixará a PUC, onde esteve abrigado nas três primeiras edições, para se esparramar por uma faixa de 6 quilômetros, às margens do Rio Guaíba (onde permanecerá o Acampamento da Juventude). Os debates serão realizados em mais de 200 tendas, de diversos tamanhos, construídas e equipadas especialmente para o encontro.
Este Território Social Mundial será composto de onze Espaços, um para cada conjunto de temas2 tratado no Fórum. Redes de Economia Solidária cuidarão do abastecimento (esqueça a Coca-Cola...) e se adotarão práticas de proteção ambiental avançadas (como “lixo-zero” e redução do uso de descartáveis). Todos os computadores usarão sistema Linux e software livre.
Embora menos visível, a segunda novidade é mais profunda. Sobre ela falarão, num debate marcado para a próxima terça-feira, em São Paulo, Chico Whitaker e Oded Grajew, dois dos criadores do Fórum Social Mundial3. O grande encontro mundial das alternativas tem, este ano, outra metodologia. Ela preserva duas marcas registradas do encontro: a diversidade e o caráter horizontal, não-dirigista. Mas acrescenta algo novo. Em resposta a um cenário em que os riscos de barbárie e devastação parecem cada vez mais graves, o FSM busca como nunca, a partir de agora, estimular as ações comuns por um mundo novo.
Pluralismo ou convergências: tensão insuperável?
Como conciliar a valorização de todas as causas, todas as lutas, todas as identidades - um dos grandes encantos do Fórum - com a necessidade de definir certas urgências - algo cada vez mais necessário para que o encontro não se resuma a uma feira de boas vontades? Solucionar este enigma é, desde o lançamento do FSM, um dos maiores desafios intelectuais de seus organizadores. De uma resposta adequada dependem, talvez, as próprias chances de o evento se consolidar como referência de um novo projeto de transformação social.
Seus participantes deliciam-se, a cada ano, com o fato de viverem num ambiente em que a crítica ao capitalismo assume também uma dimensão comportamental. Ao contrário do que ocorre em outros palcos da esquerda, não há disputas por palavras ou vírgulas em resoluções finais, nem votações em que diversos blocos se engalfinham pelo privilégio de serem donos da posição mais “correta”. Por outro lado, é impossível evitar, ao final de cada Fórum, uma pergunta incômoda: quais os caminhos para que os quatro dias desta festa de solidariedade não sejam apenas um sonho, do qual acordamos para um ano de injustiças e asperezas?
A partir outubro de 2003, duas comissões de trabalho do Conselho Internacional do FSM - as de Metodologia e Temas - dedicaram-se à busca de um solução que permitisse articular pluralismo com possibilidade de convergências. A alternativa que será testada a partir de 25 de janeiro, em Porto Alegre, foi construída ao longo de encontros realizados em quatro países. Os documentos do Fórum usam, para resumi-la, uma palavra quase empolada: “aglutinação”. Mas o princípio por trás dela tem a simplicidade de um ovo de Colombo.
As “aglutinações” e seu limite
Partiu-se de uma aposta: os participantes do FSM vão a ele porque têm vontade real de construir propostas e ações comuns; ninguém se desloca milhares de quilômetros apenas para reafirmar seus próprios pontos de vista e se fechar em sua identidade. Abriram-se canais para diálogo. Em abril, as milhares de organizações que freqüentaram os Fóruns anteriores foram convidadas a manifestar, em pesquisa, que debates pretendiam promover em Porto Alegre, e que temas julgam prementes para mudar a sociedade.
A partir de setembro, quando se abriram as inscrições para oficinas e seminários, criou-se um sistema eficiente de comunicação via internet. Cada pessoa ou organização ligada ao Fórum teve, pela primeira vez, condições de verificar quais as atividades já registradas; de pesquisá-las por palavra-chave; de encontrar nome, endereço eletrônico e telefone dos organizadores. Estimulou-se ao máximo o esforço para trocar seminários e oficinas promovidos por uma única organização por outros, em que se estabelecessem o intercâmbio de pontos de vista e a possibilidade de gestar novas alianças e lutas.
Fixou-se um limite: a aglutinação jamais deveria tornar-se impositiva ou centralizadora. Ninguém teve poderes para determinar a alguma organização que abrisse mão de uma atividade, ou se juntasse a outra. Todas as adesões foram voluntárias.
Mais pontuais, muito mais densos e profundos
Alguns resultados apareceram cedo. Há alguns dias, o site oficial do Fórum Social Mundial estampou uma primeira versão, provisória, de toda a programação do evento - que pôde ser corrigida pelos organizadores e voltará ao ar, livre de erros, muito em breve.
É uma revolução, para o FSM. Nos melhores casos, entre as edições anteriores, os participantes tomaram conhecimento do programa apenas na véspera do início dos debates. Já houve atrasos-escândalos: em 2003 (Porto Alegre) e 2004 (Mumbai), o caderno de eventos ficou pronto depois de abertos os trabalhos...
Ainda mais relevante é mudança na qualidade da programação. O número de atividades protagonizadas por uma única organização sofreu um declínio dramático, em relação a 2003. O novo, agora, são criações coletivas, nas quais gente de muitos países troca idéias e desencadeia projetos que podem se estender muito além do próprio Fórum Social Mundial.
Por abundância de opções, ficou muito difícil escolher o que fazer em Porto Alegre. Moedas alternativas? Dirija-se ao Espaço 6: há debates todos os dias, exposições teóricas, relato de experiências, feiras nas quais não se pode comprar nada com reais - só com txais... Saídas contra o poder do Império? No Espaço 9, multiplicam-se as jornadas de protesto propostas pelas campanhas pela paz; no 11, as visões sobre uma ONU reformada e democratizada, que possa ser apoiada como alternativa a Washington. Água, direito humano? Rume para o Espaço 1, dedicado aos Bens Comuns da Terra e da Humanidade. Durante quatro dias, mais de vinte encontros. No início e ao final, os que os promovem debatem a possibilidade de uma estratégia comum.
Nossa aposta, nossas surpresas
No debate do dia 18, Chico Whitaker, Oded Grajew e seus companheiros vão expor outra novidade. Como se não bastassem todas estas chances de somar forças, o Fórum Social Mundial será generoso com quem não as aproveitou até agora. Durante os quatro dias do encontro, estará aberto um período extra-programa (das 7 às 9 da noite), que poderá ser empregado para encontros entre quem descobre, durante o próprio FSM, novas afinidades.
Num tempo em que tantos governos de esquerda parecem integrados à mesmice do pensamento único, e em que a alternativa dos partidos e dos Parlamentos já não empolga como outrora, o FSM poderia ser uma nova referência de utopia? Continuarão a se abraçar, nestes encontros anuais, os que lembram a necessidade das grandes mudanças de cenário, e os que procuram desde já as brechas para construir um mundo novo? É mais uma aposta, talvez outra esperança. Não será possível avaliar suas chances sem examinar, com cuidado, as surpresas do FSM 2005.
– 1- Até 10/1, estavam inscritos mais de 46 mil participantes (ligados a organizações de mais de 100 países) e 28 mil indivíduos, além de 3.458 jornalistas.
– 2- Os onze Espaços são:
- Afirmando e defendendo os bens comuns da terra e dos povos - Como alternativa à mercantilização e ao controle das transacionais;
- Artes e criação: construindo as culturas de resistência dos povos;
- Comunicação: práticas contra-hegemônicas, direitos e alternativas;
- Defendendo as diversidades, pluralidade e identidades;
- Direitos humanos e dignidade para um mundo justo e igualitário;
- Economias soberanas pelos e para os povos - Contra o capitalismo neoliberal;
- Ética, cosmovisões e espiritualidades - Resistências e desafios para um novo mundo;
- Lutas sociais e alternativas democráticas - Contra a dominação neoliberal
- Paz e desmilitarização - Luta contra a guerra, o livre comércio e a dívida;
- Pensamento autônomo, reapropiação e socialização do conhecimento (dos saberes) e das tecnologias;
- Rumo à construção de uma ordem democrática internacional e integração dos povos.
– 3- O debate é uma iniciativa do portal Planeta Porto Alegre. Também participarão José Corrêa Leite (secretaria internacional do FSM), Gert Peukert (Fundação Rosa Luxemburgo), Nabil Bonduki (arquiteto e vereador em S.Paulo, entre 2001 e 2004), Adriano de Angelis (Coletivo Intervozes de Comunicação) e Rita Freire (editora de Planeta Porto Alegre, que fará a moderação). Quando: Terça-feira, 18/1, 19 horas. Onde: Casa da Rodésia: Rua Rodésia, 398 - Vila Madalena - S.Paulo. Informações: Juliana Bruce (11-9438.4600).
Publicado em www.planetaportoalegre.net
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