Palavras de boas vindas, de Alberto Velasco, presidente do Comitê suíço de organização do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fame 2005), que começa nesta quinta (17) em Genebra, Suíça:
“Agora que o planeta produz mais do que nunca objetos supérfluos, dois terços de seus habitantes, que aliás detém a maior parte das riquezas naturais, não têm acesso à instalações sanitárias e um bilhão e meio de seres humanos vivem sem água potável. Eles não têm direito a um bem que, pressupões-se, deve lhes garantir a vida e a dignidade. A água do ponto de vista econômico é um bem comum e não um produto industrial. É um dom da natureza e, a esse título, ninguém pode apropriar-se dela pelo fato de se encontrar oportunamente num lugar e não alhures.”
Palavras bem escolhidas para dar o tom do Fórum onde se tentará costurar uma ampla e sólida frente antimercantilização da água. Bem comum, garantia de dignidade, dom da natureza. Palavras merecedoras também de uma análise acurada e de confrontações com a realidade, informando e estimulando o leitor da Agência Carta Maior, cuja equipe estará acompanhando e comentando o evento.
Não é bem o planeta que produz objetos supérfluos, e a situação talvez seja ainda pior: desse um terço dos terráqueos que teriam acesso às instalações sanitárias, uma boa parte tem o esgoto coletado, mas não tratado. Não precisa ir longe. É exatamente o caso das maiores metrópoles e de tantas cidades brasileiras.
Um bilhão e meio de pessoas que vivem sem água potável? Mais exato seria dizer que elas sobrevivem bebendo água ruim ou perigosa. E os outros cinco bilhões por acaso só bebem água boa? Aliás, com os custos crescentes para tratamento de líquido captado em rios e poços cada vez mais sujos, para se conseguir obter água potável, a tendência só pode ser de agravamento na grande maioria das aglomerações humanas, afetando muitas bacias fluviais em todos os continentes.
Em Genebra, esta semana, a tarefa será difícil para Monsieur Velasco, Monsieur Ricardo Petrella e demais organizadores do Fame 2005, pela abrangência dos tópicos diversos sob uma mesma bandeira, pelo estopim dos interesses antagônicos envolvidos.
Meio vital, insumo, mercadoria
Os discursos sobre a água, mesmo os que são entronizados e circulam na esquerda e nos campos alternativos, estão cheios de armadilhas ideológicas e de indefinições conceituais. Exemplos fortes: Água não é recurso natural, pois só é recurso aquilo que tem ou terá valor econômico. Rio não é recurso, nem manancial de captação, nem corpo receptor, rio é fluxo de água no território, é meio de vida, pode ser até meio de transporte. Rio é ecossistema, é maternidade e estoque de peixe e de outros animais aquáticos e peri-aquáticos. Pode ser para nós uma fonte de água boa ... isto tudo se o rio não estiver barrado ou poluído ou ambos.
Ao contrário de certas disputas verbais, que pouco influem no desfecho real, aqui as armadilhas e indefinições são parte integrante do debate. Dilemas, encruzilhadas e embates da mais alta relevância.
Pra começar, dizer que a água é um meio vital é obvio. Mas, em tempos de desencantamento, é destacarmos nosso vínculo e o concernimento com a vida, a de cada um dos seis bilhões e meios de humanos e a dos que estão chegando a cada dia; e, com a vida em geral, já que o ciclo da água e a existência da vida no planeta são indissociáveis.
Caracterizar a água como insumo produtivo, de amplo uso na economia, é também evidente, basta registrar o uso e a destinação das águas nas atividades hoje praticadas em grande escala:
- irrigação de hortas, pomares e de culturas comerciais,
- interceptação das minas d’água e bombeamento dos aqüíferos profundos e dos rios subterrâneos para uso geral, para coletividades como hotéis, hospitais, clubes, presídios, shoppings, e para venda engarrafada como água potável;
- represamento de rios para uso de água na atividade mineradora e na concentração de minérios, e para a formação de bacias de rejeitos, incluindo o acréscimo de águas extraídas do subsolo durante a lavra;
- represamento ou derivação da correnteza dos rios para aproveitamento ou construção de queda d’água com a finalidade de turbinar e produzir eletricidade;
- captação de grandes vazões dos rios e de aqüíferos freáticos e semi-artesianos para lavagem de cana e de outras safras, para fabricação de açúcar, álcool, de celulose, papel e papelão, para indústria cerâmica, para o refino de petróleo, para o uso em toda a indústria química e toda a indústria de alimentos industrializados e de derivados de carne e de leite, em quase toda a indústria têxtil e assim por diante...
Problemas que advém destes usos são variados, como a subseqüente geração de grandes vazões de efluentes que serão, de um modo ou outro, devolvidos para os rios e mares ou, em muitos casos, a perda evaporativa por causa da geração e utilização de vapor, dos sistemas de resfriamento e das emanações das bacias e tanques.
Se, além disso tudo, incluirmos o fornecimento de água nas cidades e núcleos urbanos, e lembramos que muitas atividades ficam ao longo das mesmas bacias fluviais, ou nos mesmos trechos de um litoral, aí temos o mundo real: cada um pega uma água de um tipo, de um jeito, num ponto do seu longo e repetido ciclo, e cada um pega com um custo diferente; tipos e custos de água podem variar muitíssimo. E pronto: uns sujam ou desviam as águas que outros captarão para seu uso, e assim ela não pode deixar de ser motivo de disputa e de conflito. Aliás, sempre foi, como ilustra antes mesmo da era cristã, a fábula de Esopo do cordeiro e o lobo que bebem no mesmo rio.
Acessar e conduzir a água sempre foi estratégia chave na tribo e entre as nações, como atestam os raros prazeres das termas, e das saunas, a centralidade medieval do chafariz e da fonte, as maravilhas dos aquedutos e a sabedoria dos patamares montanhosos irrigados. No capitalismo, tornou-se uma mercadoria dentre as mais valiosas, promissoras e disputadas.
As empresas multi utilities; os mercados cativos
Nos tempos em que Lênin radiografou o imperialismo financeiro-industrial, os engenheiros Billings e Henry Borden circulavam entre Toronto, Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo para cuidar da infra-estrutura da modernização: os mesmos capitais se juntavam para obter as concessões da usina térmica na cidade, a usina hidrelétrica na serra próxima, as linhas de bonde, a rede elétrica, a operação do porto e às vezes o sistema de gás canalizado, as redes pioneiras de telégrafos e de telefones.
Na época, Mr. Farquhar, seu gerente Mc Kenzie e demais personagens que hoje parecem de ficção engrenaram, com influência e violência nada românticas, várias atividades de tipo imperialista no eixo RJ-Belém-Porto Velho e também no Paraná. Não bastava operar a ferrovia e iluminar a cidade, tinham que exterminar ou expulsar indígenas e posseiros, grilar terras e cortar madeira na faixa da ferrovia, montar projetos de colonização, fundar cidades e regiões.
Hoje podemos ver o renascimento das empresas que se especializam em “multi utilities”, na exploração de redes físicas, ganhando dinheiro com as múltiplas utilidades supridas por infraestruturas territoriais, vendidas a consumidores difusos e grandes usuários concentrados, todos pendurados na mesma rede, possibilitando transferir custos e rendas entre eles.
As mesmas empreiteiras que fazem as grandes obras viárias depois se associam com nomes de fantasia, sonoros como Nova Dutra, Autoban, Via Lagos, e conquistam as concessões de exploração das rodovias: ganham fortunas com o pedágio dos veículos, lançam cabos de fibras óticas na faixa da rodovia, alugam pontos valiosos como os postos de serviços e os centros de lazer nas margens da rodovia, e, em alguns casos, cobram pedágio também das empresas distribuidoras de gás e de água que usam as faixas para a colocação dos dutos e tubos.
As empresas de eletricidade abrem o acesso de suas linhas de transmissão para cabos de dados, as empresas de água e esgotos também aproveitam seu network de tubos enterrado nas cidades e podem acoplar cabos elétricos e óticos, transmitindo dados. O esgoto tratado e até o esgoto bruto podem ser faturados como água de reúso, como fluido de resfriamento de usinas térmicas e de indústrias com grande demanda de vapor. A Sabesp, que cuida do abastecimento de água e do saneamento na capital e em muitos municípios de SP, pode se tornar também uma empresa autoprodutora ou até um produtor independente de energia elétrica, passando a usar suas instalações das represas na Serra da Mantiqueira (Jaguari, Atibainha e Cachoeira) e na Serra da Cantareira (Juqueri) também como usinas hidrelétricas.
De todo modo, uma parte da vazão deve ser sempre destinada às cidades que ficam rio abaixo, como Atibaia, Itatiba, Jundiaí, Campinas, Americana, Bragança Paulista, Pedreira, e tantas outras. A empresa-lobo poderia alegar que está fazendo uma benesse ao usuário-cordeiro rio abaixo, como na fábula de Esopo.
Em Limeira, há dez anos se fez uma privatização pioneira, a Prefeitura passando a operação da autarquia municipal para um consórcio chamado “Águas de Limeira”, formado pela construtora Odebrecht e pela empresa francesa Lyonnaise des Eaux. De lá para cá, aumentou bastante a captação de água bruta no rio Jaguari (rio acima da cidade de Americana), aumentaram as tarifas, e aumentou a carga de esgoto não tratado descarregado no mesmo rio que ali mudou de nome para rio Piracicaba.
No mesmo município, na beira do mesmo rio, o grupo de eletricidade Tratecbel (que no Brasil é o dono da Gerasul, parte da antiga Eletrosul), que integra com a Lyonnaise o mesmo grande capital bancário Indosuez, tentou há três anos implantar um outro projeto pioneiro: a central de co-geração, que usaria um bom fluxo de gás vendido pela britânica Comgás, puxaria água e jogaria efluentes no mesmo rio, dentro das cotas outorgadas para um grupo de sete indústrias (algumas multinacionais, duas locais) que seriam clientes do projeto, comprando dele a eletricidade e o vapor para seus processos industriais.
A “cogeração Anhangüera” não deu certo, mas aponta uma rota já decidida: as multi utilities buscam a perenidade do negócio, se possível, a perpetuidade. Preparam-se para renovar o poderio imperialista. Agora sim, com a transformação da água em mercadoria, com a conversão dos rios e dos poços em jazidas e estoques de lucros a extrair sem restrições, venderão serviços essenciais para consumidores difusos e segmentados, que dificilmente se oporão e resistirão.
Resistências
A força da história às vezes prevalece sobre a decisão estratégica empresarial: foi lá longe em pequenos países e em locais improváveis que o frisson da infra-estrutura começou a ser questionado de frente.
O Uruguai impediu por meio de um plebiscito a privatização da água. Na Bolívia, a revolta de Cochabamba expulsou a Bechtel do poderoso George Schultz. No Peru, pequenas cidades do litoral norte vão retomando das empresas estrangeiras as concessões que foram obrigadas a ceder anos antes. O quê ficará para os próximos artigos, esperando que fatos desse calibre venham à tona neste Fórum Alternativo Mundial da Água.
Brasil de Fato
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