O Correio da Cidadania traz entrevista com o economista João Sicsú, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a respeito da não renovação do acordo do Brasil com o FMI, comunicada dia 28 de março pelo ministro da Fazenda Antonio Palocci.
- Que balanço o senhor faz após seis anos de sucessivos acordos com o FMI?
- João Sicsú: Os primeiros acordos foram realmente necessários. O Brasil sofreu ataques especulativos, suas reservas perderam volume e era necessário recorrer a alguma medida. Ou controle de capital para impedir a desvalorização cambial e a fuga de recursos ou medidas tradicionais, como as sugeridas pelo FMI. O Brasil optou pela segunda alternativa e, nesse caso, a saída era, realmente, a realização de acordos.
No entanto, o último acordo era desnecessário, tanto é que o país não precisou utilizar os recursos que o Fundo colocou a disposição. Do ponto de vista econômico, o balanço é esse. Sob uma perspectiva mais ampla, esse período foi muito negativo para o Brasil. O país absorveu todas as idéias e receituários do FMI. Foi um momento de transferência de idéias de Washington para Brasília. Esse é um aspecto extremamente negativo.
- E o FMI foi preponderante nessa transferência de idéias?
- Acredito que sim. Mas não foi só isso. Na verdade, grande parte da nossa equipe econômica, do Banco Central e do Ministério da Fazenda, se formou nos Estados Unidos. Já aqueles que se formaram no Brasil, o fizeram com as idéias da academia econômica norte-americana. Por sua vez, o FMI também contribuiu ao emprestar recursos apenas aos países que aceitam suas políticas.
- Como isso afetou a economia?
- O resultados dessas políticas do Fundo são conhecidos. Prometem crescimento, estabilidade, redução da pobreza e da desigualdade social, mas os resultados da década de 1990 e do início desta apontam para aspectos extremamente negativos: taxas de crescimento medíocres e aumento do desemprego, da desigualdade e da pobreza. Só na América do Sul o FMI ainda exerce certa influência e desperta simpatia por parte dos governantes, particularmente no Brasil. Nosso país está para o FMI nesta década como a Argentina esteve na década de 1990. O resultado dos nossos vizinhos nós já conhecemos; espero que o Brasil se saia melhor.
- Os governantes utilizam o FMI como um suporte político mais do que econômico?
- Nós já temos um corpo interno, a equipe econômica, que pensa da mesma forma que o FMI. Mas eu diria o seguinte: pensa com as mesmas idéias, mas executa de forma muito mais intensa. O “FMI brasileiro” é mais radical que o “FMI americano”. Isso são os índices que apontam. O Fundo sugeriu para o Brasil um superávit primário de 3,75% e realizamos 4,6%; o FMI até admite algum controle de capital sobre a entrada mas o “FMI brasileiro” tem alergia à palavra controle, sobretudo sobre movimentos de capitais.
Dizem que agora, com a não renovação do acordo - e isso é corrente no mercado financeiro -, a equipe econômica vai realizar políticas muito mais radicais para mostrar à sociedade que as faz pois concorda e gosta delas e não porque estava sobre imposição do Fundo. Quer dizer, nós não precisamos mais do FMI porque temos reservas em dólar no BC ou um superávit regular em conta corrente, mas porque já temos as idéias do FMI internalizadas em Brasília.
- Isso significa que não existem motivos para comemorar a renovação do acordo?
- A única comemoração é que o país deixa de ter gastos com uma reserva de recursos que ele não utiliza. Nós gastamos para fazer o último acordo porque tivemos que pagar aquele cheque especial do FMI, que não é de graça. O ganho é não ter mais esse custo. Poderíamos ter vantagens se rejeitássemos o acordo para mudar a rota da política econômica.
A Coréia, em 1999, não renovou com o FMI para mudar a direção da sua política e, de fato, mudou. A estratégia coreana foi ficar livre do FMI para ter autonomia de fazer políticas diferentes das sugeridas pelo Fundo. Mas estamos ficando livres do FMI para poder aplicar sua políticas com mais intensidade. Não há nada o que comemorar.
- Quem se beneficia com essa incorporação da “cartilha” do FMI na nossa política econômica?
- Políticas macroeconômicas, necessariamente, atendem determinados interesses e contrariam outros. Não existe política macroeconômica neutra. Então, a política adotada no Brasil beneficia um segmento: o sistema financeiro. A quantia gasta em juros é absurda comparada com as despesas dos ministérios essenciais para tornar um pouco melhor a vida dos brasileiros. Gastamos, em 2003, primeiro ano do governo Lula, 145 bilhões de reais com juros. Em 2004, foram 128 bilhões. Já o programa bolsa-família gastou cinco bilhões no primeiro ano e seis bilhões no segundo. Os números são desproporcionais. O sistema financeiro tem uma torneira aberta para receber recursos. As despesas com juros são as únicas que podem ser feitas sem que seja indicada qual é a fonte de receita.
Qualquer outro ministério não pode propor um gasto sem dizer qual será a receita. O BC, quando eleva a taxa de juros, não pergunta ao Ministério da Fazenda se o Tesouro vai ter dinheiro ou não para pagar aquela despesa. Ele simplesmente eleva. Isto atende claramente os interesses do sistema financeiro que, então, tem uma alta rentabilidade, além da liberdade de movimento. Liberdade para entrar e sair com recursos do país. Em outras palavras, isso se chama liquidez.
Isso é uma grande novidade, porque o sistema financeiro sempre aceitou a regra de que quanto maior a rentabilidade menor a liquidez e vice-versa. Agora eles conseguem ter o lado bom da liquidez junto com o lado bom da rentabilidade. É uma política econômica que não privilegia geração de renda e emprego pois não se concentra no investimento em infra-estrutura, em educação etc.
O governo faz um superávit primário de 4,6% do PIB e investe apenas 0,5% do PIB. É uma discussão dividida entre quem defende uma política de geração de renda e emprego e quem está do lado do modelo atual, que tem o objetivo exclusivo de transferir renda para o sistema financeiro e algumas migalhas para a população através dos programas assistencialistas. Este é o modelo do FMI.
- A ortodoxia econômica é mantida por conta do sistema financeiro e não por causa da inflação?
- Sempre se fala em combater a inflação pois ela retira poder de compra do mais pobre. É um argumento usado para sensibilizar a sociedade. Não usam o argumento de que temos de proteger os ganhos do sistema financeiro. Isso ninguém falaria porque, politicamente, é inviável. Mas combater inflação com taxa de juros só beneficia o sistema financeiro. Trabalhadores e empresários perdem já que taxas de juros elevadas desestimulam o investimento empresarial e geram desemprego.
A inflação brasileira, na verdade, é, em grande parte, gerada por preços administrados e a taxa de juros tem pouca influência sobre eles. Mas por que eles elevam a taxa de juros numa magnitude despropositada? Porque os preços livres - como o dos supermercados, por exemplo - ficam mais comprimidos e, para se colocar a inflação nessas metas de 4,5% ou 5,1%, é necessária uma taxa de juros muito elevada.
A inflação brasileira poderia ser controlada com uma taxa de juros muito menor desde que tivéssemos uma política para preços administrados - que, na verdade, estão livres e cresceram, nos últimos anos, muito mais que a inflação. A coisa está de cabeça para baixo. Precisamos ter uma política de controle da inflação mais inteligente, que atacasse as causas e controlasse os preços administrados. Porém, isso não interessa ao sistema financeiro, pois reduziria drasticamente seus ganhos. É só olhar o caso argentino. Em 2004, a inflação argentina foi 6% e a taxa de juros 4%. Mas lá existe uma política de preços administrados. O metrô de Buenos Aires, por exemplo, custa aproximadamente 80 centavos de reais.
- Se essa retórica - combate da inflação com juros altos - continuar prevalecendo, a dívida social pode começar a ser paga?
- Não, a dívida social não existe nesse modelo. O que existe é dívida financeira. Não vislumbro, com esse modelo, a melhoria do sistema de saúde no país, do sistema educacional, reforma agrária, redução do déficit habitacional... É só olhar para as fatias do orçamento que são abocanhadas por cada segmento. O pagamento de juros tem a maior, 145 bilhões de reais. A prioridade é essa. Em nenhum lugar se pagou dívida social com esse modelo. Transferiu-se muita renda do pagamento de juros mas não se transferiu terra, moradia, geração de empregos, poder de compra para a sociedade etc.
Esse modelo não privilegia esse objetivo. Na verdade, o que ele faz é transferir bilhões para o sistema financeiro e atender as necessidades mais básicas, mínimas possíveis, dos miseráveis, distribuindo bolsa-família - que, na verdade, é uma bolsa-esmola. Não vamos resolver o problema do país com este modelo de transferência de renda. O sistema financeiro está feliz com ele e alguns miseráveis também porque agora recebem 50 ou 60 reais e antes não recebiam nada.
No entanto, a solução para o país é geração de emprego. Ou seja, deixar de pagar esses cento e tantos bilhões para o sistema financeiro e transformá-los em gastos em obras públicas, construção de hospitais, escolas, casas e na realização da reforma agrária. Isso sim paga a dívida social e resolve o problema da desigualdade no país.
Ninguém vai resolver um problema de desigualdade dando bolsa-família. Aliás, o objetivo do governo deveria ser acabar com esse programa. Deveriam ser distribuídas cada vez menos bolsas-família, pois isso significaria que nós estamos criando empregos. O governo precisava dizer: “neste ano, vamos quase zerar este programa porque devemos ter gerado 10 ou 15 milhões de empregos e não existem mais indivíduos que não têm renda e, portanto, estariam hábeis a receber o dinheiro da bolsa-família”.
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