A julgar pelo noticiário, o Mercosul está atravessando crise profunda com os conflitos crescentes entre Argentina e Brasil. Mas não há qualquer sinal de colapso nas estatísticas de comércio exterior. A agonia é da concepção liberal de integração, que predominou na América Latina na década passada, e não nos levará a parte alguma.
A julgar pelo noticiário, o Mercosul está atravessando crise profunda, talvez terminal, em razão dos conflitos crescentes entre Argentina e Brasil. Não passa uma semana sem que apareçam na imprensa brasileira, com grande destaque, novas desavenças e tropeços na relação com a Argentina. Kirchner é apresentado como errático e temperamental; Lula, como um frouxo, que não dá aos argentinos “a resposta à altura”.
Formou-se um grupo barulhento de “falcões”, do qual fazem parte inclusive ministros de Estado, que pedem insistentemente “linha dura” com a Argentina e outros países em desenvolvimento. Um desses ministros “falcões” acompanhou o Presidente da República em recente visita à Nigéria e, insatisfeito com o andamento dos negócios e das reuniões, achou bonito fazer tremendas desfeitas aos anfitriões. Mais um pouco e poderia ser enquadrado na lei Afonso Arinos.
O que dizer disso tudo? Sabemos que o entendimento internacional nunca é fácil, especialmente quando existe um histórico de rivalidade, como é o caso de Brasil e Argentina. Além disso, os políticos estão sempre aprontando.
É forte a tentação de usar a política externa como instrumento de política interna, o que significa, freqüentemente, maximizar ou alardear atritos com estrangeiros para faturar com os eleitores nacionais. É possível que esse tipo de cálculo ou outras considerações políticas domésticas estejam presentes no comportamento de Kirchner em relação ao Brasil. Talvez se possa dizer, também, que firmeza não figure entre as principais qualidades de Lula.
Falcões e frangos
E, no entanto, os que pedem “endurecimento” com a Argentina, a Nigéria ou a China não cantam a mesma cantiga quando ocorrem discordâncias e conflitos, não raro graves, com os Estados Unidos ou outros países desenvolvidos. Os nossos “falcões” têm as suas peculiaridades. A experiência mostra que eles estão sujeitos a mutações extraordinárias: transformam-se instantaneamente em frangos ou galinhas, quando lidam com norte-americanos ou europeus.
Seja como for, tem cabimento falar em “crise”, “colapso” ou “agonia” do Mercosul e da relação Brasil-Argentina? Não se deve perder de vista que, nos dois países, há setores poderosos, bem representados na mídia e no governo, que têm interesse em passar essa versão à opinião pública. Quem se limita a assistir televisão e a ler as manchetes dos jornais pode ser induzido à conclusão de que o Mercosul está nas últimas. “Ojo!”, como dizem os argentinos.
Estranha agonia
O curioso é que não há qualquer sinal de “agonia” ou “colapso” nas estatísticas de comércio exterior. Posso citar algumas? Prometo não abusar. Nem é preciso entrar em detalhes. Os grandes números mostram, de maneira bastante clara, que o comércio intra-Mercosul está em vigorosa expansão.
Nos primeiros quatro meses deste ano, as exportações de mercadorias brasileiras para a Argentina aumentaram nada menos que 41% em valor, para US$ 2,8 bilhões. A participação argentina no total das exportações do Brasil cresceu para 8,3% nesse período, em comparação com 7,7% nos primeiros quatro meses de 2004. Depois dos Estados Unidos, a Argentina é o segundo maior mercado individual para o Brasil. Os países do Mercosul foram o destino de quase 10% das exportações brasileiras; os Estados Unidos absorveram 21% do total.
As nossas importações da Argentina também têm crescido, embora em ritmo menor. Nos primeiros quatro meses de 2005, o crescimento do valor importado foi de 16% em comparação com igual período de 2004. Do lado das importações, a Argentina também é o segundo maior parceiro do Brasil, depois dos Estados Unidos.
Estranho dinamismo. São os estertores da agonia, certamente.
Um peso, uma medida
A rápida expansão dos fluxos de comércio em 2004 e 2005, especialmente do Brasil para a Argentina, é uma das principais razões econômicas da tensão entre os dois países. Ao Brasil, cabe ter paciência. Não vamos querer que a Argentina de Kirchner assista passivamente à penetração das exportações brasileiras em seus mercados. Foi-se o tempo em que um ministro de Menem proclamava desavergonhadamente “as relações carnais” da Argentina com um país estrangeiro (os Estados Unidos, no caso). No período Menem-De la Rúa, a Argentina experimentou todas as perversões do chamado neo-liberalismo. Foi seduzida, sodomizada e abandonada. Agora, não quer nem saber de ladainhas liberalóides.
Não adianta, portanto, ministros, empresários e jornalistas brasileiros quererem dar uma de “macho” (entre aspas mesmo) com a Argentina, invocando insistentemente os compromissos de livre comércio negociados nos tempos de Menem, Collor e FHC. Muitos dos argumentos do governo Kirchner são válidos. São essencialmente os mesmos que o próprio Brasil tem de defender nas suas negociações com países desenvolvidos na Alca, com a União Européia e na OMC - ou seja, quando as famosas “assimetrias” jogam contra nós.
Por exemplo: quotas, salvaguardas e outras barreiras são admissíveis num processo de integração, mesmo em áreas de livre comércio ou uniões aduaneiras. O importante é que essas restrições e ressalvas à liberdade de comércio tenham caráter seletivo ou vigorem por prazo determinado. Devem constituir exceção, e não regra. Precisam obedecer a critérios negociados pelos países-membros, não podendo ser impostas arbitraria e unilateralmente por um país.
Eventuais divergências na aplicação de restrições ao comércio devem ser resolvidas, de preferência, de forma negociada ou, alternativamente, por meio de mecanismos de solução de controvérsias definidos nos acordos.
Livre comércio na prática
Um leigo, submetido às manipulações costumeiramente praticadas por políticos, economistas e jornalistas, pode ter ficado um pouco perplexo com o parágrafo anterior. Barreiras em uma área de livre comércio? Não seria uma contradição em termos?
Vou tentar explicar rapidamente (não quero cansar o leitor). Pela legislação internacional, acordos de livre comércio ou uniões aduaneiras não implicam necessariamente total ausência de barreiras tarifárias ou não-tarifárias entre os países-membros. No sistema multilateral de comércio criado depois da Segunda Guerra Mundial, esses acordos são a principal exceção à cláusula de nação mais favorecida, que constitui, como se sabe, um dos princípios básicos do antigo GATT e agora da OMC.
Áreas de livre comércio são consideradas compatíveis com as regras multilaterais quando obedecem a certos requisitos. O principal deles é que a eliminação de tarifas de importação e outras restrições deve dizer respeito a “substancialmente todo o comércio” entre os países envolvidos. Para que um acordo possa caracterizar-se como união aduaneira, requer-se, além disso, que os países participantes apliquem “substancialmente as mesmas tarifas e outras regulações do comércio” ao comércio com não-membros.
Entretanto, nunca houve consenso no GATT e na OMC quanto ao significado exato dessas definições. Assim, muitos acordos de livre comércio e uniões aduaneiras excluem da liberalização setores importantes da economia dos países envolvidos, como agricultura e têxteis. Áreas de livre comércio e uniões aduaneiras “puras” ou “perfeitas” são muito raras, a rigor inexistentes. Por maior que seja a integração entre nações, sempre existe uma ou outra exceção, um ou outro setor da economia que fica em alguma medida à margem do processo de liberalização externa (ou consegue compensações internas para fazer face à concorrência estrangeira).
Uma concepção não-liberal de integração
Como imaginar que o Mercosul, composto de países muito diferentes em termos de tamanho, características estruturais e níveis de desenvolvimento, possa constituir uma exceção a essa regra geral? Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai conviverão melhor, com menos atritos, se o modelo de integração for definido e aplicado de forma flexível.
A tarifa externa comum continuará admitindo exceções importantes e poderá ser revista quando necessário. O comércio intra-Mercosul terá de ser parcialmente regulado e submetido a restrições seletivas. Os países-membros devem conservar certos direitos, presentes no regime GATT/OMC. Por exemplo: o direito de adotar restrições temporárias ao comércio em caso de dificuldades graves de balanço de pagamentos; o de proteger indústrias nascentes durante a sua fase de consolidação; o de aplicar barreiras temporárias quando aumentos súbitos de importação causarem danos a setores da economia nacional; o de proteger as suas empresas contra a concorrência desleal, subsídios e “dumping”.
Tudo isso pode ser objeto de clara definição e aplicação equilibrada no âmbito de acordos regionais.
O Mercosul precisa se desenvolver e consolidar como acordo de comércio e projeto de integração. Mas essa consolidação não será possível se o Brasil insistir em aplicar os dogmas econômicos dos anos 90. Ao contrário, bater nessa tecla enfraquecerá o bloco e minará a aliança com a Argentina, que é fundamental para a política externa brasileira em seu conjunto.
A agonia não é do Mercosul. O que está agonizando é a concepção liberal de integração, que predominou na América Latina na década passada, e não nos levará a parte alguma.
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