Sem discussão, em um processo similar ao que ocorreu com a votação da lei Monsanto de “bioinsegurança”, os senadores mexicanos aprovaram, dias 27 e 28 de abril, duas leis que instrumentalizam a privatização dos recursos genéticos e a concessão de patentes sobre conhecimentos tradicionais indígenas.
A medida não é surpreendente. Condiz com a brutal “blindagem legal” que o Congresso está fazendo para assegurar a privatização dos recursos estratégicos mexicanos. Já foram aprovadas, com participação de todos os partidos, a Lei Nacional de Águas (abrindo as portas para as empresas), a Lei Monsanto (liberando transgênicos) e outras normas, complementadas com programas governamentais ou normas oficiais.
Mas essa postura não deixa de ser terrível, mais ainda quando o abuso dos termos parece ser algo rotineiro para os legisladores. Tudo ocorre em nome do “desenvolvimento sustentável” (será o das transnacionais?) e do “progresso”, em particular das comunidades camponesas e povos indígenas, paradoxalmente os que mais sofrem o impacto dessa lei.
Piratas Modernos
A iniciativa da Lei de Acesso e Aproveitamento dos Recursos Genéticos segue as diretrizes que as transnacionais definiram no Convênio da Diversidade Biológica das Nações Unidas, feito com o objetivo de transformar biopirataria em “bioprospecção”. Mediante contratos e pagamento de umas moedas a quem aceitar vender o patrimônio comum em nome de todos, a biopirataria ascenderá à categoria de “desenvolvimento científico”, com fins comerciais diretos ou indiretos.
O mais importante, no entanto, é que essa prática ganhará valor legal.
Trata-se de uma decisão ao estilo do que fez a coroa inglesa do século 16. A corte, em vez de condenar o famoso pirata Francis Drake, deulhe apoio oficial e nomeou-o sir em troca de uma parte do saque.
Se aprovada também na Câmara dos Deputados, a lei estabelecerá que quem quiser explorar, investigar, usar, patentear e aplicar comercialmente os recursos genéticos (tais como plantas e animais silvestres, microorganismos, fungos, insetos) poderá fazer, desde que previamente o “legítimo possuidor ou proprietário do terreno onde se encontra o recurso biológico” consentir, em um contrato de bioprospecção. Esse documento deve incluir cláusulas para uma suposta “divisão dos benefícios”.
Como Drake, isso é o que já faziam muitas empresas transnacionais junto a universidades nacionais ou estrangeiras e com a mediação de ONGs internacionais (por exemplo, WWF, Conservação Internacional, The Nature Conservancy) ou algumas ONGs locais que vêem na biopirataria uma “receita extra” para as comunidades.
Resistência
Ocorre que os quatro contratos de biopirataria mais extensos e denunciados no México foram cancelados ou não renovados graças às denúncias e aos fortes protestos de comunidades e de organizações civis, e ao ambíguo marco legal que existia sobre o tema. São eles: o projeto ICBG Maya em Chiapas, entre a Ecosul, a Universidade da Geórgia e a empresa Molecular Nature; o ICBG Zonas Áridas, entre a Universidade do Arizona, o Jardim Botânico da Universidade Autônoma do México (Unam) e a empresa Wyeth; o projeto Biolead em Oxaca, entre a Novartis e a associação ERA; e a bioprospecção de enzimas do Instituto de Biotecnologia da Unam e Diversa Corporation.
A Lei dos Recursos Genéticos pretende eliminar, justamente, a característica ambígua da legislação mexicana. As transnacionais não poderão evitar a denúncia e a resistência, mas usando o expediente da “divisão dos benefícios” podem conseguir jogar uma comunidade contra outra ou simplesmente calá-las.
Outro aspecto é que a lei aceita que os recursos genéticos - ou suas derivações - possam ser patenteados, ou seja, privatizados, sem discriminar se são recursos coletivos e públicos, parte dos territórios dos povos indígenas ou produto do trabalho e conhecimento coletivo dos camponeses e indígenas.
Os senadores dizem reconhecer esse fato, já que esses devem “ser consultados” e confirmarem seu consentimento, desde que sejam “os legítimos possuidores ou proprietários”.
Por exemplo: no caso de uma planta medicinal presente em várias regiões, uma comunidade se diz proprietária do recurso genético e pode firmar um contrato autorizando sua venda e, posteriormente, patenteamento. A lei estabelece que, para definir quem são os “legítimos proprietários ou possuidores”, deverá ser consultada a Procuradoria Agrária. Mas, apenas em 2004, segundo estatísticas do próprio órgão, havia 62,7 mil demandas por reconhecimento de posse. A tendência é que esse número cresça com a promulgação da lei. Não somente vai se legalizar a biopirataria e o fim da biodiversidade, também se provocará conflitos entre comunidades por quem chegou primeiro a vender os recursos comuns.
Biodiversidade
Da mesma forma perversa, os senadores votaram alegremente que também poderão ser vendidos e patenteados os “conhecimentos tradicionais e coletivos” sobre a biodiversidade. Além disso, modificando a Lei de Propriedade Industrial, criam um Registro Nacional sobre o Conhecimento Tradicional vinculado aos recursos biológicos, e a Medicina Tradicional Indígena, que colocará à disposição das empresas transnacionais os conhecimentos indígenas sistematizados. Às comunidades, será outorgado “o direito” de registrá-los e, aos indivíduos, o de patenteá-los.
Tanto o Terceiro Congressso Nacional Indígena, em 2001 - que teve a participação de mais de 3 mil delegados de praticamente todos os povos do México - como os fóruns de médicos tradicionais indígenas já manifestaram sua clara oposição à biopirataria, à bioprospecção e ao patenteamento dos seres vivos e conhecimentos. Ao que parece, esses não contam como “legítimos possuidores” de conhecimentos nem de territórios, já que os senadores sabem melhor do que eles o que lhes convém. Igual ao que passou com a contra-reforma da lei sobre direitos e culturas indígenas.
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