É preciso levar a sério e arcar com as conseqüências políticas e morais das escolhas feitas frentes aos seus e frente à história. As reflexões de um ex-secretário de Defesa dos EUA podem ensinar algo sobre uma crise produzida por escolhas encobertas sob a névoa da guerra ideológica.
“Há uma expressão maravilhosa: ‘A névoa da guerra’. O que significa? Significa o seguinte: que a guerra é muito complexa, que está além da capacidade humana em dar conta de todas as variáveis. Nosso julgamento e nossa compreensão não alcançam. E matamos gente, desnecessariamente”.
Essa descrição, feita pelo ex-secretário de defesa dos governos Kennedy e Lindon Johnson, e adversário histórico das gerações da esquerda dos anos sessenta, por ter sustentado a guerra do Vietnã, talvez possa dizer algo a respeito do que se está vivendo hoje, no Brasil, à esquerda.
Essa esquerda envolve, decerto e ainda, o Partido dos Trabalhadores. É para quem está ofendido, imerso na névoa, sem saber em quem acreditar, que este texto quer se dirigir. Pois a lição contida nessa descrição, acima, de Robert Strange McNamara, é a seguinte: é preciso levar a sério e arcar com as conseqüências políticas e morais das escolhas feitas frente aos seus e frente à história.
Certamente McNamara não é, para a esquerda, uma referência a ser reivindicada, na sua história de lutas, derrotas e árduas conquistas. McNamara é um exemplo bem acabado do ideal norte-americano de homem vitorioso. Portanto, a história que lhe concerne não é a história dos que morreram sob as bombas ou o agente laranja, no Vietnã, sob seu comando. Nem a dos que resistiram e resistem às guerras do Império.
Também não é a história daqueles que perecem pelas ações do Banco Mundial, por ele dirigido, a título de “fazer o bem”, quando deixou o Pentágono, em 67.
Talvez, contudo, haja algo a ser apreendido com esse poderoso estranho.
E não, apenas, em obediência à exigência hobbesiana de que respeitar o adversário é uma regra de prudência indispensável à sobrevivência: é porque McNamara foi e ainda é um dos mais decisivos expoentes de uma concepção de mundo e de guerra, portanto de luta, inclusive política, que a esquerda já teve e terá. Perto de McNamara, um deputado de legenda de aluguel, de nosso lamentável parlamento, pode ser comparado a um paramécio, em termos de ética.
"Sob a névoa da guerra"
No extraordinário documentário “Sob a Névoa da Guerra: onze lições da vida de Robert S. McNamara” (“The Fog of War”, EUA, 2003), de Errol Morris, pode-se ter uma perturbadora aula sobre o pensamento liberal. Sobretudo, para além do pensamento, de como o liberalismo leva a cabo, à realidade e à história, suas crenças, passando por cima de tudo e de todos.
Quem é de esquerda certamente ganha algo assistindo ao filme e pode ganhar, acima de qualquer incômodo ou indignação que se venha a sentir, a compreensão de como é que, levado a sério, o liberalismo impõe, ao mesmo tempo, a complacência frente à história e a guerra, como condições da própria política.
O que pode ter isso a ver com o espetáculo dos últimos dias, no país? Trata-se da tentativa de defesa, por redução ao absurdo, do governo Lula frente às denúncias da oposição? Não. Quem acusa é liberal e portanto é um miserável que quer “nos derrotar”, simplesmente? Quem dera fosse simples assim.
As escolhas de Robert McNamara e seu discurso sobre elas oferecem algumas lições no terreno da ética e da responsabilidade. Há quem se indigne com isso: como se pode dizer que o homem que decidiu usar o agente laranja, que até hoje vitima pessoas, no Vietnã, tem algo a dizer sobre ética e responsabilidade? Usamos aqui uma distinção não corrente, de ética: ela não se define como uma prerrogativa individual de honestidade com a “coisa pública”, como uma qualidade separável do mundo, resultado de uma espécie de contenda, absolutamente privada, onde reside, aleatoriamente, em cada um, o bem ou o mal.
A ética, no sentido aqui disposto, pode ser compreendida com Hegel: trata-se de um conjunto de hábitos, costumes, representações institucionais, políticas e econômicas, que compõem uma concepção e a experiência no mundo presente, atuante e condicionante das ações políticas dos homens, inclusive com possíveis repercussões morais, pelas quais os indivíduos sempre, e muitas vezes antes de suas escolhas, respondem e devem responder.
É o caso de dizer que ético, nesses termos, é quem age em função dessas condicionantes. É claro que McNamara cometeu inúmeras imoralidades, e que Hegel jamais poderia ser jogado na vala comum do relativismo moral.
No entanto, a atitude de McNamara nunca foi resultado de uma escolha puramente particular, tributária de suas concepções privadas, alheias à sua leitura da história e da política. Suas escolhas morais sempre estiveram condicionadas por uma escolha prévia, na verdade, por uma crença prévia: a crença liberal que admite uma complacência, muitas vezes assassina, na história, como foi o seu caso e como se pode observar no documentário do qual sua figura é objeto.
Se tudo isso pode fazer algum sentido, ainda que incômodo, então talvez possa fazer algum sentido voltar os olhos para uma lição desse homem, a título de limpeza de campo do que se está passando, no Brasil.
Porque o tratamento da guerra sob a imagem de uma “névoa”, de uma complexidade que escapa aos indivíduos comuns e que - condição dessa tese -, resvala na incapacidade humana de superar uma espécie de condição de sua natureza constitui uma escolha prévia para, se for “o caso”, liquidar pessoas, países, partidos e governos, como sempre fizeram e perseveram fazendo.
Uma das crenças liberais mais poderosas é a de que a barbárie é constitutiva da “natureza humana”; é assim que McNamara julga não ser possível mudar, pelo menos não tão cedo, a “natureza humana”....
Contra essa falsa modéstia liberal, teoricamente acabada e praticamente destruidora, o socialismo nasce com a pretensão, entre outras, de recusar, tanto as “névoas” como a alegada, imodestamente, “incapacidade humana” em lidar com as variáveis que conduzem o homem à guerra, à morte, à fome e à destruição, muitas vezes de países inteiros, como se está a assistir, hoje, no Iraque, por exemplo.
As escolhas e os seus custos
O que se quer dizer, aqui, sem qualquer falsa modéstia, é que guerras, lutas, bombas e destruições massivas não são resultado de escolhas aleatórias ou de meia dúzia de figuras aberrantes que podem ter freqüentado o pentágono ou o Planalto Central. Não são atos desenraizados de escolhas políticas e históricas prévias.
Disso se segue ou deve seguir, nos passos do próprio McNamara, que não dá para ser liberal sem agir como manda o liberalismo, assim como se segue que não dá para fazer escolhas políticas sem custos morais evidentes e mesmo elementares, pelo menos para aqueles que, não sendo nem se dispondo a agir como paramécios, levam a sério suas escolhas.
Disso não segue, porém, e contra os passos de McNamara, que as conseqüências dos atos serão merecedoras de uma complacência, eventualmente assassina e devastadora de países inteiros, baseada no recurso retórico de que “a realidade é complexa demais”, de que tudo se passa como se a “névoa da guerra” fosse inevitável e constitutiva, também, da própria natureza humana.
A esquerda responde e sempre respondeu a esse diagnóstico apostando na contingência da barbárie e na necessidade da razão, do que há de melhor, de mais livre e elevado, na - vamos lá - “natureza humana”. Apesar de constantemente acusada de otimista, por fazer essa escolha, sempre que ela é respeitada, a humanidade, os países e os partidos experimentam liberdade, e não opressão. Experimentam democracia e não exclusão e os filhos desta, a barbárie.
É claro que um liberal sério tem de levar a sério essa barbárie “constitutiva” da “natureza humana”, para justificar sua complacência frente à própria barbárie. No entanto, um socialista sério ou, mais modestamente, quem é de esquerda tem de levar a sério, com a mesma intensidade, que suas escolhas políticas ecoam na sua moralidade.
E isso inclui, para ambos os casos, do liberal e do socialista, o modo como enfrentam os seus erros. A postura complacente dos “guerreiros” do liberalismo, principalmente imperial, trata dos próprios erros com a mesma complacência com que tratam a devastação de Hiroshima e Nagasaki, ou com que tratam dos desvalidos de suas promessas econômicas.
Os que ficam para trás, cada vez em maior número, nunca são contabilizados na perspectiva complacente. A postura de quem é de esquerda, frente aos seus erros, tem, ao contrário, a regra constitutiva da prerrogativa de não ser autorizada a ser complacente. E essa é uma das razões pelas quais a esquerda tem a pecha histórica da crueldade e do autoritarismo, atribuídas pelos liberais complacentes....frente à própria barbárie. Mas é preciso não se enganar com essa acusação, ideológica e “enevoada”, que parte do liberalismo.
Porque essa devida falta de complacência é, na mesma medida, uma das razões pelas quais a superioridade moral da esquerda, frente à direita, sempre foi inconteste. Até hoje, por exemplo, quem é de esquerda, seriamente, exige de si mesmo uma leitura crítica, para dizer o mínimo, do que se passou sob Stalin, na ex-União Soviética. Quem é de direita, ou “liberal”, o que, noves fora o espetáculo, joga para o mesmo lado, não costuma sentir-se responsável pelas ditaduras militares na América Latina, nem pelo Franquismo na Espanha, nem por Hitler, nem por Mussolini. Não se sentem responsáveis pelo racismo, pelo patriarcalismo, pela fome, pela miséria. Flanam na história, matando desnecessariamente, como disse McNamara.
A névoa que nos encobre agora
Agora vamos, qual é mesmo a névoa da guerra que nos concerne, hoje, no Brasil? Se tem um ponto em que as lições de McNamara são claríssimas, é este: a disposição de uma névoa é condição de completude de seu argumento.
Isso quer dizer que, sem névoa da guerra, ideológica e política, a brutalidade da natureza humana não se sustenta como condição ontológica da própria barbárie, o que pode incluir não apenas o massacre de povos e países, mas a interrupção de processos democratizantes ou mesmo de um programa de transferência de renda, sem esquecer do principal: o aniquilamento dos adversários que, constitutivamente, podem ameaçar os senhores da barbárie: a esquerda ou o socialismo.
A política, principalmente sob a hegemonia liberalizante, não é o reino da verdade, onde a prova desempenha um papel constitutivo. A política liberal, ensina McNamara, é o reino da “névoa”, de uma complexidade co-dependente da barbárie humana. Portanto, é nesse terreno ladino que caminhamos. E é sobretudo com ele que temos de arcar, se nos dispormos a ser algo mais que paramécios, frente ao governo Lula.
É o caso, então, de se enfrentar dois pontos: o erro político central do governo, até aqui, e o modo como o tem enfrentado e, por conseqüência, a indignação dos petistas em particular e da esquerda em geral, frente a isso. Com relação ao erro do governo, talvez seja suficiente dizer que não é possível e que portanto não faz sentido levar a cabo um programa democratizante de governo com base, somente, nas relações com o congresso nacional.
Mesmo que o parlamento brasileiro fosse composto por mandatos efetivamente livres, e não de fato vinculados, seja aos lobbys, seja ao dinheiro que vem ao bolso de boa parte dos seus para que votem, desde sempre; ainda assim, a escolha política de restringir a ação do governo à relação com o congresso, sendo um governo capitaneado por um partido de esquerda, implica um grave erro histórico.
Quem está disposto a enfrentar a dureza do inegociável?
Admitir esse erro pode ser um bom começo, então, tanto mais, porque o Congresso Nacional brasileiro está muito longe dessa hipótese aventada. No entanto, já que se está falando de seriedade, aqui, talvez caiba uma pergunta: quais passos políticos têm sido dados para superar os erros cometidos nessa restrição das ações políticas ao congresso nacional? Assistiremos, passivos, daqui em diante, ao governo Lula tornar-se refém de partidos e quadros políticos que não vacilarão em criminalizar a esquerda, sem provas, como sempre fizeram e como estão fazendo?
Os petistas e aqueles que se julgam de esquerda, e estão indignados, também merecem atenção, aqui. Afinal, este texto só quer fazer algum sentido porque a eles dirigido. Quem, na esquerda em geral e no PT em particular, está mesmo disposto a enfrentar a dureza do inegociável, politicamente? Quem, levando a sério as escolhas políticas que são feitas, quando se é de esquerda, sustenta a guerra e se dispõe a desmascarar a névoa da guerra que já está montada, exaustivamente, na mídia? Faz sentido, eticamente, defender a “ampliação” do PT e indignar-se perante a figura e o poder de um Roberto Jéferson? É ético ou pode ser ético, neste momento, calar-se e envergonhar-se, por escolhas políticas que não foram feitas à esquerda? Se sim, então só cabe a obediência à recomendação histriônica do “luto rápido”, ou seja, antes das próximas eleições. Se não, é hora de ir à luta, para começo de conversa, porque a névoa da guerra é, antes e sobretudo, ideológica, classista e política.
Quem, na esquerda, reduzir o que se está passando no Brasil, a um mero drama moral, estará, portanto, procedendo sem respeito à ética e à responsabilidade da própria esquerda.
É preciso levar a sério e arcar com as conseqüências políticas e morais das escolhas feitas frente aos seus e frente à história.
Mesmo que essas escolhas não tenham sido feitas pela imensa maioria dos petistas, mesmo que a esquerda nacional tenha sido, do processo que por elas deliberou, alijada, ainda assim - ou por isso mesmo -, é hora de reagir e, então, como disse T.S.Eliot: “Voltar ao início, e conhecê-lo como se fosse pela primeira vez”. Voltar ao partido e sustentá-lo, para não se enganar a respeito do falso, porque despolitizado e submisso ao espetáculo, direito de indignar-se. Essa talvez seja uma lição responsável e dignificante, contra os adversários que, como disse McNamara, matam, desnecessariamente, como sempre o fizeram e perseveram fazendo, apostando na barbárie.
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