“CNN go home!”. Esse poderia ser o lema da Telesur, o canal latinoamericano que estréia em julho e cujo jornalismo será dirigido pelo colombiano Jorge Enrique Botero. Em entrevista exclusiva, Botero fala sobre os planos da nova emissora financiada pelos governos da Venezuela, Argentina, Uruguai e Cuba.
Especialista na cobertura de conflitos armados, Botero solta uma gargalhada quando perguntado se “Chávez vai declarar guerra a Ted Turner”, criador da cadeia de TV norte-americana CNN. “Não gostaria de entrar em guerra com a CNN, mas você pode estar certo que faremos uma batalha leal no campo da informação. Nos separa uma concepção de jornalismo e um modo de olhar a notícia. Veja o caso do Iraque: enquanto eles falam de guerra, nós dizemos invasão, enquanto eles privilegiam os ataques aliados, nós colocáramos as câmeras junto às vítimas civis”.
Botero conversou com a Agência Carta Maior no momento em que a CNN celebra seus 25 anos com 260 milhões de telespectadores e um faturamento multimilionário. O orçamento da Telesur é de apenas 2,5 milhões de dólares, valor aportado pela Venezuela (51%) e por Argentina, Cuba e Uruguai (49% somados). A ausência mais sonora é a do Brasil, que impulsiona seu próprio canal internacional, uma decisão que marca uma sutil distância com a estratégia comunicacional bolivariana.
Os responsáveis pela Telesur sabem que, por alguns anos, não haverá sobressaltos econômicos: os altos preços do petróleo garantem recursos frescos que chegaram na forma de publicidade da PDVSA (a estatal venezuelana do setor petrolífero). Segundo Botero, é a primeira vez que, na Venezuela, os lucros resultantes da exploração do petróleo “se voltam para o povo e para projetos como este”.
Ainda que a estrutura da Telesur esteja distante da gigante CNN, o editor não se desanima. “Estamos trabalhando com um espírito heróico, somos conscientes de que estamos nos lançando contra as grandes redes da informação desafiando o olhar e o pensamento único. Este gesto é possível porque existe um contexto geopolítico de relançamento do eixo Sul-Sul”.
A Botero não aflige que seus detratores tenham batizado a nova emissora como “TV Al Bolívar”, em alusão ao canal árabe que luta palmo a palmo com as grandes cadeias ocidentais. “Respeitamos o extraordinário trabalho da TV Al Jazira e já firmamos um convênio com eles para que tenham um escritório em Caracas”, diz. Mas se incomoda quando a oposição venezuelana prognostica que a Telesur acabará sendo uma “Telechávez”, algo assim como uma versão ampliada do “Alô Presidente”, programa conduzido por Hugo Chávez todos os domingos.
- Como vocês pretendem evitar que a Telesur se torne um órgão de propaganda oficial?
- Dias atrás alguém perguntou o que faríamos quando começássemos a sofrer pressões derivadas do fato de se tratar de um canal de gestão estatal de quatro países. Quem perguntou foi um jornalista da Rádio Caracol, da Colômbia, recém comprada pelo grupo espanhol Prisa. Respondi a ele: “bem, homem, eu faria o mesmo o que você faz quando aparece um dos donos de tua empresa, que é tratar de conservar a independência jornalística”.
- E se o próprio Chávez pedisse para “corrigir” algum título?
- Somos um grupo de jornalistas de larga trajetória que fomos construindo uma carreira de credibilidade. Estou consciente de que haverá circunstâncias difíceis e é legítimo que, quem põe o dinheiro para criar o canal, aspire ter alguma incidência nele. Mas nem eu nem meus colegas, como o diretor, que é o uruguaio Aram Aharoinan, viemos para fazer propaganda barata ou um pasquim oficialista.
- Por que o Brasil não se integrou a Telesur?
- O governo do presidente Lula vinha trabalhando desde antes em um projeto próprio para colocar a informação e a imagem brasileira no exterior, a TV Brasil internacional. O fato de que o governo brasileiro não seja acionista não impede que tenhamos em curso várias formas de colaboração operacional e de conteúdos. Temos firmado dezenas de convênios, um deles com o canal do Senado. No terreno jornalístico, o Brasil merecerá um intenso acompanhamento por parte da Telesur. Nosso escritório estará a cargo de Beto Almeida e contaremos com dois correspondentes.
- Qual será a estrutura da programação?
- Haverá 45% de informação, com uma equipe de correspondentes fixos nos Estados Unidos, México, Argentina, Bolívia, Brasil, Venezuela, Cuba, Uruguai, Colômbia e Venezuela. Serão 24 horas de transmissão divididas em 3 blocos, acompanhando a notícia mas sem se descuidar de temas esquecidos pelo radar dos meios comerciais. Teremos uma agenda própria, seguiremos a expansão das bases militares norte-americanas, a guerra da água na Amazônia, a luta do MST no Brasil. Também haverá programas dedicados aos personagens anônimos do continente como “Maestra Vida” e “Telesurgentes”, sobre as lutas populares na América Latina. Trabalharemos com uma agenda real, não somos louquinhos que inventam temas.
- O que está sendo preparado para o lançamento?
- Haverá programas dedicados a Bolívar e vários especiais relacionados com notícias em desenvolvimento. Também teremos notícias, crônicas e um encontro virtual dos quatro presidentes que fazem parte do controle acionário. Para julho, possivelmente, teremos terminado várias investigações formidáveis que estão em preparação, mas não peça premissas.
- Alguma pista?
- Poderíamos ter algo sobre a Tríplice Fronteira...
- A solenidade é habitual nos canais oficiais. Qual será a estética da Telesur?
- Seremos tudo menos solenes. Diria que, em termos de linguagem, seremos até desafiadores, quase experimentais. Já estão em marcha programas como “Cinexcepción”, onde estreiaremos filmes latinoamericanos, e “Voces em la cabeza”, onde se ouvirá ska, rap, hip hop e até música eletrônica. O que digo a você e a todos os céticos é uma só coisa: assistam-nos.
- Vocês se animariam com a idéia de produzir um desenho animado ou uma série iconoclasta sobre Bolívar?
- Como não? Não creio que seja uma heresia, é parte de nossos sonhos. Quero que o canal trabalhe na área da ficção e Bolívar está nos planos. Realizaremos séries dramatizadas abordando a história e temas atuais. Fixe-se que, no dia de lançamento, teremos uma aproximação bastante ousada da biografia do Libertador, nada empolada. Apresentaremos um Bolívar humano, falível, mais como contou (Gabriel) García Márquez ou como o descreveu (José Carlos) Mariátegui.
- Em certas ocasiões a burocracia estatal obstaculiza as produções independentes...
- Aqui haverá lugar para todos, a única coisa que não se verá é lixo. Está em planejamento um ciclo chamado “Nojolivud” que, no lugar de supreproduções, apresentará produções proibidas nos circuitos comerciais. Haverá liberdade total para a produção independente. Já está em curso a Oficina Latinoamericana de Conteúdos, que é um pequeno instituto com o qual manteremos contato com os milhares de documentaristas e realizadores que estão espalhados pela América Latina. Queremos produzir com eles.
- Você falou de pensamento único. Cabe pensar que existe também um pensamento jornalístico único?
- E como não? Muito mais quando vemos como tem sido a cobertura das guerras nestes últimos anos, com a identificação das grandes redes com os interesses informativos do Império. A auto-censura é, talvez, o pior dos males de nossa profissão e para nos contrapormos a isso estamos recorrendo a jornalistas jovens, ainda que, muitas vezes, também os jovens estejam já algo contaminados pelas escolas de jornalismo.
- Mas, para além de certas práticas, esse pensamento único penetra também alguns valores jornalísticos?
- Veja você a tão mencionada objetividade jornalística, um mito reverenciado que é empregado para salvar as aparências. Eu não creio nela, mas sim em um valor cada vez mais esquecido, a independência. Tomei para mim uma frase de uma história de Lucky Luke (da história em quadrinhos), onde o cowboy fazia as vezes de guarda-costas de um editor do longínquo oeste que dizia “independência sempre, neutralidade jamais”. Na Telesur, adotarei esse ditado, mas já sabemos que às vezes se paga caro.
- Por que?
- Porque defender um pensamento jornalístico autônomo equivale a defender a soberania, a autodeterminação, dois princípios que o Império não admite.
Magro, grisalho, de voz rouca, Botero passou anos na selva onde filmou “Capturados na Colômbia”, reportagem que registrou testemunhos inéditos de guerrilheiros das Farc e um grupo de americanos que até hoje continuam seqüestrados por eles. A CBS se interessou pelas revelações inéditas da reportagem e a transmitiu em seu programa “60 Minutos”.
- Como será o relato dessa guerra na versão da Telesur?
- O relato dessa guerra exigirá o melhor de nós, começando por deixar bem estabelecido qual será o foco e nossa política editorial. O governo colombiano nega que exista um conflito. Nós, em troca, diremos que há um conflito devido a décadas de exclusão social e política, e que a solução só será encontrada pelo caminho do diálogo. Seremos promotores do diálogo. Jornalisticamente, a pauta será dar voz a todos os protagonistas, aos que perderam suas casas e terras, aos familiares dos soldados e inclusive aos grupos rebeldes, sim eles são parte da notícia. Segundo parece isso já incomodou algumas pessoas.
- A que tipo de incômodo se referes?
- Abrimos um escritório em Bogotá e, sem ter gravado uma hora de programação, nosso correspondente William Parra foi alvo de um ataque violento, sendo apunhalado cinco vezes. Nós temos sido cautelosos ao fazer a denúncia, não queremos pensar que tenha sido conseqüência dele ser jornalista da Telesur, mas informamos o ocorrido a organismos de defesa dos direitos humanos, ao governo e aos sindicatos profissionais. Esperamos que não se repita.
Especial para a Carta Maior
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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