A principal rua do comércio estava coberta de água. Pranchas faziam a ligação entre as casas. O mercado antigo ficou ilhado. Não houve tragédia. Mas, como sempre, políticos e demais intermediários angariaram dinheiro e produtos para os "flagelados". E, como sempre, só uma parte da colheita chegou aos destinatários.

Da grande cheia de 1976 eu participei intensamente. Saí de avião de Belém para Altamira. De Altamira, por terra, até Porto Vitória. Fretei um barco (por coincidência, de uma pessoa conhecida: o comerciante e prefeito de Alenquer, Édson Macedo). Desci o Xingu, passei por Porto de Moz e fui chegar a Almeirim de madrugada. Sempre de barco, com muitas escalas, fui até Manacapuru, no Amazonas, em 12 dias de viagem marcante. Escrevi várias reportagens para O Estado de S. Paulo e O Liberal. Parte delas foi aproveitada em meu primeiro livro, Amazônia: o anteato da destruição.

Ao final da cobertura sobre a cheia de 1976 havia uma questão científica por responder: o fundo do leito do rio Amazonas estaria sendo assoreado pela deposição de sedimentos em excesso carregados em suas águas, em função de desmatamentos a montante? Mais raso, o rio transbordava mais. Era a tese que alguns técnicos defendiam. Mas o "flagelo" passou e ninguém mais se preocupou em responder. O fenômeno anual continuou a marcar a vida de parte da população da região e a demandar respostas dos interessados, ou simples curiosos.

Sempre em torno das cheias dos rios. Seca, para nós, até este ano, ao menos na bacia amazônica, era palavra estranha, exótica. Nossa indústria - raquítica, mas rendosa para uns tantos - era a da enchente. A da seca era coisa do Nordeste. Daí a surpresa, o espanto e a perplexidade diante do que está acontecendo no Baixo Amazonas e na parte leste da Amazônia Ocidental, além de atingir afluentes da margem direita do grande rio. Alguns "especialistas" já se apressam a dizer que o fenômeno não tem nada de discrepante, que já houve uma seca igual anteriormente (a de 1963, da qual, infelizmente, nada sei) e outras menores.

Não tenho a menor autoridade no assunto, mas como nativo ainda estou chocado com as imagens de lagos, rios e igarapés completamente secos no Oeste do Pará (nosso antigo e bem conhecido Baixo-Amazonas, deslocado da nomenclatura pelo jargão dos novos donos da terra). Nunca vi nada igual. É preciso escapar ao raciocínio automático diante da extravagante situação: a água baixou tanto que os peixes morrem aos montes. Se tudo estivesse normal, o caboclo estava com fartura na mesa e estoque salgado para o ano inteiro. Ao invés disso, reclama do mau cheiro dos peixes que apodrecem na terra esturricada, onde antes havia um lago, um igarapé, um rio. Haverá fome ao longo dos próximos meses.

Por que isso? Não deve ser só - nem principalmente - por causa humana, seja o efeito estufa produzido pela emissão de gás carbônico na atmosfera ou pelo desmatamento, como já proclamam os mais afoitos. Os técnicos falam daquilo que na escola aprendemos como massa Equatorial Continental, responsável, sobretudo, pela chuva abundante na metade ocidental da região. Na remota escola também aprendemos que a chuva da Amazônia é de convecção, ou seja, tem dupla origem nos dois hemisférios que abrange. Aprendemos também que metade das chuvas vem do Atlântico. A outra metade desce da atmosfera depois de ter subido pela evapotranspiração de sua densa massa vegetal. Agora temos a informação de que a água do Atlântico aqueceu dois graus, talvez em decorrência de efeito havido na África (a circulação de materiais entre os dois continentes é maior do que normalmente se supõe).

Assim, se o fator determinante do fenômeno é produto da natureza, para a sua escala contribui a interferência humana. Estou convencido de que a natureza encenou diante de nós o que acontecerá, dentro de alguns anos, se não dermos atenção à nossa participação nesse cenário. Não se pode continuar a esconder a sujeira ecológica debaixo do tapete ou atrás da porta. Já é tamanho o estrago que esses depósitos improvisados vão estourar. Quando? Ninguém sabe exatamente ainda. Em que amplitude? Também não. Mas o malabarismo do esconde-esconde não irá durar muito mais. A casa da natureza vai cair.

O susto deste ano pode servir para nos conscientizar de que a passagem da cultura da água para a cultura da seca pode ser mais rápida e abrupta do que imaginamos. Sem água não há a floresta tropical amazônica (e sabemos tão pouco sobre água neste planeta aquático, como revela o desnorteio dos cientistas). Sem essa floresta, fonte maravilhosa de biodiversidade, não há Amazônia. É preciso sair à cata de outro nome. Que tal Pecúnia? Mata dois coelhos: o dos que só pensam no capital e dos que só se interessam por boi. Eles serão os sacerdotes desse martírio se continuarmos a deixar que encenem sua liturgia da destruição.

Amazônia Norte e Sul: os seus muitos olhares

No início do mês mandei esta mensagem para a Rede de Jornalistas Ambientalistas, no meio de uma polêmica provocada pelo jornalista acreano Altino Machado. Pode ser de interesse também dos leitores.

Acho que todos nós, mais velhos ou mais novos, mais competentes ou menos competentes, do Sul ou do Norte, aprendemos que a polêmica é o sal da vida. Como profissionais do jornalismo ou simples leitores de jornais (ou acompanhantes da imprensa em geral), só sabemos de certos fatos e só temos acesso a certas informações quando as empresas jornalísticas brigam - entre si e contra aquele que costuma ser seu maior cliente, o governo (muitas vezes transformado em parceiro, patrão ou bwana). Quando eles brigam, e dependendo da forma como brigam, abrem seus baús, soltam farofa ou matéria mais deletéria diante do ventilador, e destilam seus venenos. Também costumam liberar conversas de bastidores e dados de algibeira, embora raramente com a generosidade que demandaria a necessidade nacional. Interrompem a drenagem antes do tempo. Informação é poder. Ainda e sempre, apesar dos googles.

Isto posto, o debate, a polêmica, a controvérsia sempre serão bem-vindos, mesmo quando resvalando um pouco pelo que, com ou sem razão, chamamos de baixaria - freqüentemente aplicando essa etiqueta ao que nos desagrada, ao que não queremos ver revelado.

Pode parecer que nós, nascidos na Amazônia, nos consideramos os detentores da chave do saber sobre a região. Por isso, rejeitamos os "do Sul". Não é verdade, ou não deve ser considerado como verdade. Mas o pé atrás existe e tem sua raiz, mesmo que não sua razão. A Folha do Norte, durante décadas o baluarte da imprensa na Amazônia, tinha uma seção permanente: "os que vencem no Sul". Só era vencedor quem vencesse no Sul. Quem não vencia era um fracassado. Alguns não venciam porque não iam ao nirvânico Sul.

Outros simplesmente não aceitavam que o Sul fosse a prova dos nove do sucesso. Achavam que o Sul só dava os louros aos que lhe servissem a interesses que, como regra, não coincidiam com os mais legítimos interesses do Norte. Mas nem tanto ao mar, nem tanto à terra, claro. Há Norte e Norte. Sul e Sul.

O que devo dizer, para não torrar a paciência dos caridosos amigos, é que a Amazônia não escapará a um destino inglório por seus próprios meios. Necessita da solidariedade externa. Dificilmente a Amazônia deixaria de ser menos Amazônia a cada temporada de fogo & desmatamento, mesmo se não houvesse a tal da cobiça internacional, exposta e somatizada por Arthur Cezar Ferreira Reis (em 1958). Já bastaria a fúria desmatadora do capitão-do-mato, o bandeirante, predador de almas, dizimador de paisagens. A cunha estrangeira, porém, multiplica os efeitos dessa fúria, ainda mais porque, nos centros da inteligentsia do capital global, já há poucas dúvidas de que seremos, neste avançar da história, tão desmatadores quanto o homo agrícola em qualquer estágio anterior de sua "evolução" como tal pela face do planeta.

Se o capital internacional é a pedra de toque dessa alucinante frente desmatadora, só nos resta tentar voltar contra a espiral do dinheiro o contracanto do saber mundial. Claro que não existe ciência in abstracto. Mas é no âmbito do conhecimento que se tem o maior grau de autonomia relativa possível. O exemplo - felizmente revisto - do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, gerado no ventre da Unesco por Heloísa Alberto Torres e Paulo Carneiro, sob a tutela de seres humanos da envergadura de Thomas Huxley, devia nos advertir para as oportunidades que essa autonomia relativa proporciona à Amazônia. Sem uma ciência empenhando todos os seus anéis na Amazônia, em breve seremos um cerrado, uma savana, uma mata primária, reflorestamentos. Delenda biodiversidade. Perderemos o lugar único que ainda nos é reservado no espaço e viraremos nada mais do que tempo. Tempo desperdiçado.

Digo isso para dizer que a história da Amazônia deve imensamente a estrangeiros, como o padre português João Daniel, os cientistas ingleses Henry Bates e Wallace, e aos "do Sul", como Alexandre Rodrigues Ferreira e Ferreira Pena. E continuará a dever sempre e cada vez mais a gente da estirpe de José de Souza Martins, Aziz Ab’Saber, Orlando Valverde, etc.

Não só por não termos quadros humanos suficientes para dar conta do tamanho do desafio, como porque, sendo a mais tardia das regiões brasileiras e a mais persistentemente internacionalizada dentre elas, a Amazônia é uma questão mundial, queiramos ou não, sejamos os militares geopoliticamente obcecados pelo objetivo de "integrar para não entregar", sejamos os militantes do PC do B, numa Icária depravada de Albânia tropical, com suas muralhas de Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia).

Por mais que sejamos inteligentes, aplicados empiricistas, denodados observadores dos fenômenos endógenos, autênticos caboclos do saber, não daremos conta de entender a Amazônia, ordenando heuristicamente seus fatos numa interpretação que abranja suas raízes, que estão longe, e suas manifestações forâneas - em tronco e fustes - nos grandes projetos. No tamanho da minha insignificância, aplico todo meu empenho em interessar mais gente por esta terra, more em São Paulo ou Tóquio. Não quero uma dezena de bons jornalistas aqui, para ficar no meu minifúndio profissional. Quero centenas, quem sabe o milhar. Não só indo e vindo episodicamente. Ficando: na própria terra, sempre que possível; virtualmente, em estado de permanência. Na Amazônia, se aplica como luva a diretriz de que é a anatomia do homem que explica a anatomia do macaco, e não vice-versa. É a partir do mundo que olhamos melhor a Amazônia. Mas é só nela que a entendemos, absorvemos, amamos e transformamos. Por transformar entenda-se manter o que a natureza prodigiosamente gerou, ao invés de negar esse processo criador sem paralelo.

Comecei a trabalhar como profissional do jornalismo em 1966. Nesse ano Belém foi a sede da fundação do Banco da Amazônia e da Sudam, abre-alas da nova forma de ocupação econômica (e física) da região, e do Simpósio sobre a Biota Amazônica, que assinalava o centenário do Museu Goeldi (logo, já havia longeva vida inteligente nos trópicos infestados por mosquitos, que não são o monstro de Loch Ness). O desmatamento era de aproximadamente 0,8% da região, computando-se desde a primeira ação humana, que remonta a algo em torno de 10 mil anos (7 mil a 12 mil nos extremos da interpretação arqueológica). Hoje, estamos caminhando celeremente para 20%. Nenhum povo desmatou tanta floresta em tão pouco tempo em toda história da humanidade.

Exatamente no lugar que tem a maior e melhor floresta do planeta. Isto basta para fechar o capítulo.

Assim, caros amigos, a Amazônia é útero fecundo para todos que aqui quiserem aplicar sua vontade, seu saber, seu esforço, sua competência. Mas não subestimem a Amazônia. Nem seus aspectos maravilhosos nem os pavorosos.

Nem o paraíso nem o inferno. Nem a mitologia nem a realidade. A Amazônia não é para amadores, ainda que seus melhores profissionais sejam os que a amam. É impossível trabalhar na Amazônia sem se interessar por sua história, sem entrar nessa história. Ela oferece às pessoas sensíveis e inteligentes a oportunidade rara de fazer história. Ora, pois, não podemos ser apenas burocráticos reporteiros dos fatos, escrivães de pautas rotineiras.

Mas não podemos negligenciar o detalhe, abrindo os pulmões e irradiando incorreções. Temos que ser rigorosos, aplicados, disciplinados, inclementes na busca da informação, como se estivéssemos competindo com o New York Times e achando esses gringos uns pretensiosos, a nos exigir, em contrapartida, humildade sem sentimento de inferioridade.

Dois dos ministros da Fazenda que estiveram aqui, Delfim Neto e Mário Henrique Simonsen, eu os acompanhei (portanto, não é correto dizer que nenhum ministro da Fazenda deu o ar de sua graça na Amazônia, mesmo porque tinham que conferir o botim). Simonsen, pelo menos, era um humanista. Levava caixas de Cerpinha, a preciosa cerveja local, para seus duetos, com gran finale. Delfim era a barbárie. Não lhe perdôo nunca uma frase bestialógica (embora antológica): na Amazônia, a hora é do bandido; depois que ele amansar a terra chegará o mocinho. Quando o mocinho chegar, pelo andar da carruagem, não haverá mais Amazônia à sua espera.

Se não temos fatos, não temos jornalismo. Não podemos jamais abstrair os fatos, ou renunciar à sua busca. Aprendi com Jack Anderson que nada resiste a uma boa investigação jornalística. Não há, porém, jornalismo investigativo. Há jornalismo. Sem adjetivo acompanhante. Jornalismo é sinônimo de investigação. Sempre. Não vamos aceitar embromação, como exigia o poeta Bertolt Brecht, num poema que devíamos colocar como tela do nosso computador. Se não abrirmos mão dos fatos como ponto de partida, alguma luz se fará e alguma esperança caberá nas utopias.

Desculpem o exagero. Tomo, como habeas corpus preventivo, o tamanho de nossa amada e ensangrecida Amazônia, grande para abrigar a todos nós e a todos os homens de boa vontade que a nós, aqui e aí, agora e daqui a pouco, se quiserem juntar nessa viagem. Uma viagem sem limites, por isso mesmo gloriosa.

Adital