A revolta do povo venezuelano de fevereiro de 1989 – batizada como el caracazzo – foi um acontecimento de certo modo inaugural das resistências populares e nacionais à globalização capitalista que exerceu papel hegemônico nas três décadas finais do século passado.
O Fórum Social Mundial chega à sua sexta jornada internacional organizado de forma descentralizada em três continentes do globo - nas Américas, na África e na Ásia. A realização do capítulo das Américas do FSM na cidade de Caracas tem razões políticas e estratégicas muito claras: a Venezuela é, na atualidade, o processo nacional que melhor simboliza as aspirações emanadas a partir da dinâmica do Fórum Social Mundial.
Em certo sentido, a ocorrência do Fórum em Caracas obriga a uma revisão dos antecedentes que marcaram o surgimento do atual movimento contra a globalização neoliberal. E mais especificamente ainda, permite reconstituir a memória sobre o papel jogado pelo povo venezuelano na acumulação de condições favoráveis à criação deste processo e deste espaço internacionalista que ganhou forma concreta no Fórum no início do século XXI.
Habitualmente, a cronologia dos acontecimentos que colaboraram para a constituição do Fórum é relatada a partir das importantes mobilizações de Seattle em 1999, posteriormente seguidas das lutas que percorreram as ruas de Washington e Praga contra o FMI e o Banco Mundial. Há ainda quem tome como marco da ofensiva da luta contra o neoliberalismo o movimento zapatista no México nos anos 1990. A consigna “o mundo não é uma mercadoria” do subcomandante Marcos, mais que uma crítica e denúncia do papel supremo atribuído pelos poderosos ao mercado, se converteu em palavra de ordem de enfrentamento aos capitais transnacionais e à lógica capitalista mundial.
Entretanto, um mapeamento mais criterioso da história das resistências sociais aos processos de (des)ajustes estruturais deve incluir, obrigatoriamente, o caracazzo no itinerário das lutas que geraram consciência e que subjetivamente contribuíram para a gênese deste amplo movimento internacional que a cada ano ganha maior maturidade.
Em fevereiro de 1989, logo após a posse para o exercício do seu segundo mandato presidencial, Carlos Andrés Perez [1] adotou um programa econômico ultraconservador e liberalizante, como resposta à queda da renda petroleira decorrente dos baixos preços do combustível no mercado internacional.
Em razão do cenário de dificuldades econômicas enfrentadas pela Venezuela, Andrés Perez não hesitou em subscrever um acordo de forte endividamento com o FMI, em troca do qual comprometeu-se a aplicar um conjunto de medidas anti-populares e privatizantes.
Dentre os compromissos assumidos com o FMI, constava o receituário universal aplicado pelos organismos internacionais na periferia do capitalismo: equilíbrio fiscal, abertura indiscriminada e direito de livre circulação dos capitais estrangeiros, desvalorização do bolívar, liberação das tarifas públicas e aumento do preço da gasolina.
A elevação do preço da gasolina foi o estopim final para a deflagração de uma revolta popular que tomou as ruas de Caracas e seus arredores, atingindo também algumas cidades do interior do país. Durante três dias de duração da insurreição popular, Caracas se transformou num verdadeiro campo de guerra, com tanques militares, efetivos do exército e polícia, bombas, incêndios, prédios e carros destruídos e uma cifra absurda de mais de mil manifestantes mortos, segundo estimativas de instituições internacionais de direitos humanos.
O destino reservou a Andrés Perez um lugar comum a outros próceres continentais do neoliberalismo, como Collor, Fujimori etc – foi deposto em 1992 depois de condenado em processo por corrupção.
A revolta do povo venezuelano de fevereiro de 1989 - batizada como el caracazzo – representou um passo importante para a organização de um campo político democrático e popular por fora das estruturas oligárquicas dominantes há séculos no país.
El caracazzo também foi um acontecimento de certo modo inaugural das resistências populares e nacionais à globalização capitalista que exerceu papel hegemônico nas três décadas finais do século passado. É uma obra histórica que deve ser inscrita, pois, como parte das resistências dos povos e da construção de uma consciência por um mundo pós-neoliberal.
Se as razões atuais do processo bolivariano por si mesmas ajudam a compreender a relevância da sexta edição do FSM na Venezuela, el caracazzo é a expressão de que os processos históricos geram acumulação de forças e ampliam conquistas que permitem aos povos a superação da opressão, da miséria e da dominação.
[1] Carlos Andrés Perez havia exercido antes um mandato presidencial no período 74-79, quando implementou um projeto nacionalista e de estatização do setor petroleiro.
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