Entrevista do integrante da direção nacional do MST João Pedro Stedile à jornalista Claudia Adista, da Itália, sobre o processo de transformação social em curso na Venezuela, a proposta da Alba (Alternativa Bolivariana para a América Latina) e a participação do movimento camponês na integração latino-americana.
- Qual a sua avaliação dos resultados do governo de Hugo Chávez em relação à realidade do povo pobre? Qual é a novidade do modelo de desenvolvimento endógeno bolivariano?
Em primeiro lugar, não sou um especialista em América Latina e no processo social em curso na Venezuela. Minha análise do processo latino-americano e venezuelano parte do Brasil e do olhar da realidade por um dirigente de movimento social.
A sociedade venezuelana é um caso típico em relação a modelo econômico em toda a região. Durante todo século 20, o povo venezuelano foi vítima, em vez de beneficiário, da total dependência do petróleo. As elites se locupletaram com a extração petrolífera, vendiam para os Estados Unidos, ganharam altas taxas de lucro e aplicavam tudo em consumo de luxo.
Diante disso, a Venezuela não saiu do modelo mineral-exportador e nem sequer entrou no modelo de industrialização atrasado, como aconteceu com México, Brasil e Argentina. Esses países, bem ou mal, fizeram uma parceria com as transnacionais e aplicaram um modelo dependente de industrialização - como é muito bem explicado pela teoria da dependência, desenvolvida basicamente por Ruy Mauro Marini.
A crise que atingiu a Venezuela a partir dos anos 80 não foi uma crise apenas do modelo dependente de industrialização. Foi uma grave crise social. Já não havia emprego nem mobilidade social e, depois, se somou a crise do neoliberalismo com a crise geral da sociedade. Ou seja, as elites venezuelanas não conseguiram adequar o petróleo ao neoliberalismo. Se tivessem conseguido privatizar o petróleo teria acontecido uma tragédia social. Como, aliás, se prenunciou no massacre do Caracasso. Até o hoje ninguém sabe quantos venezuelanos morreram na chacina protagonizada pelas forças policiais e militares, mas todos comentam que foi acima de 2 mil mortos.
A subida ao poder do fenômeno Hugo Chávez representa uma alternativa dos pobres da Venezuela. É uma alternativa de rechaço a toda velha política no país. Ainda não era fruto de um reascenso do movimento de massas, quando as massas conseguem um tal grau de organização e consciência política de um projeto político de classe. A partir disso, conseguem aglutinar forças organizadas e fazer uma ofensiva contra o capital e a burguesia. Nesse sentido, Chávez foi mais um símbolo de revolta do que fruto de um processo de reascenso do movimento de massas.
O presidente Chávez vem fazendo o possível em uma determinada correlação de forças e vontade política das massas. Não se segue nenhum plano ou projeto prévio, apenas o instituto da vontade das massas. Busca-se permanecer sempre ao lado do povo e administrar os bens públicos sempre com essa prioridade. Diante disso, passaram a usar os recursos do petróleo para melhorar os serviços públicos, como educação, saúde, transporte. O orçamento é investido no atendimento dos milhões de pobres que se concentram nas favelas e bairros populares, antes completamente excluídos de qualquer serviço público. Grande parte da população, por exemplo, não tinha documentos, ou seja, não eram considerados como cidadãos.
Com esse conjunto de mudanças, melhoraram muito as condições de vida da população pobre a partir de uma melhor distribuição dos serviços públicos. Agora o Estado garante o acesso aos bens alimentícios a preços de custo, sem lucro, por meio de uma rede local de armazéns, que não chegam a ser estatais, mas se aproveita a própria rede de pequenos comerciantes. No entanto, estão garantidos os preços justos, desempenhando o papel de controlador das importações e da distribuição do atacado.
O Estado garante também o atendimento gratuito de saúde, por meio do sistema cubano de médico de família, em que mais de 20 mil profissionais de saúde moram e convivem com o povo nos lugares mais pobres e prestam assistência prévia, além de fornecer medicamentos e o atendimento necessário. A maioria dessa população se quer conhecia um médico.
O Estado garante à população acesso a educação a partir de diversos programas educacionais. As iniciativas vão desde a alfabetização de adultos e adolescentes até programas que garantem acesso a todos jovens que querem entrar na universidade. Esses jovens recebem uma bolsa mínima de 100 dólares e, com isso, caso não consigam entrar no mercado de trabalho, porque ainda não têm uma profissão e emprego, recebem uma renda para sobrevivência que garante o acesso a uma educação superior profissional.
Nesse sentido, é preciso divulgar amplamente a grande iniciativa do governo venezuelano de conseguir em poucos anos alfabetizar todos os adultos. Hoje a Venezuela é considerada pela Unesco como um país livre do analfabetismo - caso raro entre os paises do hemisfério sul.
Apesar das condições tão adversas de uma herança econômica totalmente dependente das exportações do petróleo, sem organização social e condições subjetivas de um projeto político que dê unidade às forças populares, o grande desafio do governo é traçar um projeto de desenvolvimento duradouro para o país. Esse debate está posto para intelectuais, universidades, forças sociais e para a sociedade em geral, que precisa refletir sobre o destino da Venezuela.
A vantagem do instinto de Chávez, como grande líder popular, é se dar conta de que não existe uma fórmula acabada para resolver os problemas do povo, uma vez que não há condições objetivas e subjetivas na sociedade venezuelana. Portanto, seu papel é estimular o debate, onde devem nascer as linhas do caminho a seguir pela Venezuela. Ou pelo menos diagnosticar o sentido do caminho da libertação, porque os integrantes do governo têm clareza do objetivo estratégico: a construção de uma economia e uma sociedade livre, independente do capital financeiro e do imperialismo que domina a economia mundial. Mas chegar lá é que é difícil.
Chávez tem anunciado em seus debates e discursos duas linhas distintas e complementares de reflexão. De um lado, recupera as idéias originarias da CEPAL (Comissão Economia para Desenvolvimento da América Latina) em torno da necessidade do desenvolvimento industrial e nacional, que passou a ser chamado de projeto de desenvolvimento endógeno. Isso significa que o povo e todas as forças produtivas do país devem colocar suas energias para que cada região tenha sua própria organização agrícola e industrial voltada para a produção dos produtos que atendam as necessidades da população.
Assim se geraria um processo de produção de riqueza, distribuição de renda e geração de emprego local. O termo endógeno está vinculado com as condições locais e regionais. Em que cada povoado, município ou região deve se buscar o desenvolvimento de todas as suas potencialidades. Evidentemente, nesse projeto o Estado teria papel fundamental para criar condições para a distribuição da mais valia social ou da poupança nacional recolhida a partir do petróleo.
Por outro lado, Chávez apresenta idéias relacionadas à construção de um socialismo diferente, que seria o "socialismo do século 21". Nesse caso, os enunciados são mais ideológicos, no sentido de fazer o contraponto da utilização corrente da palavra socialismo, vinculada ao sistema estatal do leste Europeu. Ao mesmo tempo, faz o combate ao capitalismo neoliberal. Do ponto de vista concreto, isso serviu para estimular o debate entre os trabalhadores para a construção de formas auto-gestionadas e cooperativas de gerenciar fábricas e plantas industriais. Na prática, essas iniciativas se reduziram aos casos em que os proprietários capitalistas fugiram do país, foram à falência ou quando o Estado abriu uma nova fábrica e procurou fazer uma espécie de parceria com os trabalhadores.
É preciso entender que o grande dilema que os venezuelanos enfrentam - e todos nós dos movimentos sociais dos paises periféricos - é que temos que debater a construção de um modelo econômico que represente uma alternativa popular para as necessidades da sociedade, que deve ser antineoliberal e anticapitalista. E, sobretudo, tem que representar a possibilidade de reorganização da produção para a sociedade resolver os problemas fundamentais de toda a população, com alimentação, moradia, educação, terra e trabalho.
- O processo social em curso na Venezuela e na Bolívia pode condicionar de alguma forma o processo das organizações sociais? Existe o perigo de uma dominação das formas associativas pelo Estado?
Ao contrário. As experiências da Venezuela, da Bolívia e mesmo do Equador mostram justamente um caminho diferente. Finalmente, os governos de esquerda compreenderam que é necessário uma total autonomia política e organizativa dos movimentos sociais em relação aos partidos, governos e ao Estado. Isso faz parte de sua vitalidade, natureza e saúde política. Os movimentos sociais somente podem contribuir com a construção de um projeto popular e alternativo se tiverem autonomia. Inclusive, isso é condição para a constituição de parcerias com governos progressistas e com o Estado. As associações devem acontecer em torno de um projeto de desenvolvimento popular, nacional e comum. Aí temos um desafio contemporâneo da esquerda. Para construir parcerias com os governos e com o Estado é preciso que os povos e suas organizações construam um projeto alternativo para os países.
Nesse sentido, temos esperanças que as experiências da Bolívia e da Venezuela são verdadeiros laboratórios para os movimentos sociais de todo o continente. Lá não existe uma vontade que se pretenda hegemônica pó parte dos governos. Ao contrário, os governos têm plena consciência de que dependem da força organizada do povo, por meio dos movimentos sociais, partidos, sindicatos, entre outros, para poder construir um verdadeiro projeto alternativo.
- Quais são as potencialidades da Alternativa Bolivariana para a América Latina? Esse tipo de integração pode representar um modelo para o mundo?
A proposta da Alba representa duas iniciativas básicas. De um lado, é uma idéia que se contrapõe à proposta dos Estados Unidos em torno da Alca (Aliança de Livre Comércio das Américas), que se fundamenta em alterar o marco jurídico das relações internacionais para garantir o livre comercio e a livre circulação de empresas transnacionais estadunidenses pela região. Ou seja, seria transformar os nossos países em confederações dependentes dos Estados Unidos. O segundo objetivo é tentar construir uma outra forma de integração entre os paises a partir das necessidades dos povos, e não das necessidades do capital. Nesse sentido, enfrentamos dois problemas sérios. A Alba somente poderá ser uma realidade para a maior integração entre os povos latino-americanos quando houver uma maioria de governos progressistas, que optem pela adesão à sua concepção. Hoje, infelizmente, podemos contar nos dedos de uma mão os governos que aceitam seus fundamentos. Nem mesmo o governo Lula aceita a Alba. Em segundo lugar, precisamos da força popular organizada para viabilizar em todo o continente um processo de reascenso do movimento de massas para dar largada a uma ofensiva contra as propostas do capital. Enquanto não existam essas condições, a Alba se constitui apenas como uma proposta generosa. Por essa razão, por exemplo, o presidente da Bolívia Evo Morales já defende uma alternativa prévia, em busca das condições para construir a Alba, que para ele seria formada pelos Tratados de Acordos entre os Povos. Essas iniciativas também dependem fundamentalmente da existência de governos progressistas e de esquerda. Nesse sentido, esses acordos bilaterais aumentam a integração e, ao mesmo tempo, preparam as condições para a Alba.
- A dependência dos hidrocarburos pode limitar a amplitude da Alba?
Os hidrocarburos como gás e petróleo são uma parte das riquezas naturais da América Latina, que o capital internacional sempre explorou. Mas é apenas uma parte da exploração. Para a sociedade boliviana e venezuelana, representam um peso econômico maior. A essência da Alba é um processo de integração econômica e social dos nossos povos e governos, que potencializa o uso de todos os recursos naturais da nossa biodiversidade, agricultura e indústria em busca da solução dos problemas fundamentais do povo.
Portanto, as idéias da Alba não dependem dos hidrocarburos, mas da correlação de forças locais para o desenvolvimento de modelos econômicos que rompam com a atual dependência do imperialismo, junto com o sistema financeiro e das transnacionais.
Na verdade, a Alba é uma luta pela independência econômica do nosso continente. Não uma independência para tomar decisões, mas para deixarmos de ser uma região exportadora de riquezas para a Europa, Estados Unidos e, mais recentemente, para Japão e China.
Somente na década de 90, a América Latina enviou aos Estados Unidos e Europa cerca de US$ 1 trilhão de dólares em remessas liquidas de capital. Somos um continente explorado e espoliado em suas riquezas. Não precisamos de capital estrangeiro. Pelo contrário, nós sustentamos a acumulação do capital estrangeiro em nosso continente, embora sejamos dependentes de tecnologia e conhecimento. No entanto, podemos ter acesso a isso de uma forma independente e soberana, diferente a atual dependência e exploração vigente.
- Como o movimento camponês latino-americano pode contribuir para que a Alba represente um modelo de produção justo e ecologicamente compatível?
Estamos discutindo esse tema entre os movimentos camponeses de todo continente. Nós temos uma articulação que se chama Cloc (Coordenação Latino-Americana de Organizações Camponesas), que faz parte de A Via Campesina na América Latina. Nós podemos e devemos contribuir com a Alba. Em primeiro lugar, com a construção de um modelo de produção agrícola baseado na soberania alimentar, ou seja, no direito e dever de que cada povo possa produzir, antes de tudo, os alimentos para a sobrevivência da população. A exportação de produtos agrícolas deve se limitar aos excedentes de cada país. Em segundo lugar, o Estado deve garantir que todos os camponeses tenham acesso a terra e biodiversidade - que pertencem a toda sociedade e povos. Com reformas agrárias amplas, massivas e justas, podemos garantir um novo modelo de desenvolvimento baseado na igualdade e na distribuição de riquezas e renda.
Temos que dar prioridade às técnicas de produção agroecológicas, que produzem alimentos saudáveis, sem agrotóxicos ou venenos e que, principalmente, respeitem o equilíbrio da natureza e do ambiente. É importante a valorização da cultura e o acesso à educação como condição necessária ao desenvolvimento com igualdade.
O movimento contra a globalização capitalista parece estar dividido entre a linha zapatista de "mudar o mundo sem tomar o poder" e aquela orientada no sentido da luta pela conquista dos governos pelo povo, como na Bolívia.
- Qual é a posição dos movimentos sociais frente à conquista do governo por grupos que representem o processo de luta popular?
Não acho que os movimentos sociais contra a globalização capitalista estejam divididos. Os movimentos se organizam e, quando têm força popular e representação em seus países, enfrentam problemas concretos que precisam de respostas. Entre os problemas reais não passa a questão se queremos ou não o poder ou o Estado. O desafio real é a busca das respostas para a resolução dos problemas fundamentais da população, como terra, trabalho, renda, educação, saúde e moradia para todos. Para resolver esses problemas, nós sabemos que o modelo capitalista, neoliberal e imperialista não apresenta soluções. Ao contrário, se constituem como a causa dos problemas sociais, que só tem aumentado nos últimos tempos.
É evidente que o povo e suas organizações precisam de poder para resolver esses problemas, que não serão realizados nem pela vontade divina e superior, nem pela ausência do Estado, nem pela profissão de fé em alguma ideologia. Nada disso se resolve com boa vontade. A solução só pode ser encontrada por meio da construção de instrumentos concretos que criem condições para a reorganização da produção, com a repartição da riqueza e renda e modificações na forma de gerenciamento do Estado.
Para isso, o povo precisa ter poder para aumentar o controle da sociedade sobre a esfera da produção, distribuição de terras e nas relações sociais. Isso só será possível se houver uma reorientação do papel do Estado, que deve ser controlado de uma forma diferente. Atualmente, o aparelho estatal se constitui como instrumento do imperialismo e das transnacionais, aliados às oligarquias rurais e locais. Apesar disso, temos certeza de que o Estado é necessário como sistema social e coletivo de poder.
De qualquer forma, pode-se discutir o peso de cada um desses espaços. No entanto, não podemos negar que a solução dos problemas da sociedade passa pelo povo ter poder local na orientação da produção e, na outra ponta, para gerir o Estado de uma forma diferente. As soluções idealistas e anarquistas de destruir o Estado para que apenas a nível local se resolvam os problemas da população são justas, mas não são suficientes para combater as necessidades reais das nossas sociedades.
- No interior deste debate, encontra-se o convite do presidente Chávez para o Fórum Social Mundial de Caracas. Houve alguma ingerência do governo venezuelano no processo de articulação do movimento contra a globalização capitalista? Qual é a posição do MST em relação a isso?
O MST é testemunha de que nunca houve nenhuma ingerência política do governo Chávez sobre as entidades e movimentos que organizamos os fóruns sociais mundiais. O investimento de recursos públicos, por exemplo, sempre existiram para viabilizar as atividades. Em Porto alegre, foram os governos estaduais progressistas e, no último fórum no Brasil, foi até um governo neoliberal.
Os recursos são públicos, ou seja, do povo, e os governos podem ou não aceitar esse tipo de demanda. Os FSM são espaços de articulação de organizações da sociedade e, nesse sentido, não existe contradição na utilização de recursos públicos para a sua realização. A contradição existiria se o financiamento viesse de empresas capitalistas de interesses privados.
Tampouco consideramos ingerência a participação de lideranças políticas como Chávez em eventos do FSM a partir do convite de diferentes forças sociais. As organizações podem convidar quem quiser desde que exista uma identificação com as linhas do evento. Não existem travas. Lula e vários candidatos à presidência ou governos de esquerda da Europa participaram dos FSM. Não houve grandes reclamações.
O perigo seria se o FSM se transformasse apenas em um palanque de interesses governamentais e partidários. Em relação a isso, todos os integrantes do comitê organizados estamos de acordo de que iss não aconteceu em nenhuma de suas edições. Nossa luta é para que tenhamos muitos governos como de Hugo Chávez em toda a América Latina.
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