Para o sociólogo argentino Atílio Borón, política externa brasileira para a América Latina é afetada fortemente pelos interesses dos EUA na Venezuela. Pressões de Washington sobre Brasília, diz Borón, ajudam a entender o pouco entusiasmo do Brasil por propostas de Hugo Chávez.
A situação política na Venezuela deveria ser objeto de uma atenção muito grande no Brasil. O país governador por Hugo Chávez ocupa hoje um papel central na agenda de Washington e qualquer debate visando o aprofundamento da integração latino-americana tem que levar isso em conta. A política externa brasileira para a América Latina está, portanto, determinada em boa medida pelos interesses dos Estados Unidos na Venezuela e o tratamento desta equação é um fator fundamental para as pretensões do governo Lula construir um autêntico processo de integração política e econômica no continente.
A avaliação é do sociólogo argentino Atílio Borón, secretário executivo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), que participou de uma animada conversa, na noite de quinta-feira, na Palavraria Livraria-Café, sobre a situação política na América Latina. A conversa girou principalmente em torno das relações entre as conjunturas de Brasil, Argentina e Venezuela. Entre outras coisas, Borón manifestou preocupação com o pouco entusiasmo que o governo brasileiro vem demonstrando em relação a Chávez.
A preocupação de Borón foi exposta através de uma argumento que tem como um de suas principais premissas a avaliação de que, se o Brasil não conseguir superar o neoliberalismo em suas políticas, nem um outro país do continente o conseguirá. E o que isso tem a ver com a Venezuela? Tudo, segundo o sociólogo argentino. Para ele, está ocorrendo na Venezuela uma revolução em marcha, uma revolução singular e diferente de outras experiências anteriores na história da esquerda.
Ela não é dirigida pelo clássico partido de vanguarda e tampouco pode ser explicada pela presença de um líder populista carismático, como muitos querem caracterizar Chávez, inclusive boa parte da intelectualidade de esquerda venezuelana. Até bem pouco tempo, Borón não acreditava que tal processo revolucionário estivesse de fato em curso, mas um contato mais direto com a realidade venezuelana fez com que mudasse de opinião. "Há um processo de mudanças em marcha, cuja dinâmica adquiriu uma direção quase irreversível", sintetizou.
"Essa gente não volta mais atrás"
Borón relatou uma recente conversa que teve com o presidente Hugo Chávez que lhe disse, referindo-se aos milhões de venezuelanos que o apóiam: "essa gente não volta mais atrás". Não é difícil entender o porquê, explicou o sociólogo. Antes de Chávez, cerca de 4 milhões de venezuelanos (em uma população de cerca de 24,3 milhões, segundo dados de 2002), além de viver na pobreza não tinham sequer um documento de identidade, ou seja, não existiam como cidadãos. O governo Chávez deu a essa gente uma identidade civil, uma nova Constituição e, conseqüentemente, uma voz. Isso, enfatizou Borón, tem uma potência política enorme e esses milhões de venezuelanos estão engajados hoje em um processo de mudanças difícil de ser detido. Essa gente conquistou direitos básicos e agora quer mais. Portanto, acrescentou, na origem da chamada Revolução Bolivariana não estão revolucionários clássicos, mas um contingente de milhões de pessoas que não tinha voz, não tinha identidade e aprendeu como conquistá-las e defendê-las.
O Brasil entra nessa história pelo reconhecimento de que Chávez e sua política precisam do apoio político da principal potência econômica do continente. A Venezuela, com todo o petróleo que tem e pelo significado disso na sua relação com os EUA, não pode trilhar um caminho alternativo aquele proposto por suas elites sem o apoio de países como o Brasil e a Argentina. Borón considera que o governo de Nestor Kirchner vem demonstrando maior entusiasmo com Chávez do que o governo Lula. O presidente venezuelano, ainda segundo o sociólogo, vem buscando uma vinculação política, econômica e cultural mais sólida com o Brasil, mas não vem obtendo uma resposta muito entusiasmada. Borón credita esse entusiasmo franciscano às enormes pressões que o governo Lula deve sofrer por parte dos EUA no sentido de barrar a criação de um eixo político mais forte entre Brasília, Caracas e Buenos Aires.
Mas se esse processo de integração não avançar, observou, o Brasil não conseguirá construir, de fato, uma política externa mais independente e continuará, em última instância, subordinado aos interesses estratégicos de Washington na região. E se isso acontecer, concluiu, o país continuará preso ao modelo econômico que vem comandando a América Latina há décadas, inviabilizando também tentativas similares em outros países.
O fator petróleo
O petróleo desempenha aí, obviamente, um papel estratégico fundamental. A Venezuela possui aproximadamente 71% das reservas do continente, o que é equivalente a cerca de 7% das reservas mundiais. Entre 13 e 15% do petróleo importado pelos EUA sai da Venezuela, que é o principal exportador do mundo ocidental. Chávez tem planos ambiciosos para a América Latina e já propôs a criação de uma grande empresa petrolífera estatal na região, proposta bem recebida por Kirchner na Argentina mas vista com extrema cautela pelo Brasil.
Na avaliação de Atílio Borón, o Brasil só teria a ganhar com uma tal aproximação, mas precisa equacionar o problema das pressões norte-americanas contra esse projeto. Essas pressões devem ser enormes, fantásticas, admitiu o sociólogo, mas sua superação é um ponto crucial para o tema da integração política latino-americana em torno de um projeto distinto do atual.
Ao falar sobre essas pressões, Borón criticou a tese daqueles que dizem que a América Latina, do ponto de vista geopolítico, é irrelevante para a política externa dos EUA. Uma coisa, disse, é entender que a região ocupa hoje uma posição aparentemente secundária nas preocupações estratégicas de Washington. Outra, bem diferente, é inferir daí uma suposta irrelevância. Ele citou os casos da Nicarágua e de Granada para ilustrar sua posição. A região fica secundarizada na política externa norte-americana até que um país comece a dar trabalho, por menor que ele seja, como ficou demonstrado nos casos da revolução sandinista na Nicarágua e na invasão da ilha de Granada. Se o país rebelde possui 71% das reservas de petróleo do continente, sua suposta irrelevância cai completamente por terra, como se pode ver agora no caso da Venezuela.
Cenário instável
Some-se a isso um governo que começa a implementar profundas reformas sociais no país e a Venezuela torna-se um barril de pólvora. A eleição de Chávez, disse Borón, pode ser descrita como uma clássica revolução democrática burguesa que substituiu um modelo corrompido até os ossos. A grande transformação implementada por Chávez foi, sobretudo, cultural, sustentou. A convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte e a criação de uma Constituição avançada do ponto de vista dos direitos políticos, sociais e econômicos (uma das melhores do mundo na avaliação de Fabio Konder Comparato, lembrou Borón) deu a milhares de venezuelanos algo que nunca tiveram: cidadania. O fato de Chávez sempre carregar um pequeno exemplar da Constituição no bolso, distribuí-la maciçamente para a população e lembrá-la constantemente que ele porta os direitos do povo, provocou uma verdadeira revolução cultural no país. "Não houve um partido de vanguarda por trás disso, mas um grande comunicador popular", resumiu.
Além disso, Chávez começou a implementar uma série de políticas sociais com profundo impacto sobre a vida de milhões de venezuelanos que estavam completamente excluídos. Borón citou o caso da política de saúde, feita à margem do ministério da área, em função de sua estrutura corrompida. Chávez recebeu o apoio de Fidel Castro para tocar essa política, o que só azedou ainda mais suas relações com Washington. Cerca de 11 mil jovens médicos cubanos foram trabalhar e morar junto à população pobre nas favelas de Caracas, gente que nunca tinha visto um médico na vida. Outra política de impacto foi na área da educação. A Venezuela tinha dois milhões de analfabetos. Após um programa massivo de alfabetização, que também aproveitou a experiência cubana na área e os ensinamentos de Paulo freire, esse número foi reduzido em 1,1 milhão. E as mudanças que começaram como uma revolução política e cultural, começam a chegar agora também ao campo econômico: reforma agrária, reforma urbana, controle do capital financeiro, entre outras medidas.
Não é difícil entender, portanto, prosseguiu Borón, a oposição feroz que Chávez sofre na Venezuela. Uma oposição composta pelos grandes meios de comunicação, por uma estrutura sindical corrompida, empresários, a embaixada dos EUA e uma parcela majoritária da Igreja Católica que desbancou a igreja colombiana como a mais retrógrada da América Latina. Apesar de suas divisões internas, essa oposição ainda é muito forte e não vai ficar assistindo de braços cruzados aos próximos passos de Chávez. "É preciso esperar, portanto, uma nova ofensiva da direita venezuelana contra Chávez", previu o sociólogo. Daí a importância fundamental de um apoio político mais decidido por parte do Brasil e da Argentina.
Uma política esquizofrênica
Borón acredita que Brasil e Argentina, do ponto de vista econômico, vivem uma situação semelhante, ao contrário do que muitos propagam hoje, dizendo que o Brasil encontrou o caminho da estabilidade. O sistema financeiro e industrial brasileiro é, de fato, mais sólido do que o argentino, mas o estrangulamento provocado pela dívida e pelas políticas impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para manter o fluxo de pagamentos, cedo ou tarde, vai mostrar seus limites dramáticos, defendeu.
O que há nos dois países, acrescentou, é uma excessiva importância dos ministros da área econômica e do Banco Central, em detrimento das outras áreas. "Isso dá à política Argentina um discurso muito esquizofrênico. Por um lado, vemos Kirchner chamando os empresários de abutres, piratas e especuladores, e criticando duramente o FMI. Por outro, os ministros da área econômica sustentando o modelo proposto pelo Fundo", ilustrou.
Essa esquizofrenia também afeta o Brasil, inclusive em sua política externa, notou ainda o dirigente do Clacso. "Assistimos isso recentemente, quando o Brasil liderou uma política muito avançada na reunião da Organização Mundial do Comércio em Cancun e, meses depois, em Puebla, durante um debate sobre a criação da Área de Livre Comércio das Américas, manifestou uma maior disposição em aceitar um acordo com os EUA. Tenho certeza de que, no primeiro caso, prevaleceu a política do Itamaraty e, no segundo, prevaleceu a vontade da área econômica que é favorável à Alca", resumiu Borón. "Esse é um problema comum a toda América Latina. Em última instância, quem define a política externa são os ministérios da área econômica e o Banco Central".
Como superar esse quadro? Borón não apontou nenhuma receita mágica, mas sugeriu uma tarefa urgente: a criação, no Brasil, de um centro de estudos sobre os EUA. "Os EUA têm um centro de estudos sobre o Brasil há cerca de cem anos. Os EUA são hoje, indiscutivelmente, o principal ator político na América Latina (e no mundo) e representam também o principal entrave ao processo de integração. Em função disso, nenhum país da América Latina poderá resolver seus graves problemas sociais sem afrontar, de algum modo, esses interesses. E nenhum deles poderá fazer isso isoladamente. Nenhum deles poderá chegar a isso sem o apoio decidido do Brasil". Esse é o singelo problema que precisa ser equacionado, concluiu o sociólogo.
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