Conferência sobre processos de integração, que reuniu representantes de fundações e partidos da União Européia e da América do Sul, foi marcada por um debate franco e aberto que definiu alguns consensos e evidenciou diferenças de percepção. Diferenças que ajudam a entender os obstáculos no caminho da integração.
PORTO ALEGRE - “As esquerdas latino-americanas são o espelho quebrado que reflete a cara do continente”. A frase do presidente da Fundação Perseu Abramo, Hamilton Pereira, na abertura da Conferência “União Européia e América do Sul: processos de integração”, antecipou e, de certa forma, resumiu o debate que se seguiria, durante dois dias, na capital gaúcha. Os significados da metáfora do espelho quebrado apareceram, sob diferentes formas, nas discussões entre representantes de fundações ligadas a partidos socialistas e social-democratas da América do Sul e da Europa. A sinceridade foi uma das principais marcas da conferência. Um diálogo franco, aberto, às vezes duro, expressou diferenças de percepções sobre a realidade política de cada continente e sobre os desafios e obstáculos diante dos processos de integração. Entre convergências e divergências, ficou uma certeza: os problemas da integração exigem escolhas e decisões políticas. Escolhas e decisões que passam, necessariamente, pela compreensão de diferenças que não são insignificantes.
Outro consenso que emergiu do debate foi o da necessidade de construir processos de integração que não se limitem a acordos comerciais. “O nome Mercosul não é suficiente. Não queremos só integração econômica, baseada na livre circulação de mercadorias, mas sim uma integração de povos, de valores e de culturas”, resumiu o ex-ministro das Cidades do Brasil, Olívio Dutra, candidato ao governo do Rio Grande do Sul nas eleições deste ano. A inclusão da questão social no debate sobre a integração também foi motivo de acordo geral. “Os governos e as sociedades da América do Sul precisam empreender um ataque direto à exclusão social e priorizar o tema da democratização do Estado”, defendeu Tarso Genro, ministro-chefe da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República. O combate às desigualdades e o aprofundamento da democracia na América do Sul apareceram como elementos intimamente conectados.
O que pode aproximar
Do lado europeu, esse não é o tema central, pois os problemas enfrentados atualmente pela União Européia são de natureza distinta. Para Dörte Woolard, diretora do Departamento América Latina e Caribe da Fundação Friedrich Ebert, ligada à social-democracia alemã, há, no entanto, uma característica comum às dificuldades enfrentadas pelos processos de integração. “A atual crise nos processos de integração não é uma coincidência, mas sim fruto das mudanças na economia global, da crise do próprio processe de globalização”. “O que nos une”, defendeu Woolard, “é a defesa de alguns valores comuns, como liberdade, justiça e solidariedade, valores estes que estão ameaçados pela dinâmica da globalização”. Para ela, a principal tarefa da esquerda mundial é lutar por uma nova ordem mundial, com uma cara social e mais justa. Os debates em Porto Alegre resultaram em consenso quanto à urgência dessa tarefa e em diferenças quanto aos seus caminhos e prioridades.
“Qual democracia queremos?” – perguntou Guy Labertit, diretor do Departamento de Cooperação Internacional da Fundação Jean Jaurès, ligada ao Partido Socialista francês. A questão, em si mesma, já carrega um diagnóstico a respeito dos déficits que cercam a própria idéia de democracia. “Não se trata de impor desde fora um modelo pré-fabricado e de se contentar com a existência de instituições formalmente democráticas, como ocorre hoje no Iraque e no Afeganistão. Nosso desafio é incorporar práticas de democracia participativa e de combate à exclusão social”, defendeu. E o que isso tem a ver com debate sobre os processos de integração? Tudo. Entre outras razões, pelo fato de o mundo viver hoje uma ordem onde o multilateralismo perde terreno para a militarização da agenda política das nações. “Lutar por um mundo multi-polar é a base de uma estratégia comum entre União Européia e Mercosul”, sustentou o socialista francês.
O que pode paralisar
Outra razão, segundo os painelistas europeus que estiveram em Porto Alegre, é que a União Européia tem um compromisso com uma “globalização organizada” segundo princípios de justiça social. Há, é claro, quem discorde disso, como os eleitores da França e da Holanda que, em 2005, votaram “não” à proposta de Constituição européia, por considerar que esse compromisso não era tão forte assim. Os problemas e momentos de crise na integração européia foram lembrados pelos sul-americanos que, nas últimas semanas, ouviram muitas crises e exclamações de perplexidades a respeito dos problemas vividos pelo Mercosul. “A Europa, depois do ‘não’ francês e holandês, vive uma certa paralisia. Tivemos uma ampliação de grande calado na União Européia que ainda não foi assimilada de todo”, admitiu Salvador Clotas, diretor da Fundação Pablo Iglesias, ligada ao Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). As paralisias na UE e no Mercosul foram temas polêmicos.
Para alguns europeus, a paralisia que ameaça o processo de integração na América do Sul é, em boa medida, resultante do “retorno do populismo” no continente, uma referência aos governos de Hugo Chávez, na Venezuela, e de Evo Morales, na Bolívia. Essa caracterização foi rejeitada pelos sul-americanos na conferência, que pediram uma melhor compreensão sobre o que está ocorrendo hoje no continente. “O Mercosul vive um processo preocupante. Ele e a Comunidade Andina de Nações (CAN) perderam referência e não foram substituídos por outras instâncias”, assinalou Clotas que lembrou a manchete de um jornal espanhol durante a recente reunião de cúpula entre governos das duas regiões, em Viena: “A Europa paralisada se choca com a América dividida”. O dirigente da Fundação Pablo Iglesias manifestou ainda preocupação com o ressurgimento de “nacionalismos inúteis e exacerbados”, diagnóstico que seria rebatido várias vezes ao longo da conferência.
Desconfiados, mas sinceros
Essas diferenças de visões indicaram que a metáfora do espelho quebrado pode se aplicar não somente às esquerdas sul-americanas, mas também à relação destas com suas parceiras européias. A social-democracia européia nunca conseguiu grande penetração na América do Sul, embora tenha laços e parcerias com diversos partidos no continente. O ressurgimento de uma esquerda mais radicalizada no continente, expressa hoje pelos governos da Venezuela e da Bolívia, é vista com uma certa desconfiança. A caracterização dos problemas vividos pelo processo de integração sul-americano está, em parte, associada à essa desconfiança. A esquerda sul-americana, por sua vez, também não esconde uma certa desconfiança em relação aos seus parentes europeus. Na conferência de Porto Alegre, chegou-se a falar em “tradição colonialista” e na dificuldade que os europeus têm de entender o que acontece na América do Sul.
As dificuldades são de mão-dupla, na verdade, o que ficou evidenciado nos debates. Talvez o principal mérito da conferência tenha sido a sua explicitação através de uma discussão sincera. Mas a sinceridade não é suficiente para dissolver contradições. A compreensão da natureza destas contradições é um dos desafios para entender os obstáculos a um processo de integração que não se limite a acordos econômicos, conforme foi defendido por todos. Entre defesas da democracia, da justiça social e do multilateralismo, apareceram algumas das imagens distorcidas refletidas pelos “espelhos quebrados”. As rachaduras fazem parte da história da esquerda no século XX, na Europa e na América do Sul. Discursos contra a liberalização desenfreada da economia convivem com outros que pregam o fim dos subsídios e o livre-comércio. Diagnósticos sobre a crise da globalização andam de mãos dadas com disfarçadas defesas de suas virtudes. Tudo isso apareceu na conferência de Porto Alegre.
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