Na capital da "grande surpresa histórica", como define a revolução bolivariana, processo político venezuelano liderado pelo presidente Hugo Chávez, o sociólogo argentino Atilio Borón analisa a conjuntura política do continente.
A seu ver, os movimentos sociais que anseiam por mudanças estão em uma encruzilhada: a falta de condições objetivas para tomar o poder pela via insurrecional e a impossibilidade de se promover transformações sociais pela via institucional - considerando o fracasso dos governos de esquerda - exigem repensar a estratégia política dessas organizações.
Borón, que acompanhou de perto a evolução do PT e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, afirma que o Brasil é o único país que pode avançar na construção de uma nova ordem política. "O Brasil tem condições objetivas de iniciar uma política econômica pós-neoliberal sem temor de nenhuma represália dos EUA", avalia.
- Qual sua avaliação do cenário político latinoamericano?
- O cenário é paradoxal. Temos um mandato eleitoral proveniente das bases, que pede uma política de transformação, e governos que estão sumamente cautelosos. Há um excessivo temor da influência dos Estados Unidos nos países e do aprofundamento das políticas do consenso de Washington.
Em alguns casos, os governos têm deixado as políticas tradicionais e aprofundado um modelo econômico completamente incongruente com os objetivos que haviam sido apresentados em suas campanhas. Nesse cenário, temos um elemento de novidade, a grande surpresa histórica, que é a revolução bolivariana.
Existe um processo de reforma agrária ainda incipiente, um processo de transformação econômica que se iniciou recentemente. Mas o mais importante é a revolução no plano das consciências, que poucas vezes se presenciou na América Latina. Esse é um fato que não deixa de me surpreender cada vez que venho à Venezuela: o crescimento do nível de consciência da população.
- Nos últimos anos, temos presenciado um aumento das pressões sociais que levaram à queda de alguns governos, mas não resultaram em uma alternativa de poder. Quais são as dificuldades nesse sentido?
- Uma marca de toda a região são as dificuldades das grandes mobilizações sociais nos últimos três anos. Foram capazes de derrubar governos impopulares (Argentina, Bolívia, Equador), mas não foram capazes de construir uma nova fórmula governativa, capaz de superar o modelo anterior. Há uma preocupante improdutividade desses movimentos na hora de construir uma nova ordem política, uma nova institucionalidade política, e isso tem a ver com uma fase imatura de todo esse processo de massas no continente. Há uma espécie de romantização das virtudes do espontaneísmo, da batalha contra as oligarquias.
- Como aproveitar esse descontentamento social para a construção de uma alternativa à tomada do poder?
- Colocando essa energia social e política em um rumo que nos leve a enfrentar e resolver os grandes dilemas pertinentes à tomada do poder. Não é apenas derrubar o governo em si, é preciso uma construção alternativa; se trata de uma tarefa de educação política, de formação política. A idéia de que a capacidade instintiva, de impulso das massas na rua, é sufi ciente para uma rebelião, é completamente equivocada. É necessário algo mais. É preciso estabelecer novos circuitos de acumulação de poder político. Vemos crescimento da organização social em muitos países, mas o problema é o salto qualitativo desses novos movimentos.
- Essa concepção de projeto de poder passa pela discussão do modelo de democracia que temos?
- Sim. A essa altura, não deveríamos ter medo nenhum para voltar a chamar a democracia, como nos anos 60, de democracia formal. Acredito que hoje ninguém pode discutir isso, sem aceitar que países como Argentina, Brasil, qualquer um... são democracias meramente formais, onde sobrevivem grandes desigualdades sociais. São democracias onde cada vez mais temos menos cidadãos. As forças sociais têm que pensar uma nova estratégia político-eleitoral e isso muitas vezes gera barreiras muito difíceis de superar. Em época de campanha, um minuto de programa político na televisão custa 30 mil dólares.
No Brasil, vocês têm um regime mais permissivo para os partidos, mas só para os que já estão incorporados. Uma nova forma de organização política emergente não terá a oportunidade de chegar ao poder pela via institucional porque vai estar impossibilitada por questões econômicas. E assim os movimentos sociais seguem caindo em armadilhas, como a do governo brasileiro, eleito com um mandato popular, mas que tem governado para atender interesses dos mercados.
- Quais as condições concretas para evitar essas armadilhas?
- Essas armadilhas são muito difíceis de evitar. O grave da conjuntura atual é que não podemos conquistar o poder pela via insurrecional porque não temos condições objetivas nem subjetivas para isso, e tampouco militares. As forças sociais que querem mudanças não podem conquistar o poder e, se conquistam, rapidamente são absorvidas por um Estado que tem sido redesenhado de tal maneira a atender aos interesses dos mercados. Esse dilema leva a uma crescente instabilidade no continente.
- Por isso o senhor afirma que é um paradoxo a convivência entre democracia e capitalismo?
- Exatamente, um paradoxo sem solução. Quando você tem uma ordem social que se baseia na exploração da força de trabalho e na depredação da natureza, essa ordem não tem condições de gerar uma democracia genuína. Pode gerar outra coisa, mas não podemos chamar isso de democracia. O sociólogo inglês Colin Klaut diz que a era da democracia capitalista acabou. Hoje, ainda que pelos critérios permissivos da democracia burguesa, não há um só país democrático. .
Todos são pós-democráticos. Isso quer dizer que nesses países sobrevive um ritual democrático - as pessoas vão às urnas, mas não têm condições de eleger absolutamente nada porque as candidaturas são todas iguais. O que prevalece, sem nenhum contrapeso, é a ditadura dos mercados. Esse é o diagnóstico que Klaut faz para Europa e EUA. Imagine como será para a América Latina, que obviamente está em uma fase avançada de pós-democracia. Nesse aspecto, somos a vanguarda da pós-democracia. O que prevalece é o caráter desigual, predador e desintegrador da estrutura social, se assemelhando aos regimes escravocratas e militares do passado. Por isso, é necessário, mais do que nunca, uma reorientação das políticas de governo.
- Como ultrapassar esse obstáculo e reinventar essa democracia?
- A reinvenção será produto de movimentos e de grandes eclosões sociais. Acredito que isso não vai ocorrer pacificamente, nem se produzirá pela via institucional. Os governos que não tomarem nota dessa mudança vão enfrentar cenários sociais cada vez mais convulsionados. Fato é que a necessidade das massas, cada vez mais insatisfeitas, será muito difícil de sustentar com essa institucionalidade.
- A esquerda está preparada para canalizar essa eclosão social?
- Não. A esquerda latino-americana tem enfrentado muitos problemas. Imagino que teremos muitas mobilizações populares e a construção caótica de uma nova ordem. A esquerda que está no poder resiste em adotar as mudanças que a sociedade exige. Isso fará com que essas mudanças ocorram de maneira turbulenta, devido à incapacidade dessas elites de centro-esquerda ou de esquerda de iniciar essas mudanças. Esses governos temem ser inimigos dos EUA; no entanto, qualquer político de esquerda que queira governar bem terá que brigar com eles. Não tem remédio.
Isso não é antiamericanismo, nem antiimperialismo abstrato. Os EUA lideram a ordem de dominação dos países. Portanto, o líder de esquerda que queira governar para ter boas relações com a embaixada dos EUA será mais produtivo se ficar em casa. Se não, terminará tristemente, como está ocorrendo com várias lideranças de esquerda no continente. Os governos que querem estar bem com os EUA não fazem outra coisa senão frustrar as expectativas de mudanças.
- Como fazer isso?
- Suponhamos que o Brasil decida revisar as políticas de privatização. Que decida acabar com a loucura da liberação da conta de capital e todo esse respaldo à especulação financeira que prevalece hoje no país, um dos maiores cassinos especulativos e financeiros do mundo.
O que os EUA farão? Vão bombardear o Brasil, bloquear o Rio de Janeiro? O Brasil pode fazer o que quer, com condições de impunidade total. Tem um território imenso, uma grande população, uma elite intelectual e tecnológica de primeiro nível mundial, uma estrutura econômica altamente diferenciada, com agricultura, pesca e um forte setor industrial. Se o Brasil não faz é porque não quer.
- Se a lógica é essa, por que o governo opta por seguir outro caminho?
- Porque caíram na armadilha do capital financeiro internacional e estão a serviço desse capital. O único setor que está sendo favorecido no Brasil é o capital financeiro. As duas pessoas que mandam no país são (Antônio) Palocci e (Henrique) Meirelles. Lamentavelmente, Lula é uma figura decorativa. O mundo sabe que não é ele quem manda. Lula é um presidente sem poder nenhum, é apenas uma personagem a mais. A América Latina necessita de governos que reafirmem os interesses nacionais e, nesse caso, há uma responsabilidade muito grande do Brasil. Não vamos colocar a culpa no Uruguai e em Tabaré Vázquez, ou na Argentina de (Nestor) Kirchner.
O Brasil precisa voltar a assumir o Mercosul como instrumento de fortalecimento regional. Na última reunião do bloco, na qual Venezuela foi incluída como país membro, a incorporação foi graças ao presidente argentino, que exigiu a integração venezuelana. Soube que Palocci não queria que Chávez participasse do bloco para não desagradar os EUA, que sabemos que têm grandes problemas com o processo político em curso na Venezuela. É preciso romper com esse ciclo de medo. O Brasil tem condições objetivas de iniciar uma política econômica pós-neoliberal sem temor de nenhuma represália dos EUA.
- Em outra oportunidade o senhor disse que Lula poderia acabar como o ex-presidente argentino Fernando De La Rua...
- Isso vai depender muito do que pensa o povo brasileiro. Acredito que a expectativa gerada por ele é muito grande. Se o povo brasileiro estiver disposto a cobrar isso, a história pode se repetir, e terminar mal. Diferente do que acontece na Venezuela. Enquanto Brasil caminha na contramão de fortalecer uma integração com bases sociais, Chávez lidera um processo que busca a alternativa para o desenvolvimento econômico, da integração necessária, como fazem com Cuba - médicos e educação em troca de petróleo. O processo não chega a ser socialista, mas é baseado na justiça social.
Quem é
O sociólogo argentino Atilio Borón é secretário executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e professor de Teoria Política na Universidade de Buenos Aires. Autor de Estado, capitalismo e democracia na América Latina e A coruja de Minerva.
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