Nestes tempos de desencanto com a política e com os políticos, onde a tentação da vala comum paira sobre a sociedade, vale a pena prestar atenção na voz de um homem que esteve no fundo do poço, viu o inferno de perto, conversou com rãs e formigas, sobreviveu e se manteve na luta.
Lições do fundo do poço
A política anda em baixa. Há algum tempo. O senso comum costuma associá-la às práticas do fisiologismo, do oportunismo e ao exercício da lei de Gérson (é preciso levar vantagem em tudo, certo?). De modo geral, os meios de comunicação, ao mesmo tempo, refletem e reforçam essa percepção, destacando as peripécias de nossos parlamentares e governantes. A recente eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara dos Deputados e sua escandalosa proposta de aprovar imediatamente um novo aumento de salário para os parlamentares é apenas mais um capítulo dessa história.
A esquerda, historicamente, sempre teve um compromisso programático com um outro tipo de prática política. Quando teve a oportunidade de chegar ao poder, muitas vezes esse compromisso revelou-se frágil, sucumbindo às práticas que pretendia combater. Diga-se, a bem da verdade, que muitos políticos conservadores revelaram (e ainda revelam) mais coerência e decência do que muitos políticos de esquerda que, uma vez ocupando algum espaço de poder, sofrem uma metamorfose e se transformam em figuras tradicionais, encarnando os vícios que deveriam combater.
Até agora, o governo Lula não ajudou muito a alterar esse quadro, acarretando um ônus adicional para a esquerda. Cresce a perigosa percepção, junto à população, de que os políticos são todos iguais, sejam eles de direita, centro ou esquerda. E essa percepção é perigosa, sobretudo, porque representa uma ameaça concreta à democracia e à idéia de República. Se os políticos e os partidos são todos iguais, pouco importa quem esteja no poder, pouco importa que algum deles esteja no poder, ou seja, em última instância, pouco importa que existam diferentes partidos.
Há um perigo adicional ainda, especificamente para a esquerda, que é o da deslegitimação de suas bandeiras históricas que apontam para a necessidade de construir uma sociedade onde o lucro e o mercado não tenham o estatuto de divindade. E isso em um momento onde o mundo caminha perigosamente para as sombras, seja pela militarização da agenda política das nações, seja pela destruição crescente do meio ambiente ou seja pela proliferação de um modo de vida onde a idéia de cidadania é engolida pela de consumo, onde a mercantilização alucinada de nossos dias transforma a vida, cada vez mais, em uma banalidade descartável.
Por isso, quando encontramos um político, cuja vida é marcada pela coerência entre suas idéias, sua luta cotidiana e sua forma de vida, essa voz merece ser ouvida com atenção redobrada. Pois estas figuras estão ameaçadas de extinção. E estão ameaçadas de extinção porque o processo de mercantilização descrito acima arrasta também a política para uma vala comum, onde todos os gatos são pardos e onde a própria forma da representação é, ela também, transformada em mercadoria. O uruguaio José Pepe Mujica, 69 anos, é uma dessas vozes que merecem e devem ser ouvidas por todos aqueles que ainda acreditam que a política é uma condição de sentido para a vida em comum.
Mujica foi um dos líderes da guerrilha tupamara que pegou em armas contra a ditadura militar que governou o país de 1973 a 1985. Junto com os principais dirigentes tupamaros, ficou mais de doze anos preso em quartéis uruguaios. Desceu ao fundo do poço, literalmente.
Ele fez parte de um grupo que ficou conhecido como “os reféns”. Os integrantes deste grupo foram submetidos a um regime de destruição física, moral e mental que incluiu dois anos de encarceramento no fundo de um poço. Foram, praticamente, enterrados vivos. Isolamento total. Neste período, aprendeu a conversar com rãs, ouvir o grito das formigas e a galopar para dentro de si mesmo, como forma de não enlouquecer. Sobreviveu. Saiu da prisão, junto com sua companheira de vida e de luta, Lucía Topolansky. Foram morar em um pequeno sítio nos arredores de Montevidéu, onde vivem até hoje, em um regime de comuna, com um pequeno grupo de outras famílias.
Nas eleições de 2004, Mujica transformou-se em uma das figuras mais poderosas do Uruguai. Senador mais votado, foi escolhido para assumir o ministério da Pecuária, Agricultura e Pesca. E manteve a mesma forma de vida.
Na entrevista exclusiva que concedeu à Agência Carta Maior, durante a posse do presidente Tabaré Vázquez, Pepe Mujica contou um pouco dessa história e expôs algumas de suas idéias para ajudar a reconstruir o país. O que há de mais significativo, porém, nesta entrevista, é a exemplaridade que ela revela. Um exemplo de que a política não é necessariamente o reino da incoerência, do pragmatismo e do individualismo. Um exemplo de que as coisas podem ser diferentes. Nestes tempos de desencanto com a política e com os políticos vale a pena destacar algumas lições de um homem que esteve no fundo do poço, viu o inferno de perto e saiu de lá, fortalecido, para a vida outra vez.
As palavras reproduzidas a seguir foram retiradas da entrevista mencionada acima e de outras conversas que ele teve com jornalistas uruguaios. Elas têm um valor especial para a esquerda brasileira que atravessa um momento de dúvida e perplexidade com os rumos do governo Lula. Mas têm um valor, sobretudo, para todos aqueles que acreditam que a política é indissociável da vida e que, se as coisas vão mal na política, é porque há algo que vai errado também na vida. São palavras programáticas, para a política e para a vida.
Trabalho e valor
O problema central que precisamos resolver é o trabalho, um fator de estabilidade fundamental. Se não resolvermos esse problema, fracassaremos. O nosso problema é gerar trabalho, mas trabalho autêntico, que gere algum valor, que tenha um mínimo de produtividade e agregue algum tipo de conhecimento. Não se trata de ficar abrindo buracos, empregando algumas pessoas para abri-los e outras para fechá-los. Para enfrentar este tema, temos que utilizar todos os instrumentos que estiverem ao nosso alcance, aproveitando os mecanismos mais heterodoxos que possam existir.
Conhecimento, a grande batalha
O que mais me assusta, na verdade, é a desvantagem tecnológica que sofremos (os países da América Latina). O recurso mais inesgotável que existe é a inteligência. A grande batalha que devemos enfrentar não é a batalha da propriedade, mas sim a da propriedade da inteligência. Trata-se de uma batalha no campo da universidade, no campo do conhecimento, da geração de conhecimento e tecnologia. Se não conseguirmos nos libertar nesta área, estamos ferrados.
Nosso projeto estratégico deve ser o de assaltar o poder com os canhões da inteligência. Poderemos andar de alpargatas, com roupas remendadas, o que queremos é meter coisas na cabeça. Ou fazemos isso, ou fracassamos. É preferível que nossos filhos vivam com certas dificuldades materiais, mas tenham vantagem na cabeça, vantagem no conhecimento.
A questão da dívida
Estamos amarrados pelo problema da dívida. Eu me vejo velho, gritando contra o Fundo Monetário Internacional. Mas isso não muda nada. A gente grita, mas o Fundo continua igual, segue aí. O que é preciso mudar é nossa postura. A mim, nunca colocaram um 45 na cabeça, obrigando que eu pedisse dinheiro emprestado. O problema é que estamos educados a pedir emprestado quando enfrentamos dificuldades. E eles, generosamente, nos emprestam. Não conseguiremos mudar o mundo com gritos, o que é preciso mudar, em primeiro lugar, é a nossa conduta. No dia em que aprendermos a viver com o que temos, estaremos livres.
O projeto do socialismo
Eu acredito no socialismo como uma necessidade de caráter histórico. Se isso não ocorrer, creio que o mundo caminha para a destruição. Neste momento histórico, estamos trabalhando dentro das leis do sistema capitalista. Vamos pedir aos burgueses que trabalhem, não que sejam socialistas. Queremos que eles trabalhem, invistam e se endividem menos. Não vamos pedir o que eles não podem dar. Hoje estamos falando disso.
O tema do socialismo é outra conversa. Como disse, creio que se trata de uma necessidade histórica, mas não creio que se possa criar uma sociedade melhor, com uma população analfabeta ou quase analfabeta, embrutecida no campo do conhecimento e da vida. Não se pode criar uma sociedade melhor com um povo primitivo e bárbaro, embrutecido. Nisso, creio que estou mais perto do velho Marx do que de Lênin. A esquerda precisa enfrentar e resolver esse problema.
Os vícios históricos da esquerda
Uma das características da esquerda em qualquer parte do mundo é sua tendência à atomização. Cada organização de esquerda costuma acreditar que possui a verdade revelada e que tem que lutar contra as outras organizações. E isso é visto como uma questão de princípio, capaz de fazer correr sangue. Então, para juntar a gente de esquerda, é horrível, em qualquer parte do mundo. É bom ter uma humildade de caráter estratégico diante dos compromissos que temos pela frente, que não são exatamente singelos, do tipo daqueles que autorizam a arrogância e a soberba como métodos de conduta.
Outro problema que precisamos resolver é que a esquerda tem o mau hábito de crescer e perder de vista o pensamento estratégico, ficando imersa em movimentos táticos de curto prazo, perdendo a capacidade de pensar. Precisamos ter a inteligência de superar nossas pequenezas e nosso chauvinismo ou então não vamos fazer nada. Se esses vícios continuarem, estamos fritos. Uma última coisa: como militantes, precisamos nos lembrar que as credenciais também envelhecem e devem ser constantemente renovadas.
Cada conjuntura histórica exige que elas sejam renovadas. Não há nenhuma garantia de nada. Por isso, é importante olhar o passado, mas também é preciso perder o respeito. É preciso haver novos partos, é preciso vir gente nova.
As feridas do passado
A vida tem muitas coisas amargas, mas também oferece reparações e reviravoltas. O desafio é saber vivê-la com continuidade e ter a capacidade de se levantar quando se cai. Nós tivemos essa experiência (da prisão), não a buscamos, não a planejamos, aconteceu, de um modo que supera a imaginação de um escritor. Mas não vivemos para cultivar uma memória, olhando para trás. Acredito que o ser humano tem que saber cicatrizar suas feridas e caminhar na perspectiva do futuro. Pois não podemos viver escravizados pelas contas pendentes da vida; se fizermos isso, não viveremos o porvenir da vida, não viveremos o que está por vir. Eu tenho uma memória e suas recordações, como todo mundo. Não poderia ser diferente. E a memória é fundamental: aqueles que não cultivam a memória, não desafiam o poder. É uma ferramenta a mais para construirmos o futuro. Mas deixo uma coisa bem clara: o livro de minhas contas pendentes, este eu o perdi. É importante não se esquecer de nada, mas é preciso olhar para o amanhã, pois não vivemos se ficamos presos a recordações.
Caminhos imprescindíveis
Eu discordo de Bertolt Brecht porque não creio que existam homens imprescindíveis, mas sim causas imprescindíveis, caminhos imprescindíveis. A história é uma construção tremendamente coletiva, feita pela continuidade dessas causas e desses caminhos. E é assim que andamos, cada um colocando a sua pedra.
Compromisso com a vida e a luta
Nos anos em que fiquei preso, nunca deixei de ser livre. Neste período, sempre tive essa sensação porque supunha que meus companheiros de cativeiro estavam na mesma situação. Eu os conhecia e sabia que íamos seguir na luta. Pode parecer uma monstruosidade o que vou dizer, mas dou graças à vida por tudo o que vivi. Se não tivesse passado pelo que passei e aprendido o ofício de galopar para dentro de mim, para não ficar louco de tanto pensar, teria perdido o melhor de mim mesmo. Me obrigaram a remover meu solo e isso me fez muito mais socialista do que antes. O homem é filho de suas lutas e de suas adversidades.
Alguns de nós tivemos a sorte de que a vida nos apertou, mas não nos fulminou. Nos deu licença para seguir vivendo e, em alguma medida, recolher o mel que pudemos no marco das amarguras pelas quais passamos. Se não fosse assim, nunca teríamos fabricado esse mel. Neste sentido é que digo que nunca estive preso, porque não puderam me derrotar, do mesmo modo que não puderam derrotar outros companheiros que não abdicaram de suas idéias. Eles triunfam quando conseguem nos fazer baixar os braços. Por isso, gostem ou não, o futuro é nosso, pois não puderam nos derrotar.
Agencia Carta Maior
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