Presidente Carlos Mesa, que renunciou nesta segunda, acusa líderes da oposição, como Evo Morales, de tornar o país ingovernável. No centro da disputa, está a questão do controle das reservas de gás e de água, que levou os movimentos a declararem guerra às transnacionais.
A Bolívia está mais uma vez em pé-de-guerra. No centro da disputa política que agita o país está a questão do controle dos recursos naturais, especialmente o controle do cobiçado gás boliviano. Pressionado pela mobilização dos movimentos sociais, o presidente Carlos Mesa oficializou sua renúncia nesta segunda. Repetindo o gesto de seu antecessor, Gonzalo Sánchez de Lozada, que renunciou em outubro de 2003, Mesa acusa os movimentos sociais e os partidos oposicionistas de “bloquearem” o país com seus protestos, criando um clima de ingovernabilidade. E ataca especificamente o deputado Evo Morales, dirigente do Movimento ao Socialismo (MAS), e o líder comunitário Abel Mamani, como responsáveis pela crise e pelo clima de instabilidade política no país.
Em um discurso em cadeia de tevê e no rádio domingo à noite, Mesa centrou seus ataques contra Evo Morales, um dos principais dirigentes oposicionistas do país, acusando-o de planejar um bloqueio nacional de estradas para exigir que a nova lei de hidrocarbonetos, a ser votada pelo Congresso, aumente de 18% para 50% os royalties pagos pelas empresas transnacionais petrolíferas na exploração do gás boliviano. Mesa quer que essas empresas paguem apenas 18%.
Morales também defende a convocação imediata de uma Assembléia Constituinte. Mas a crise política não se explica por uma disputa entre Carlos Mesa e Evo Morales. Ela tem raízes mais profundas em um país extremamente desigual e onde a exploração de seus recursos energéticos até hoje não contribuiu para melhorar a vida da população.
As razões que levaram à crise e aos enfrentamentos de rua de 2003 continuam alimentando uma situação de instabilidade política e de disputa pelo poder. A renúncia de Mesa é mais um capítulo dessa história.
Guerra às empresas transnacionais
Os movimentos sociais bolivianos, do campo e da cidade, declararam guerra às empresas transnacionais e aos setores políticos que às apóiam no país, segundo informe da agência Alai-Amlatina. O dirigente do Movimento ao Socialismo (MAS), Evo Morales, deu o tom da declaração de guerra: “se estes políticos corruptos que defendem as transnacionais querem guerra, estamos dispostos a oferecer nossas vidas mais uma vez”. O dirigente sindical e porta-voz da Coordenadora do Gás, Oscar Oliveira, anunciou o começo de “uma luta até a morte” pela recuperação dos recursos naturais do país. E essas mobilizações ganharam força nas últimas semanas. Boa parte do território boliviano encontra-se paralisada por bloqueios e cortes de estradas, que já atingem cinco departamentos. Além dos bloqueios, os movimentos sociais estão promovendo vigílias, tomadas simbólicas de campos de petróleo e marchas diárias em várias regiões do país.
Eles reivindicam, entre outras coisas, a aprovação da lei de convocação da Assembléia Nacional Constituinte, a defesa da gestão social da água, a expulsão definitiva da empresa transnacional Águas de Illimani-Suez, da região de El Alto, em La Paz, a aprovação da Lei de Hidrocarbonetos a rejeição à imunidade para cidadãos norte-americano e à proposta de criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). As mobilizações iniciaram no dia 21 de fevereiro com a definição de uma agenda comum de lutas, o “Pacto de Unidade”, assumido por diversas organizações. Nos últimos dias, os movimentos sociais intensificaram os protestos e ações em vários pontos do país, colocando o governo contra a parede. Uma coluna formada por mais de 500 camponeses, originários da região de Potosí, está marchando em direção a La Paz, rumo à sede do governo boliviano, o que está previsto para ocorrer no dia 7 de março.
El Alto mais uma vez mobilizada
Em 2003, durante os protestos que provocaram a derrubada de Gonzalo Sanchéz de Lozada, a cidade de El Alto, nos arredores de La Paz, foi um dos principais focos da rebelião popular, que ficou conhecida como a guerra do gás. Agora, mais uma vez El Alto está na linha de frente das mobilizações. A população da região tem três reivindicações específicas: a saída da empresa Águas Del Illimani-Suez (controlada pela francesa Lyonnaise des Eaux), a constituição de uma nova empresa de água, de caráter público, e a destituição do superintendente de Saneamento Básico. Já houve conflitos com a polícia e a população da cidade ameaça cortar o abastecimento de água para La Paz, caso a repressão continue. O deputado Evo Morales defendeu que todos os movimentos sociais do país se unam em torno da mobilização da população de El Alto que, segundo ele, “está defendendo um recurso natural da nação (a água), a soberania e a dignidade nacional”.
Em um texto divulgado logo após o anúncio da renúncia de Mesa, Antonio Peredo Leigue, outro dirigente do MAS, qualificou o movimento como uma tentativa de isolar a principal força oposicionista do país. “A renúncia do presidente Mesa tem como objetivo conseguir o apoio dos setores conservadores e isolar o MAS”, resumiu Leigue. O que ocorre, acrescentou, é que Mesa, há 17 meses no cargo, está demonstrando sua incapacidade para resolver os principais problemas do país, tomando clara posição em favor das empresas transnacionais de petróleo. “O MAS declara sua adesão à democracia e à institucionalidade e tem absoluta clareza que deve levar adiante o programa do povo que inclui a aprovação da nova lei de hidrocarburetos para assegurar maiores lucros para o país e apoiar a convocação de uma Assembléia Constituinte para refundar a República”, diz ainda a declaração de Leigue.
Medo dos cocaleros e dos comunistas
O anúncio da renúncia de Mesa, que pode ser aceito ou não pelo Congresso Nacional, representa uma tentativa desesperada do atual governo de neutralizar as mobilizações dos movimentos sociais e dos partidos de oposição, apresentando-os como radicais comunistas que querem provocar o caos no país. Logo após sua aparição em uma cadeia nacional de rádio e TV, partidários de Mesa dirigiram-se ao palácio do governo, em La Paz, para pedir ao presidente que permaneça no cargo.
Segundo uma nota distribuída pela agência Associated Press, uma mulher declarou, chorando, a jornalistas que acompanhavam a manifestação: “não queremos cair nas mãos de cocaleros (agricultores plantadores de coca), nem de comunistas”. Mesa conta com esse medo da incipiente classe média boliviana e dos setores conservadores para tentar sufocar a nova rebelião popular que insiste em defender a agenda favorável ao controle público dos recursos naturais do país.
Caso a renúncia de Mesa seja aceita, o presidente do Congresso, senador Hormando Vaca Díez, deve assumir o cargo para completar o mandato, que vai até agosto de 2007. O principal temor dos setores conservadores que governam o país há décadas é uma possível vitória de Evo Morales em 2007. Temor que é compartilhado pelo governo dos Estados Unidos que considera Morales “a besta negra” da América Latina.
Enfrentando uma crescente oposição do governo de Hugo Chávez, na Venezuela, um novo foco de contestação na Bolívia faria acender a luz vermelha na Casa Branca. Mesa conta com esse cenário para tentar uma última cartada que o mantenha no poder e crie condições favoráveis para uma nova vitória eleitoral em 2007. Mas, a julgar pela radicalização das mobilizações em defesa do controle público das reservas de água e de gás do país, esse movimento pode jogar ainda mais combustível na fogueira, com conseqüências imprevisíveis.
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