Uma hora e meia de carro é o tempo que se leva partindo da cerca de entrada da fazenda Los Cocos à sede central da administração. Mais de 56 mil hectares, em sua maioria improdutiva, formam a paisagem da propriedade da companhia inglesa Vestey Group.
A reportagem acompanhou, no final de fevereiro, uma das inspeções que o Instituto Nacional de Terras (INTI) realizou no Estado Apure, em cumprimento de uma das determinações da nova etapa da revolução bolivariana: a guerra contra o latifúndio.
Em dezembro de 2004, o presidente Hugo Chávez, anunciou os 10 pontos estratégicos para a criação de uma nova estrutura social, política e econômica no país. Dessa relação de prioridades, a reforma agrária é considerada um instrumento fundamental para estimular outro modelo produtivo, com base no cooperativismo e no desenvolvimento agrícola. A idéia é romper, a médio prazo, com a extrema dependência da economia em relação à extração do petróleo.
O INTI integra uma comissão criada em janeiro de 2005 para traçar o mapa do latifúndio na Venezuela. O organismo poderá retomar, para o Estado, as fazendas cujo título de aquisição não for comprovado legalmente.
Pobreza
Na fazenda Los Cocos, o cenário se assemelha aos rincões do Nordeste brasileiro. Os llaneros que trabalham na propriedade protagonizam um dia-a-dia marcado pela pobreza, provocada pela concentração de terra e pelo esquecimento do poder público, durante décadas. Não podemos plantar, nem ter criação nenhuma.
Tínhamos um porco e o administrador mandou vender, senão matava”, conta Fernando Linhares, que deixou a família na cidade vizinha, São Fernando. Esposa e filhos residem em cidades próximas enquanto os homens saem à procura de trabalho. Responsáveis pelo trato dos animais, os llaneros recebem cerca de R$ 7 por dia - se tiverem trabalho - e não vêem perspectivas de mudanças. “Não é justo que os ingleses sejam donos de nossas terras e que nós, venezuelanos, não tenhamos direito de plantar nada. O que podemos fazer? Os ricos mandam aqui”, lamenta José Armas, ao conduzir os gados para o pasto, montado a cavalo.
Abandono
Poucas crianças freqüentam a escola, construída pelos ingleses no interior da fazenda. Falta transporte e recursos para comprar material básico como cadernos e livros. A maioria dos adultos que trabalha na fazenda é analfabeta.
Apure é um dos Estados com menor índice de desenvolvimento humano do país. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o nível de pobreza é semelhante ao de países africanos como Congo e Zimbábue.
A liberdade de ir e vir é limitada pela falta de dinheiro e pela distância da cidade.
“Saio da fazenda a cada quatro meses, quando peço ao múcio para que me levem de carro”, conta a cozinheira Maria Hidalgo, que recebe o equivalente a R$ 5 para preparar comida para os llaneros. “Só recebo quando eles vêm trabalhar. Se passam o mês todo sem trabalho, também não tenho de onde tirar dinheiro”, conta.
“Aqui tem terra que não pisa uma vaca sequer. Pura terra ociosa”, afirma o índigena Vander de La Cruz. Há alguns quilômetros da casa de Maria, cerca de 180 famílias de etnia Yaruro ocupam 900 hectares de terra, onde plantam o “conuco” (agricultura de subsistência). Segundo uma investigação realizada pelo INTI, duas etnias indígenas foram extintas nesta região nos últimos cem anos. “Quando nasci, aqui não havia cerca. Quando demos conta estava tudo cercado, e já não podíamos mais trabalhar na terra como antes”, recorda La Cruz.
Improdutividade
Segundo um informe entregue ao INTI, a companhia cria cerca de 17 mil cabeças de gado. Na Venezuela, a estimativa é que para a criação de cada animal é necessário dispor de um hectare. “Ainda que tivessem essa quantidade de gado, coisa que não acredito, a companhia tem mais da metade da fazenda em improdutividade”, comenta o comandante do Exército, Alejandro Maya, gerente de recursos naturais do INTI, responsável pela inspeção.
“No inverno, metade das savanas se inundam com a chuva e temos que recolher o gado para as áreas secas”, justifica o administrador da fazenda, o inglês Philip Louis. De posse das terras no início do século passado, a companhia não apresentou ao Estado a documentação que comprovasse a aquisição da propriedade. Os documentos estão na sede central da companhia Vestey Group”, afirma o administrador. Após a inspeção, o governo anunciou o resgate das terras.
Llanero - Sertanejos venezuelanos, habitantes das planícies.
Múcio - Maneira como os escravos chamavam aos seus senhores, antes da independência do país, em 1821.
Combate às irregularidades
A “guerra contra o latifúndio” foi declarada pelo presidente Hugo Chávez em dezembro de 2004, ao lado de outras nove prioridades da nova etapa da revolução bolivariana. Já em janeiro de 2005, Chávez assinou um decreto que permite corrigir a morosidade e a burocracia da Lei de Terras, promulgada em 2001 com o objetivo de fazer a reforma agrária. Essa mesma lei foi um dos fatores que provocou a ira da oposição e culminou no frustrado golpe de Estado de 11 de abril. Mas, para o governo venezuelano e os camponeses sem-terra, essa legislação se mostrou insuficiente e, desde que entrou em vigor, apenas 130 mil famílias foram assentadas.
O Instituto Nacional de Terras (INTI), atualmente, está realizando inspeções nas terras consideradas improdutivas e exigindo o título de propriedade de quem se diz dono das fazendas. A maioria dos terrenos analisados, até agora, não possui documentos que comprovam a aquisição da terra. Se comprovadas as irregularidades, o instituto poderá declarar a área como terra pública e destiná-la para reforma agrária, entregando o direito de uso da terra às famílias sem-terra. Os camponeses receberão também crédito e apoio para a formação de cooperativas.
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