Repetindo argumentos do governo dos EUA, líderes tucanos dizem que encontro é irrelevante e ex-presidente FHC volta a falar de ameaça de crise institucional no país e no continente. Acordos na área do petróleo, Chávez, questão palestina e Iraque são preocupações dos EUA.
A realização da inédita reunião de cúpula entre América do Sul e países árabes está sendo monitorada com atenção e preocupação pelo governo dos Estados Unidos. E essa preocupação ganhou porta-vozes no Brasil, articulados principalmente em torno do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um severo crítico da atual orientação da política externa brasileira.
Nos dias que antecederam o início da cúpula, lideranças do PSDB revezaram-se em críticas ao encontro, ressaltando seu caráter “esvaziado e irrelevante”. O senador Arthur Vrigílio (PSDB-AM) disse que “há uma certa encenação sendo montada para uma cúpula que terá a presença de menos de metade dos países árabes convidados”. E acrescentou, em tom crítico: “também não haverá representantes norte-americanos, que foram vetados, prova do confronto estudantil do governo brasileiro com os Estados Unidos”.
A referência aos interesses dos EUA que não estariam sendo contemplados repete um discurso que vem sendo repetido pelo ex-presidente FHC, que lidera - juntamente com a ex-representante comercial dos EUA, Carla Hills - um grupo sediado em Washington e criado “em resposta às crescentes preocupações de que a política externa da América Latina não estaria servindo adequadamente aos interesses norte-americanos ou latino-americanos”.
Segundo matéria publicada recentemente no jornal Financial Times, esse grupo recomendou ao governo dos EUA uma imediata reaproximação com a América Latina para evitar que a região tome rumos perigosos. O perigo, no caso, seria representado pelo crescimento de governos de esquerda no continente e, muito particularmente, pelo governo de Hugo Chávez, na Venezuela.
Em uma entrevista publicada na revista Conjuntura Econômica, da Fundação Getúlio Vargas, FHC voltou à carga, manifestando preocupação com “o início do esgarçamento do processo de legitimação do poder público no Brasil”, que poderia desaguar numa crise institucional. “Isto aconteceu na Venezuela, na época do Andrés Perez, no Peru, antes e durante o governo de Alberto Fujimori, na Bolívia, no Equador, na Argentina e, no Brasil, na época do Jango”, declarou o líder tucano.
A natureza das preocupações
Essas preocupações baseiam-se em fatores de ordem política e econômica. No plano político, as posições defendidas na cúpula questão palestina e a situação no Iraque batem de frente com a política de Washington para a região.
No terreno econômico, a possibilidade de acordos na área energética - leia-se petróleo - é vista como uma potencial ameaça para os interesses geopolíticos norte-americanos, especialmente pela atuação da Venezuela nesta área. A estratégia que orienta essa preocupação sofreu uma mudança nos últimos dias. Num primeiro momento, representantes do governo dos EUA revezaram-se nas manifestações críticas sobre a natureza e os objetivos do encontro.
Nos dias que antecederam a abertura da cúpula, a tática mudou e os porta-vozes da Casa Branca passaram a falar do fracasso e da pouca representatividade da iniciativa. Algumas das iniciativas que estão sendo debatidas em Brasília ajudam a entender esse comportamento.
Após o jantar com os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Nestor Kirchner, segunda-feira à noite, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, disse que Argentina, Brasil e Venezuela concordaram em forma uma empresa petrolífera conjunta, chamada Petrosul. “Hoje concordamos em dar forma à Petrosul e se concordou escolher um projeto de cada um dos três países para ser abordado com investimentos conjuntos”, anunciou o presidente venezuelano.
Chávez enumerou quais podem ser esses primeiros projetos conjuntos: a exploração de gás e de petróleo na Argentina, a construção de uma refinaria no norte do Brasil para processar petróleo venezuelano e a exploração de petróleo na bacia do Orinoco, na Venezuela. Chávez também destacou o lançamento, pela Venezuela, de um canal internacional por satélite, o Telesur, que nas próximas semanas iniciará os testes de transmissão. E classificou a iniciativa como “uma política vital para a integração cultural dos nossos povos”.
A Comunidade Sul-Americana de Nações
Além disso, os três líderes conversaram também sobre o desenvolvimento da Comunidade Sul-Americana de Nações, criada em dezembro de 2004. Chávez aproveitou a ocasião para minimizar as divergências entre Brasil e Argentina, tema que, coincidência ou não, dominou a agenda midiática na semana que antecedeu o início da cúpula. “Creio que o mais importante é que há um grupo de três. Esta é a quarta reunião que fazemos e hoje concordamos em realizar uma quinta, no início de junho, para avaliar a fundo um conjunto de estratégias que estão em curso”, disse Chávez a jornalistas.
Na mesma direção, o chanceler brasileiro, Celso Amorim, confirmou que os três presidentes concordaram em buscar “uma maior integração política, energética e cultural sul-americana, baseada nos acordos de Montevidéu”, numa referência ao encontro realizado, em março, em Montevidéu, durante a posse do presidente Tabaré Vázquez.
Chávez falou também sobre a preocupação dos Estados Unidos e de Israel com os resultados do encontro. “Ninguém deve ver isto como uma agressão a ninguém”, resumiu. “O mundo se movimenta, a geopolítica se move. Há uma nova geopolítica que se levanta no horizonte mundial, por sorte”, acrescentou o líder venezuelano. E concluiu: “acabaram-se as pretensões hegemônicas de uma potência ou superpotência, que pretende ser a dona do mundo e ditar ao mundo os códigos de conduta e os modelos políticos e econômicos”.
O assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, reforçou as palavras de Chávez e de Celso Amorim no sentido de acelerar o processo de integração entre os três países e toda a América Latina. Isso ficou claro na área petrolífera, salientou: “se anunciou concretamente a disposição de acelerar os investimentos brasileiros na Venezuela, nas áreas de prospecção, e acelerar a instalação de uma refinaria da Petrobrás, com participação argentina, no Nordeste, bem como examinar de forma rápida o programa de prospecção de gás pelas empresas dos três países”. Garcia também destacou o interesse demonstrado por Chávez em estabelecer mecanismos de financiamento ou desenvolvimento na região e em criar um fundo de apoio social que possa beneficiar os países que enfrentam maior dificuldade na região.
Defesa do multilateralismo e questão palestina
Contrariando os prognósticos que mesclam conclusões de fracasso e de irrelevância a respeito dos resultados do encontro, o secretário-geral da Liga Árabe, Amre Moussa, disse, na abertura da cúpula, que “estamos num momento de evolução internacional sem precedentes, que deve frutificar com esse relacionamento mais estreito que estamos construindo”. Moussa fez uma defesa do multilateralismo como mecanismo privilegiado para resolver os problemas políticos entre as nações.
Segundo ele o fortalecimento da relação entre países árabes e sul-americanos precisa contribuir para o estabelecimento de um compromisso de apoio às Nações Unidas. “A cooperação entre as duas regiões visa a segurança, a paz e a estabilidade do mundo, banindo as armas nucleares da face da terra e também promovendo o respeito aos direitos humanos”, defendeu o líder árabe.
Discurso semelhante foi feito pelo presidente da Argélia, Abdelaziz Bouteflika, que defendeu a necessidade de uma maior cooperação internacional para a promoção da paz mundial e para o combate ao terrorismo. Bouteflika citou a reforma da ONU e os conflitos entre palestinos e israelenses como exemplos de problemas urgentes que só poderão ser resolvidos com soluções multilaterais.
“Nossa reunião é extremamente importante e deve prestar atenção às crises graves que ameaçam a paz no mundo e para as quais devemos definir uma linha de conduta comum para poder contribuir para a sua solução”, afirmou o líder argelino. A situação dos palestinos, segundo ele, “é uma negação de justiça que não pode mais ser aceita”. “Temos que encontrar uma solução definitiva para que todo mundo faça o seu melhor, para fazer com que Israel se submeta às leis internacionais e aceite a paz negociada”, acrescentou, defendendo a imediata retirada de Israel dos territórios árabes ocupados.
Nova geografia política e econômica
Ao abrir oficialmente a reunião, o presidente de Lula disse que o grande desafio desta iniciativa é desenhar uma nova geografia econômica e comercial internacional.
“Podemos traçar novos rumos na busca do desenvolvimento, sem desconsiderar caminhos tradicionais, mas com autonomia, criatividade e ousadia. Mas esse esforço só será recompensado se soubermos transformar os frutos do desenvolvimento em instrumentos eficazes para a diminuição das desigualdades sociais, a promoção dos direitos humanos e o aperfeiçoamento das instituições democráticas”, declarou o presidente brasileiro.
Na fala de Lula, também ganharam ênfase a defesa do multilateralismo e da democratização dos organismos internacionais “para que a voz dos países em desenvolvimento seja ouvida”. Em relação aos críticos da cúpula, Lula observou que sua realização, além de abrir e revitalizar os canais de comunicação entre as duas regiões, demonstra que os países presentes foram capazes de vencer o ceticismo dos que acharam que os países da América do Sul e do mundo árabe não seriam capazes de trabalhar juntos.
Enfatizando a importância dessa agenda, o primeiro-ministro da Síria, Mohammad Naji Otri, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, elogiou o governo brasileiro pela coragem de enfrentar pressões norte-americanas para realizar a reunião de cúpula, classificando-a como um importante gesto de aproximação política.
Segundo o líder sírio, os dois países têm em comum uma visão de rejeição à ocupação e ao domínio mundial por uma única potência. “Todos nós sabemos que alguém não queria que este encontro ocorresse”, declarou Otri, numa referência aquilo que o senador Arthur Virgílio classificou como "confronto estudantil do governo brasileiro com os EUA".
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