Há algo em comum entre a rebelião dos aymaras e quechuas na Bolívia, o debate sobre a Constituição européia e o tema da corrupção no Brasil? As conexões econômicas e políticas entre essas realidades podem nos ensinar algo?
Em um artigo intitulado “El sombrero del mago”, publicado no jornal espanhol El País, o escritor e ex-vice presidente da Nicarágua, Sergio Ramírez, analisa a crise boliviana a partir de uma premissa básica: as crises sociais, políticas e econômicas que ocorrem na América Latina têm diferentes cores e conteúdos, mas um só denominador comum, que é a miséria alimentada pelos programas de ajuste financeiro. Em nenhum outro lugar do continente, assinala ainda Ramirez, os efeitos destes programas são mais dramáticos do que na Bolívia, um país de pobreza crônica, com cerca de 60% da população composta por indígenas aymaras e quechuas.
E são estes indígenas que lideram as mobilizações populares que já derrubaram dois presidentes. O que eles querem? Entre outras coisas, uma reforma agrária para os camponeses sem-terra, promessa sucessivamente adiada desde a revolução de 1952, e a nacionalização dos recursos naturais do país. Essas reivindicações são inaceitáveis para a elite branca boliviana, encastelada no departamento de Santa Cruz, o maior e mais rico do país, onde a maior parte da propriedade da terra está nas mãos de 150 famílias, terra esta rica em gás e petróleo. Essa elite, que governa o país praticamente desde sempre, quer a independência de Santa Cruz para formar uma nação predominantemente branca e mestiça de brancos e guaranis. Essa é a moldura geral que, segundo Ramirez, enquadra a crise boliviana.
Conexões aparentemente improváveis
Muita gente acredita que a situação boliviana é um fenômeno particular de um dos países mais pobres do mundo, que guarda pouca ou nenhuma relação com a situação política atual vivida pelo Brasil ou com - aparentemente, uma realidade mais distante ainda - o debate sobre o Tratado Constitucional europeu. Afinal de contas, o que agenda dos índios aymaras e quechuas, do altiplano boliviano, tem a ver com a crise provocada pelas denúncias de Roberto Jéferson ou com a vitória do “não” na França e na Holanda, que foi, entre outras coisas, um “não” a um determinado modelo político e econômico para a Europa?
Deve-se, obviamente, ter o máximo cuidado e rigor, ao tentar estabelecer tais relações, mas a mesma postura deve ser adotada ao tentar isolar essas realidades.
Sem avançar em teorias mais ambiciosas, parece razoável reconhecer, como faz Sergio Ramirez, que há um elemento comum que atravessa esses diferentes cenários: um modelo econômico que pretende ser único, hegemônico e inevitável, que privilegia uma elite branca e rica do planeta, e que segrega milhões de pessoas em todo o mundo, confinando-as a uma situação de miséria e marginalização.
Há ou não há interesses e valores comuns que articulam os interesses das elites econômicas de Santa Cruz, São Paulo e Bruxelas e de seus respectivos representantes políticos?
Sim, há, poderá alguém responder, acrescentando que essas afinidades, tomadas em um alto nível de generalidade, não servem para elucidar as características particulares de cada crise. De fato, não servem para falar de cada árvore em particular, mas podem ajudar muito a entender a natureza e os caminhos da floresta. Tomemos o caso brasileiro como exemplo.
A cobertura da mídia trata do caso Roberto Jefferson e do tema da corrupção em geral, concentrando o foco em algumas poucas árvores. A esmagadora maioria do noticiário gira em torno de figuras e situações particulares: o próprio Jefferson, Delúbio Soares, o PTB, a política de alianças do governo Lula.
O máximo de generalidade que alcança é reconhecer que a corrupção é um problema crônico e estrutural do Brasil e que o PT está fazendo mais ou menos o que todos sempre fizeram. Mas pouco ou nada diz sobre por que, afinal de contas, esse é um problema crônico aqui e em muitos outros países do mundo e o que implica o enfrentamento destes problemas estruturais. Pouco ou nada diz sobre o que tudo isso tem a ver com a economia. A agenda econômica só entra no debate sobre a corrupção quando se trata de avaliar se os mercados estão ou não preocupados com a crise.
Sobre aquilo que não é dito
Nada se diz sobre as implicações da aceitação da atual política econômica como caminho único e inevitável na definição da política de alianças do governo. Ou das implicações dessa política de alianças, com tudo o que ela carrega de concessões e submissões, à qualidade da relação política entre Legislativo e Executivo. Ou sobre o tipo de democracia que esse tipo de relação engendra. Ao não se falar sobre isso, tudo se passa como se a atual crise fosse resultante de deslizes morais deste ou daquele indivíduo, deste ou daquele grupo político.
E, de manchete espetacular em manchete espetacular, algumas cabeças são oferecidas à opinião pública, os mercados se agitam, mudam-se alguns nomes, eventualmente o partido que está no governo, e o jogo recomeça, com os mercados mais calmos, para tudo se repetir logo ali adiante.
A apresentação do atual modelo econômico global, baseado na hegemonia do capital financeiro, obriga a política a curvar-se de joelhos e a pagar o preço por esse escolha. Isso vale para a Bolívia, para a Europa e para o Brasil. Os respectivos atores destes cenários políticos têm sua responsabilidade pelas escolhas que fazem e, invariavelmente, pagam o preço por elas.
A idéia de uma democracia republicana, que enfrenta um progressivo desgaste junto à opinião pública, também. Enquanto tudo isso ocorre, e o debate midiático restringe-se exclusivamente à esfera da moralidade e da honestidade individual dos agentes políticos, os agentes dos mercados atravessam relativamente ilesos a essas turbulências. Afinal de contas, supostamente, eles não têm a nada a ver com isso.
As escolhas e os preços a pagar
A esquerda tem pago um preço alto, em praticamente todo o mundo, por não conseguir enfrentar um dilema básico. Uma das lições que as experiências de governo de esquerda trouxeram, ao final do século XX, consistiu na incorporação do conceito de democracia como um elemento constitutivo da construção de qualquer coisa que mereça o nome de socialismo.
Essa incorporação implicou mudanças táticas e estratégicas na agenda de muitos grupos de esquerda, entre elas a elaboração de uma idéia de democracia que aliasse justiça social, participação, liberdade de expressão e respeito ao meio ambiente. A experiência que mais se aproximou desse projeto, no Brasil, foi a do PT gaúcho, cujos governos em Porto Alegre e no Estado, fizeram da capital gaúcha a capital do Fórum Social Mundial. Com todos os seus limites e imperfeições, essa experiência deixou dois símbolos fortes, de repercussão internacional: o Orçamento Participativo e o Fórum Social Mundial.
Símbolos que refletem escolhas sobre políticas de alianças, prioridades de governo e aposta na democracia participativa. Curiosamente, a experiência recente mais potente da esquerda brasileira não conseguiu um lugar importante na agenda de constituição política do governo Lula. As dificuldades trazidas pela herança do governo Fernando Henrique Cardoso, em particular o altíssimo endividamento do país, acabaram fortalecendo escolhas que hoje cobram seu preço.
E o preço mais alto é a ameaça de colapso político da própria experiência. É importante notar que são justamente aqueles setores sociais que exigiram do PT uma adaptação aos “novos tempos” e saudaram a “conversão” do partido à “modernidade” e o abandono dos radicalismos do passado, que hoje denunciam a falta de compromisso do partido com suas bandeiras históricas. O que está na base desse movimento é, entre outras coisas, um convite à interdição da própria política.
Um beco sem saída?
Se só há uma política econômica possível, pouco importa qual partido ganhe esta ou aquela eleição. Trata-se de fazer as adequações necessárias para que ela seja mantida. Os efeitos colaterais decorrentes desse processo de adequação devem poder ser rapidamente absorvidos pelo mercado, ao custo de algumas cabeças e, se for preciso, com a troca dos governantes.
Uma prova da realidade desse movimento é pensar o seu contrário: o que aconteceria se o governo Lula tivesse, desde o início, tentado romper com alguns dos pilares fundamentais dessa política? Estaria, sem dúvida, sob fogo cerrado desde o início. Como estão sob fogo cerrado movimentos sociais como o MST, cuja tentativa de criminalização só aumenta a cada dia.
Mas, se é assim, então estamos diante de um beco sem saída?
Essa é uma das principais perguntas que o cenário atual coloca diante de quem ainda acredita que é possível (e necessário) trilhar outros caminhos na política e na economia. E aqui voltamos às comparações com o que ocorre na Bolívia e na Europa.
São realidades distintas, é certo, mas o que elas apresentam em comum com o que assistimos hoje no Brasil é que, por mais que os defensores do pensamento único na economia defendam que não há outro caminho a seguir, essa necessidade segue sendo sistematicamente contestada, seja pelos aymaras e quechuas, seja por cidadãos franceses e holandeses. Por mais que se tente decretar a interdição total da política, ela reaparece, de modo incômodo, nos lugares mais diferentes do mundo, com novos agentes e novas formas de atuação.
Perceber essas conexões e entender o sentido de seu ocultamento no debate político atual pode nos ajudar a atravessar os duros dias de hoje sem sucumbir ao canto de sereia que pretende nos dizer que, para acabar com a corrupção, é preciso privatizar a política e transformar os políticos em gerentes.
As elites econômicas do Brasil, da Bolívia e da Europa sabem bem que esse ocultamento é uma condição vital para o sucesso de seus empreendimentos e para que os deserdados da terra, sejam eles aymaras bolivianos, sem-terra brasileiros ou trabalhadores europeus empobrecidos não se atrevam a tentar trilhas outros caminhos do que aqueles já pavimentados pelos mercados globais.
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