Previsões sobre o fracasso da reunião ministerial da OMC em Hong Kong por falta de acordos já apontam para a extensão das negociações da Rodada de Doha até março ou abril de 2006. Organizações sociais temem que isto facilite a reintrodução de temas já descartados, como compras
governamentais.
Poucos, entre diplomatas e analistas, são os que ainda duvidam de um novo fracasso da tentativa de concluir a Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) frente à falta de acordos no processo que antecedeu e que culmina na próxima reunião ministerial da OMC, que acontece de 13 a 18 deste mês em Hong Kong, na China.
Lançada no final de 2001 com um objetivo ambicioso de promover o desenvolvimento dos países mais pobres através da regulamentação do comércio internacional, a Rodada de Doha sofreu seu primeiro revés na Ministerial da OMC de Cancun, México, em 2003, quando a distorção dos seus princípios se evidenciou na falta de disposição principalmente dos EUA e da União Européia em abrir mão de mecanismos de proteção de seus mercados agrícolas, ao mesmo tempo em que apresentaram forte ofensiva para forçar condições favoráveis de acesso aos mercados de serviço e produtos não agrícolas (NAMA, sigla em inglês) dos países em desenvolvimento.
Pouco mudou, neste sentido, nas negociações preparatórias à Ministerial de Hong Kong. Nos últimos meses, apesar dos esforços para contornar as controvérsias que se concentram basicamente no tema agricultura, o documento preliminar que foi possível produzir e que deve ser levado à Ministerial para avaliação e ratificação é, segundo avaliações de ONGs internacionais que acompanham o processo, como a Focus on the Global South, “um pacote vazio de desenvolvimento”, com ofertas aos países mais pobres “desprovidas de valor real”.
De acordo com a última análise da ONG, “entre as principais questões – agricultura, NAMA e serviços -, o texto preliminar sobre serviços é o mais ambicioso, já que força desde já os países a tomar decisões que implicarão em compromissos de liberalização profunda. Em comparação, os textos sobre agricultura e NAMA, mesmo que perigosos, implicam que as decisões continuem ainda a um passo de distância. (...) Se o texto preliminar for aprovado tal qual apresentado, a liberalização dos serviços será um troféu que os países desenvolvidos ganharão em Hong Kong. Já o parágrafo 9 do texto será a porta de entrada para iniciar negociações setoriais, que continuarão acontecendo depois da conclusão da Rodada de Doha”.
A possibilidade de uma extensão das negociações para além do prazo estipulado para a finalização da Rodada de Doha – a Ministerial de dezembro – não se refere apenas a questões específicas, como as negociações setoriais apontadas pela Focus, mas já se fala abertamente em estender o prazo para o primeiro trimestre de 2006 para evitar uma derrocada da OMC.
Em entrevista concedida ao jornal alemão Handelsblatt em meados do mês passado, o chanceler brasileiro Celso Amorim falou sobre isso quando questionado sobre a dificuldade de acordos entre a União Européia e os vários países em desenvolvimento, como o Brasil. Segundo Amorim, a questão é se será possível resolver as contendas em Hong Kong, “ou se precisaremos de um pouco mais de tempo”.
“Eu tenho certeza de que, se a UE apresentar uma nova oferta em agricultura em Hong Kong, ocorrerá uma reação em cadeia [sobre redução de tarifas em NAMA e serviços dos países em desenvolvimento]. Mas faz parte da lógica desta Rodada o fato de que não podemos passar para uma próxima etapa sem ter resolvido esse problema”, afirmou Amorim.
Um dos temores das organizações da sociedade civil sobre a extensão das negociações – ou, em português claro, que não fracassem em Hong Kong, já que
acreditam que a base sobre a qual a OMC está fundada é a imposição irreversível do neoliberalismo nas relações internacionais – é que voltem a entrar pela porta dos fundos questões já descartadas anteriormente.
“Este é o caso das compras do setor público, que foram excluídas da agenda [da OMC] em Cancún, e que agora alguns governos tentam empurrar com ênfase através de cobranças nas negociações de serviços”, denuncia a Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip), organização composta pelos principais movimentos sociais do país e que vem acompanhando de perto o processo de negociações da OMC.
A questão das compras governamentais voltou no texto preliminar do Anexo C (que trata dos serviços) no paragrafo 4b, que afirma que "em matéria de contratações públicas, os membros deveriam se comprometer em discussões mais focalizadas (...), inclusive nas propostas para um possível marco sobre contrataçoes públicas", aponta a análise da Focus on the Global South.
Para a ONG, se não se eliminar este texto, os países exportadores pressionarão a posteriori para que se aprove um marco desse tipo sobre a base da posição da Comissão Européia. “Todas as compras governamentais no setor de serviços terão que estar abertas às transnacionais, e os países não poderão dar preferencia às empresas locais em contratos para projetos nacionais”. Ou seja, será imposta aos países em desenvolvimento uma abertura fatal de seus mercados antes que suas empresas estejam preparadas para competir com as multinacionais, acredita a Focus.
Alternativas?
Assim como vieram fazendo desde o início das negociações da Rodada de Doha, centenas de organizações e movimentos sociais do mundo todo se preparam para acompanhar a Ministerial da OMC em Hong Kong - do Brasil, organizações como a CUT, o MST, a Contag, a Fase, o Idec, a Aliança Social Continental, a Action Aid e o Inesc, entre outros, mandarão representantes. O objetivo é pressionar os negociadores dos respectivos países para tentar evitar acordos prejudiciais às suas populações e aos seus setores mais vulneráives.
“O processo negociador na OMC é mais um dos elementos da disputa por um projeto de país. Não aceitamos que, em nome de poucos e eventuais ganhos para um ou outro setor econômico (especialmente para a grande agricultura comercial de exportação) sejam impostas perdas para a ampla maioria da sociedade”, afirma nota da Rebrip, que considera preocupante a sinalização do governo de fazer concessões na área de bens industriais em troca de maiores facilidades para a exportação de commodities agrícolas, como quer o agronegócio brasileiro, um dos mais fortes jogadores na disputa interna sobre o posicionamento do país nas negociações da OMC.
Mas, se se confirmarem as previsões de fracasso de Hong Kong, se, como afirma a Rebrip, um provável desfecho vazio da Ministerial de dezembro não deixa dúvidas que a OMC vive um problema estrutural de falta de legitimidade, quais seriam as alternativas de regulamentação do comércio internacional? Sem a OMC, os EUA e a União Européia não investirão ainda mais pesado em acordos bi e multilaterais, cujos acompanhamento e combate pelas organizações sociais serão mais difíceis, por serem mais dispersos e setorizados?
Estes são questionamentos para os quais as diversas organizações ainda não têm uma resposta consensuada, afirma Mabel Melo, da ONG Fase. Mas, segundo Mabel, a tendência majoritária é a defesa de que os vários setores voltem a ser discutidos no âmbito dos organismos das Nações Unidas, como a FAO, para regulamentar a agricultura, a OMS, para tratar de saúde, patentes, etc, ou a própria Unctad, para debater questões de desenvolvimento.
De imediato, o que as organizações sociais esperam é que Hong Kong repita Cancun, onde os desacordos levaram ao travamento do projeto de liberalização da OMC. “Depois de Hong Kong, devemos seguir nosso caminho de resistência, debate e mobilização. Daremos também continuidade às nossas lutas contra os acordos de livre comércio em negociação nos âmbitos bilateral, regional e inter-regional. Por fim, reafirmamos nosso compromisso e solidariedade com os movimentos, redes e organizações que, no mundo todo, lutam pela garantia dos direitos e soberania dos povos”, conclui a Rebrip.
Carta Maior
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