O sociólogo francês Alain Touraine, em entrevista ao jornal "Correio Brasiliense", disse que está em curso uma “onda neopopulista” na América Latina liderada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, “com o dinheiro do petróleo, o ódio demagógico às elites e um anti-americanismo descabido”.

Se, por um lado, Touraine reconhece que não haverá uma democracia plena na América Latina com os atuais índices alarmantes de desigualdade social, por outro, diz temer que “outros países da região entrem na “onda neopopulista de Hugo Chávez”. A opinião de Touraine é típica de uma corrente de intelectuais e políticos social-democratas que vêem com desconfiança – senão com reprovação – a atuação de Chávez na região. A acusação de “populismo” ou “neopopulismo” é freqüente, sendo associada com uma suposta ameaça à democracia na região, fruto da ação política de figuras carismáticas como Chávez.

A crítica feita por Touraine ao “ódio demagógico às elites” e ao “anti-americanismo” revela um desconhecimento ou ao menos uma sintomática secundarização em relação ao papel dessas elites, tradicionalmente associadas ao governo dos EUA, na construção dos “índices alarmantes de desigualdade social” na América Latina. Bastam alguns dias em Caracas para constatar qual foi o legado criminoso da elite venezuelana nas últimas décadas. Alguns bairros de prosperidade na capital, cercados por milhares de casas e barracos precários nos morros que cercam a cidade. A elite venezuelana escolheu Miami como sua capital e não cansa de afirmar isso, inclusive com críticas de cunho racista a Chávez e seus apoiadores, que hoje constituem a maioria da população venezuelana. Essa mesma elite construiu uma relação parasitária com o Estado, onde a apropriação privada de recursos públicos foi a tônica. Portanto, não há nada de demagógico na denúncia de seus crimes.

Socialismo ou morte?

É verdade que o discurso de Chávez no FSM 2006 deixou muita gente de cabelo em pé, inclusive entre participantes do evento. O encerramento da sua fala foi marcado pela consigna “Socialismo ou Morte”. No caso, a morte do planeta, como Chávez enfatizou várias vezes referindo-se ao caráter predatório e destruidor do meio ambiente do atual estágio de desenvolvimento do capitalismo. No dia seguinte ao discurso, a feminista peruana Virginia Vargas disse, durante uma atividade do FSM: “Socialismo ou Morte” não faz parte da minha agenda de luta hoje e acho que a luta contra a discriminação sexual é tão importante quanto a luta contra o imperialismo. O ponto de Chávez e da maioria dos movimentos sociais que apoiaram seu discurso é que não há nenhuma incompatibilidade entre as duas coisas. Pelo contrário, a luta contra a violação dos direitos humanos seria parte essencial da defesa do socialismo e da ação contra o imperialismo.

Aliás, socialismo e imperialismo foram duas das palavras que mais apareceram no pronunciamento de Chávez. O socialismo do qual fala, neste momento, se expressa com um conteúdo fortemente anti-colonialista. O líder venezuelano procura filiar-se a uma tradição de lutas nesta direção ao longo da história do continente. Suas referências vão muito além de Simon Bolívar, falando do ressurgimento dos povos incas, de Tupac Katari, que combateu contra os espanhóis e disse: “Hoje morro, mas algum dia voltarei feito milhões”. E vincula-se com as lutas anti-colonialistas na África: “Carregamos a África dentro de nós, ela é parte de nós. Não se pode entender a América Latina e caribenha sem a África, o sacrifício da África e a grandeza da África, continente irmão, povo irmão”. E, por fim, vincula essa tradição com movimentos revolucionários do século XX, que têm em Che Guevara e Fidel Castro duas de suas principais expressões.

MR. Danger, o inmigo

Assim como ocorreu nos debates do FSM 2006 sobre o socialismo do século 21, Chávez não fala em fim da propriedade privada ou ditadura do proletariado. Economia solidária, cooperativismo, desenvolvimento sustentável e participação popular são alguns dos princípios gerais que compõem uma agenda ainda sem contornos bem definidos. O que unifica o discurso, acima de tudo, é a chamada a uma luta global contra as políticas do Império e contra o governo de Mr. Danger, modo como Chávez se refere a Bush. “Mr. Danger fala de direitos humanos e ali em Guantánamo torturam; pessoas desaparecem nas prisões secretas da CIA na Europa e no mundo. O maior terrorista do mundo se chama Mr. Danger. O império que estamos enfrentando hoje é o mais perverso, assassino e imoral que este planeta já conheceu em cem séculos”. Esse foi o tom geral de sua fala, que desagradou alguns que vêem nela uma excessiva politização da agenda do FSM.

Mas os principais movimentos sociais que participam do Fórum Social Mundial gostaram do que ouviram. Em uma reunião com Chávez no domingo, transmitida ao vivo pela televisão, discutiu-se, entre outras coisas, o fortalecimento de uma articulação política para a implementação de uma agenda global contra o livro comércio, a guerra, a militarização e os processos de privatização. Essas questões compõem uma espécie de núcleo duro da própria agenda que o FSM vem construindo nos últimos anos. Algumas das reações dentro do Fórum ao posicionamento de Chávez constituem, paradoxalmente, uma resistência à própria agenda política do movimento altermundista. Já se ouve, de modo mais ou menos explícito, opiniões que não falam apenas de divergências metodológicas, preocupadas com a autonomia do FSM em relação a governos, mas que questionam a incorporação de temas como os do socialismo e da luta anti-imperialista.

Questões a resolver

Essa resistência manifesta-se também através de algumas distinções conceituais e políticas que marcam o Fórum desde o início: distinções entre o social e o político, entre sociedade civil e partidos (e governos), entre horizontalidade e verticalidade. Segundo seus porta-vozes, o Fórum Social Mundial seria o reino da sociedade civil, do social e da horizontalidade. Os outros termos das distinções – político, partido, governo e verticalidade – seriam expressões de um modelo arcaico e ultrapassado, que já teria mostrado suas imperfeições na história, devendo ser descartado como caminho para a construção do “outro mundo possível”. Uma das coisas que o FSM Caracas mostrou é que a distinção entre o social e o político é extraordinariamente artificial e frágil. A cada ano, a política ocupa espaço dentro do Fórum, e seria estranho que não fosse assim, considerando o objetivo estratégico do movimento que questiona a legitimidade da atual ordem global.

A participação de Chávez, assim como já havia ocorrido em 2005, deixou a política em primeiríssimo plano na agenda do Fórum, sacudindo sua dinâmica interna. O apelo de Bamako, lançado em Mali, e a agenda de lutas lançada pela Assembléia Mundial dos Movimentos Sociais caminham nesta direção. A iniciativa de fortalecer uma agenda propositiva, declaradamente anti-imperialista e socialista, ganhou força e espaço. O que deve determinar o tamanho deste espaço, mais do que eventuais disputas internas dentro do FSM, é a conjuntura internacional, que costuma não esperar a resolução de disputas conceituais e metodológicas. A política segue seu curso, impondo seu tempo e suas exigências. A política interna do Fórum também está submetida a essa lógica. Afinal de contas, a construção de “outro mundo” só pode se dar “neste mundo” que, até onde se sabe, é o único que existe, com todos os seus limites e imperfeições.

Fonte
Carta Maior (Brasil)
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