Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos desenvolveram um sistema de propaganda sem precedentes. Através de estruturas como o Congresso para a Liberdade e a Cultura, eles corromperam as elites intelectuais ocidentais. Depois, ao instrumentalizar a liberdade de informação, afogaram o mundo no seu ponto de vista único, graças a poderosas agências de imprensa e a uma gigantesca rede de rádios profanas e religiosas, como nos revela René Naba no seu último livro, Aux origines de la tragédie arabe [Nas origens da tragédia árabe], do qual reproduzimos aqui um excerto.
Do bom uso dos princípios universais
Os grandes princípios universalistas raramente derivam de considerações altruístas. Na maioria das vezes, eles respondem a imperativos materiais. Foi assim com o princípio da liberdade de navegação proclamada pela Inglaterra nos séculos XVII e XVIII para assegurar a sua supremacia marítima, e consequentemente a sua hegemonia comercial no resto do planeta. O mesmo aconteceu com o livre-câmbio decretado pelos países ocidentais nos séculos XIX e XX, de modo a coagir a China a escoar as mercadorias ocidentais para os seus mercados internos em nome da "política da porta aberta". E assim viria a ser com o "princípio da liberdade de informação" firmemente defendido pelos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, com o intuito de estabelecerem a sua supremacia ideológica nos quatro domínios que condicionam o poder: político, militar, económico e cultural.
Na sua batalha ideológica pela conquista do imaginário dos povos, garantia essencial da perenidade de uma nação, os Estados Unidos desenvolveram uma argumentação baseada sobre uma dupla articulação, um argumento intelectual, o princípio da liberdade de circulação de informação e de recursos, um argumento prático, o pressuposto de que os Estados Unidos são a única grande democracia no mundo que não dispõe de um ministério da cultura, nem de um ministério da comunicação, prova irrefutável, segundo eles, de um regime de liberdade.
Apresentado como o antídoto absoluto para o fascismo e para o totalitarismo, o princípio da liberdade de informação, constitui um dos grandes dogmas da política estadunidense do pós-guerra, o seu principal tema de propaganda. É uma formidável máquina de guerra que responde a um objectivo duplo. Quebrar, por um lado, o cartel europeu da informação, principalmente o monopólio britânico dos cabos transoceânicos que assegura – via Cable and Wireless – a coesão do Império e confere uma posição preponderante à agência britânica de informação Reuters, e acessoriamente, a preeminência da Agência francesa Havas, a futura Agência France Presse (AFP) na América Latina, zona de interesse prioritário dos Estados Unidos.
Neutralizar, por outro lado, toda a crítica através da eliminação de toda a concorrência europeia que pudesse apresentar, aos leitores, os Estados Unidos em termos pouco elogiosos, a imagem desvalorizada do cow-boy americano mascando pastilha elástica, ou ainda mais grave, a segregação racial e os linchamentos do Klu Klux Klan, ou ainda o grande banditismo da época da proibição. Sob uma liberdade aparente irrompia já o controlo. Toda a literatura vai teorizar sobre esse princípio da liberdade de informação e dar uma roupagem moral a uma política de expansão [1] .
William Benton. Um dos mais eloquentes teóricos da matéria será William Benton, antigo secretário de Estado adjunto do presidente democrata Franklin Roosevelt, promotor do "New Deal". Benton que presidiu à prestigiosa publicação Encyclopaedia Britannica, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, convidará os Estados Unidos a "fazerem tudo o que estiver ao seu alcance" para quebrar as barreiras artificiais que se opunham à expansão das agências americanas privadas, das revistas, dos filmes e de outros meios de comunicação.
A liberdade de imprensa e a liberdade da troca de informação fazem parte integrante da política estrangeira estadunidense, afirmava ele, pensando que o controlo mundial das comunicações favorecia os fluxos de exportação [2] . Sob os grandes princípios irrompem já objectivos materiais.
Quanto ao argumento prático sobre a ausência de estrutura ad hoc de propaganda, é um facto fundamentado, mas que deve ser bem analisado. Certamente que não existe nem ministério da cultura nem ministério da comunicação no governo dos Estados Unidos, mas, nessa batalha ideológica, os Estados Unidos praticam, não o ataque frontal mas o entrismo, uma estratégia de contorno periférico, uma diplomacia multilateral instrumentalizando as organizações internacionais de vocação universal ou específica, replicada numa diplomacia paralela das suas agências especializadas: a CIA (agência central de informação) e as Fundações filantrópicas para o branqueamento de capitais [3] .
Quer seja a ONU, a UNESCO, o Conselho Económico e Social da ONU ou a Organização de Estados Interamericana, todas terão inscrito nas suas cartas "o princípio da liberdade de informação". Todas, pouco ou muito, terão tido um papel preponderante na propagação da doutrina estadunidense da livre circulação de informação. Serão apenas hipóteses? Não, a cronologia é suficiente para fundamentar essas afirmações. Em Setembro de 1944, o Congresso dos Estados Unidos oficializa essa política através de uma moção proclamando "o direito mundial à informação para as agências que recolhem e fazem circular a informação, sem discriminação", um direito que será protegido pelo direito internacional público.
Cinco anos depois da moção do Congresso, a Conferência interamericana do México adopta por seu turno uma resolução sobre o livre acesso à informação (Fevereiro de 1945), seguida da Conferência de São Francisco, quatro anos mais tarde, para a criação da ONU (Junho de 1945), depois pelo Conselho Económico e Social da ONU que inclui a resolução na sua carta em Fevereiro de 1946.
Depois, o princípio da liberdade de informação recebe uma consagração oficial por ocasião da primeira sessão da conferência geral da UNESCO em Paris (Novembro de 1946), seguida da Assembleia geral da ONU, um mês mais tarde, que proclama "a liberdade de informação, direito humano fundamental, implicando o direito de reunir, de transmitir e de publicar as notícias sem entraves" (14 de Dezembro de 1946). Os tempos ainda não eram os do jornalismo embedded, ligado ao exército, imbricado nas fontes da administração, praticado aquando da invasão anglo-saxónica do Iraque em 2003, por razões de "segurança nacional".
Em dois anos, a estrutura da diplomacia multilateral do pós-guerra fica prisioneira desse princípio. Os Estados Unidos conseguem fazer com que esse princípio conste da carta das cinco grandes organizações internacionais (ONU, UNESCO, ECOSOC (Conselho Económico e Social), Organização Interamericana de Estados e Assembleia Geral da ONU). A ONU contava nesta época com 55 membros, um quarto do número actual, com uma maioria automática pró ocidental composta por países europeus e latino-americanos sob a direcção dos Estados Unidos. Todos os grandes Estados do chamado terceiro mundo estavam ausentes. A China continental era boicotada em proveito de Formosa, a Índia e o Paquistão, as duas novas potências nucleares da Ásia, estão sob o domínio britânico, tal como a Nigéria e a África do Sul – os dois gigantes de África –, novos candidatos ao título de membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, enquanto o Magrebe e a África ocidental se encontram sob domínio francês.
Os Estados Unidos, que dispuseram, durante 15 anos, de uma maioria automática, não a desprezam senão quando ela se junta ao campo adverso, o bloco neutralista sustentado pelos soviéticos. Em consequência, durante 10 anos, essa maioria recusa pagar a sua cotização.
A extensão ao teatro euro-mediterrânico
Esse corpo doutrinal é animado pelo Congresso para a Liberdade e a Cultura, replicado no terreno de uma estrutura de apoio da disseminação temática, que aplica uma estratégia de interligação planetária, dita "global connection", constituída por uma rede de rádios profanas e religiosas e de publicações periódicas, animadas por prestigiadas personalidades nos principais teatros do confronto Este-Oeste, com uma incidência particular no mundo árabe.
O Congresso para a Liberdade e a Cultura (1950-1967)
Instrumento da guerra ideológica anti-soviética, o Congresso é constituído por um grupo heteróclito de dissidentes do bloco soviético, de intelectuais ocidentais, antigos companheiros de estrada do Partido Comunista ou de simples intelectuais desejosos de reconhecimento social ou bem-estar material [4] . A sua propaganda visa denunciar o materialismo marxista e sensibilizar os espíritos, no plano do conflito do Próximo Oriente, a uma adesão de Israel ao sistema de aliança do mundo ocidental.
Utilizando 5% do orçamento do Plano Marshall, cerca de 200 milhões de dólares por ano, o Congresso financia a publicação de dezenas de obras de sucesso sonante, como por exemplo, New Class, um estudo sobre a oligarquia jugoslava realizado por um dissidente anti-Tito, e Doutor Jivago do escritor russo Boris Pasternak ou ainda L’Art de la Conjecture do monárquico francês Bertrand de Jouvenel.
Entre os principais animadores do Congresso figuram Sol Lovitas, antigo colaborador de Leon Trotski, o fundador do Exército Vermelho, depois reciclado à cabeça da influente revista Partisan Review, Nicolas Nabokov, filho do músico Vladimir Nabokov, o escritor Arthur Koestler, ao qual a CIA assegurou a promoção do livro de culto O zero e o infinito, ao comprar secretamente várias dezenas de milhares de exemplares para fazer um êxito de vendas com as consequências editoriais inerentes. E assim se fez a glória desse antigo comunista húngaro, antigo kibbutznik israelense que se suicidou em Londres – o último acto do seu percurso atribulado.
O Congresso completa o seu trabalho de penetração através de um tecido editorial que se estende a todos os continentes, financiando a edição de quinze publicações nos postos avançados da Guerra-fria. Em França, o Congresso beneficia claramente do apoio de duas instituições: a Força Operária (FO), e a formação sindical dissidente da CGT (Confederação Geral do Trabalho), a principal central operária comunista francesa da época, da equipa do jornal conservador Le Figaro em torno de Pierre Brisson, amigo do sociólogo Raymond Aron [5] e de Nicolas Nabokov, bem como da ajuda de André Malraux, antigo ministro da Cultura de Charles de Gaulle.
Annie Kriegel, editorialista do Figaro, passa de ultra-estalinista a ultra-sionista encontrando nesse quotidiano uma tribuna apropriada às novas diatribes anticomunistas, bem à medida dos panegíricos em favor da "Pátria dos trabalhadores". Enveredando por um caminho intelectual semelhante, Alexandre Adler sucede-lhe trinta anos mais tarde nessa mesma função tribunícia no seio desse mesmo jornal, fustigando em longas colunas o novo inimigo público universal, o "fascismo verde", que o seu colega editorialista Yvan Rioufol designa com o termo estigmatizador de "nazislamismo" [6] .
Para além de Annie Kriegel, duas outras personalidades se distinguiram nessa actividade durante meio século devido ao seu papel de orientadores da opinião ocidental, particularmente, no que toca ao conflito israelo-árabe e à questão palestiniana: Walter Laqueur e Claire Sterling [7] . Nascido em Breslau em 1921 (actual Wroclaw na Polónia), naturalizado inglês, colaborador das revistas Commentary e The Public Interest, fundada pelo seu amigo Irwing Kristoll, pai de William Kristoll júnior, um dos teóricos do neoconservadorismo da administração George Bush Jr., por altura da guerra do Iraque (2003) e do "destino manifesto dos Estados Unidos", Walter Laqueur representou em Tel-Aviv, durante os 17 anos do seu funcionamento, o Congresso para a Liberdade e a Cultura. Ele contribui largamente para cimentar uma parceria estratégica entre Israel e o "Mundo livre", nomeadamente, os Estados Unidos e a Europa Ocidental, através de uma série de obras disseminadas na rede das quinze publicações do Congresso em todos os continentes. A Europa, nomeadamente, em Berlim e em Viena – os dois lugares de trânsito privilegiado do mundo – interpola dissidentes, expatriados e agentes duplos; em Roma, sede do partido comunista mais importante da Europa Ocidental, o Partido Comunista Italiano é animado por dirigentes lendários como Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer; em Beirute, tradicional repositório das turbulências árabes, a propagação das teses do Congresso destinadas ao mundo árabe e muçulmano faz-se por via de uma publicação em língua árabe, intitulada Al-Hiwar (O Diálogo).
Autor de diversas obras, designadamente La Génération Exodus [A Geração Exodus], Mourir pour Jérusalem [Morrer por Jerusalém], La Tentation neutraliste [A Tentação Neutralista], Walter Laqueur co-preside, com 85 anos, o Conselho de investigação internacional ligado ao CSIS de Nova Iorque [8] . Os seus mais recentes escritos centram-se na nova temática ideológica dos seus amigos neoconservadores: Une Guerre sans fin: le terrorisme au 21ème siècle [Uma Guerra sem Fim: o Terrorismo no século XXI], e ainda uma obra cuja ambição escondida é analisar todos os aspectos de um dos assuntos da actualidade mais violentamente discutidos: Les Voix de la terreur: manifestes, écrits, Al-Qaïda, Hamas et autres terroristes à travers le monde, à travers les ages [As vozes do terror: manifestos, escritos, Al-Quaeda, Hamas e outros terroristas do mundo, ao longo dos tempos].
Claire Sterling (1918-1995) reina durante meio século na Reader’s Digest, um dos principais vectores subterrâneos da guerra cultural levada a cabo pelos serviços americanos. Enquanto grande teórica da criminalidade transnacional, ela assume uma função de diversão, ao praticar com arte consumada a "técnica da esfumagem", lançando notícias mediáticas para desviar a atenção das suas próprias torpezas no seu campo.
Ela dedica-se, assim, a denunciar regularmente o polvo mafioso [9] , para ocultar melhor uma das maiores empresas criminosas do mundo, o sistema Clearstream, um sistema de compensação bancária do Luxemburgo encarregado do branqueamento das operações duvidosas das grandes democracias ocidentais [10] , ou ainda para ocultar a instrumentalização da comercialização da droga para o financiamento das operações clandestinas dos serviços estadunidenses na América Latina.
Difundida em dezassete línguas em 160 países, a Reader’s Digest populariza as análises de Claire Sterling, auto-proclamada grande especialista do terrorismo do Médio Oriente na sua obra The Terror Network (A Rede do Terror), exercendo dessa forma uma espécie de monopólio da intimidação pela especialização [11] . Sob cobertura do profissionalismo, Claire Sterling e Walter Laqueur terão alimentado as revistas especializadas, subvencionadas pela CIA, de crónicas cujo conteúdo é ditado directamente pelo seu fornecedor de fundos.
Prefiguração da endogamia contemporânea entre o poder político e o poder mediático, o Congresso para a Liberdade e a Cultura pratica em grande escala a auto-legitimação de um pensamento homogeneizado em que o especialista não se reconhece pela qualidade das suas investigações, mas pela sua frequência assídua nos fóruns mediáticos; em que o intelectual decretado como tal faz uma reflexão conforme a política editorial dos meios de comunicação para os quais ele é convidado, a fim de corroborar precisamente o pensamento que eles propagam.
Às custas de manipulações, falsificações, prevaricações, uma grande fracção da elite intelectual ocidental terá assim soçobrado nas falhas que ela hoje denuncia como uma das chagas do chamado Terceiro Mundo. Da autopromoção dos especialistas à auto-sugestão dos temas e à intimidação por via de uma pretensa especialização, "a América", arauto do "Mundo livre", terá utilizado, com a cumplicidade europeia e a conivência de certos líderes de opinião contra o totalitarismo, os mesmos métodos do totalitarismo.
As rádios profanas: um bombardeio de saturação
O dispositivo mediático posto em acção para levar a cabo o combate contra o comunismo, no plano internacional, e o combate contra o ateísmo, no plano árabo-muçulmano, responde a um objectivo que na terminologia militar se denomina "bombardeio de saturação em todas as direcções". Se no plano ideológico, a Radio Free Europe se encontra na primeira linha dos instrumentos de guerra psicológica contra o bloco soviético, na sua qualidade de retransmissora da produção intelectual do Congresso para a Liberdade e a Cultura, a Voice of America é, por sua vez, o vector de acompanhamento da diplomacia estadunidense, enquanto as rádios religiosas servem de alavanca da sensibilização dos grupos étnico-comunitários de confissão cristã na zona euro-mediterrânica.
Por intermédio da Radio Free Europe, os Estados Unidos asseguram plena cobertura da Europa Oriental e das repúblicas muçulmanas da Ásia Central, servindo de amplificadora dos debates e grandes manifestações artísticas ou culturais, editoriais e análises confeccionadas nas publicações satélite. Apoiadas intelectualmente e materialmente pela poderosa Freedom House [12] , braço armado da propaganda governamental e da direita conservadora internacional, as Radio Free Europe e Radio Liberty Inc., sediada em Praga (República Checa), dispuseram, durante 40 anos, de cinco locais de emissão na Europa, designadamente três na Alemanha com 54 frequências. A Radio Free Europe estende-se também ao continente latino-americano, e dá origem à Radio TV Marti (anti-cubana) e na Ásia, à Radio Free Asia.
Com a Voice of America (VOA), esses três vectores criam no seio da administração americana o International Broadcasting Bureau (IBB), dispondo de vinte locais de retransmissão no mundo, nomeadamente três nos países árabes (Marrocos, Kuwait, Emirados Árabes Unidos), bem como na Albânia, Grécia, Sri Lanka, Alemanha, Portugal e Espanha.
A rádio Voice of America é o primeiro vector trans-regional em termos de potência. Ela dispõe, para o sector Mediterrâneo-Oceano Índico, de 24 emissoras totalizando uma potência inigualável de 9.100 kW e de 83 frequências repartidas por três locais de emissão. Dois deles (Rodes e Cavala, norte da Grécia) destinam-se ao sector Médio Oriente/Ásia Central; o terceiro, Tanger, ao Magrebe, Balcãs e ao Mediterrâneo ocidental.
Esse dispositivo é completo por dois retransmissores instalados em dois principados petroleiros, o Kuwait e os Emirados Árabes Unidos. A estes juntam-se ainda os novos vectores criados por ocasião da segunda guerra contra o Iraque em 2005, a Rádio Sawa [Juntos/Em Conjunto], e o canal de televisão Hurra [Livre]. Sempre no Mediterrâneo, os Estados Unidos instalam, tanto na Itália como na Grécia, dois centros regionais radiofónicos para a produção de programas destinados às tropas estacionadas no quadro da NATO em Heraklion, na Grécia, sede da Armed Forces Radio e da TV Service Air Force European Broadcasting Squadron, e em Vicenza (Itália), sede do Southern European Broadcasting Service.
O Congresso funciona durante dezassete anos até à Terceira Guerra israelo-árabe de Junho de 1967. Depois, passa os seus poderes para as mãos dos pregadores electrónicos cujo zelo no proselitismo se vai conjugar com o lobbying da política sionista das organizações judias estadunidenses, com o intuito de conduzir Washington a empenhar-se num apoio incondicional a Israel. Estadunidenses e israelenses dedicam-se agora a promover uma "ideologia dos Direitos do Homem", segundo a expressão do historiador Peter Novick [13] , como arma contra o totalitarismo islâmico, numa segunda etapa, depois do afundamento do bloco soviético.
O proselitismo religioso: os pregadores electrónicos
Às rádios profanas sobrepuseram-se uma vintena de grandes corporações radiofónicas religiosas dispondo de meios financeiros e técnicos sem equivalente, nos dois terços dos países do planeta, cujas motivações nem sempre pareceram responder a considerações exclusivamente filantrópicas.
Empenhando-se em levar a "Voz do Senhor" ao mundo na esperança problemática de ganhar novos crentes para a causa do seu próprio deus, esses pregadores electrónicos nutrem uma predilecção particular pelos focos de tensão (Sul do Líbano, Sul do Sudão) e pelas minorias étnico-religiosas dos países fragilizados por dissensões intestinas (arménios, curdos, berberes) e, depois da invasão do Iraque, em 2003, pelo norte curdófono iraquiano. É esse o caso da IBRA Radio (International Broadcasting Radio) que anima no Médio Oriente, no Sul do Líbano e na zona fronteiriça libanesa-israelense, uma antena local de onda curta para as emissões da estação High Adventure, enquanto o Sul do Sudão, povoado de cristãos e de animistas em rebelião contra o governo islâmico de Khartoum, é alimentado pelos programas da Radio Elwa, emitidos a partir da Monróvia (Libéria) por missionários anglo-saxónicos.
Na primeira linha dessas corporações radiofónicas conta-se a Trans World Radio (TWR), seguida da Adventist World Radio (AWR), da FEBA Radio, da IBRA Radio, da WYFR-Family Radio, Monitor Radio e Nexus IBD. À excepção da Vatican Radio (1555 kW, 36 frequências, 33 línguas) e de uma minúscula rádio ortodoxa, Trans Europe Radio, todas as grandes rádios religiosas são de inspiração anglo-saxónica.
Todavia, pela sua amplitude e capacidades, a Trans World Radio (TWR) constitui-se como a primeira rádio planetária transfronteiriça de temática religiosa. Pioneira na matéria, a TWR assegura emissões em 100 línguas, em idiomas negligenciados pelas rádios dominantes ocidentais, o que faz com ela apareça nas novas terras de missão, nas zonas de evangelização de África e da Ásia, como um útil instrumento de apoio. Dispondo de nove retransmissores terrestres, designadamente cinco na Europa (Albânia, Mónaco, Países Baixos, Chipre e Rússia), dois na Ásia (Ilha de Guam e Sri Lanka), um na África (Swazilandia) e um na América Latina (Uruguai), a TWR gera as emissões de três locais mediterrânicos (Albânia, Mónaco e Chipre), depois estende-se a Viena (Áustria) e dispõe, só para a Europa, de uma potência substancial (1500 kW, 14 frequências e emissões em 30 línguas) superior a um bom número de rádios ocidentais. Nas margens sul do Mediterrâneo, a TWR assegura emissões em 21 línguas, entre elas, o curdo, o berbere, bem como outras línguas dos países mediterrânicos. Em Chipre, na sequência dos programas da RMC Médio Oriente e a partir de antenas da rádio francesa [14] , a TWR assegura emissões religiosas nocturnas em três línguas (árabe, farsi, arménio) através de onda-média para os principais países muçulmanos. A partir de Remoules (Sul da França) e do Cabo Greco (Chipre), graças à sua cooperação com a RMC France e a RMC-MO, a TWR goza da vantagem incomparável de poder transmitir ondas médias com um bom nível auditivo numa zona que abriga o centro histórico do Islão e as principais reservas energéticas mundiais. Duas outras rádios religiosas participam desta hegemonia mediática: a Adventist World Radio (AWR) e a Far East Broadcasting Association-Missionary (FEBA): a Adventist World Radio dispõe, para a Europa, de 16 frequências para emissões em 17 línguas, entre elas, o árabe (5 horas), o inglês (6 horas, das quais 3 são dirigidas ao Médio Oriente), o francês (5 horas para o Magrebe e a África), o farsi (2 horas), o urdu e o hindi (2 horas cada).
A título indicativo, as rádios religiosas anglo-saxónicas asseguram 9000 horas de programas por mês, o equivalente a 10 vezes mais que a Cairo Radio, o principal vector árabe do maior país árabe, o Egipto, que comporta a mais forte densidade populacional (75 milhões). Em comparação, a The Friends of Israel Gospel Ministry, igreja baptista estadunidense, difunde emissões a favor de Israel para 700 estações estadunidenses e publica a revista Israel My Glory em 151 países, angariando, só em 2005, o montante de 8,5 milhões de dólares a favor do Estado hebreu [15] .
Contando todos os dias, sem interrupção, e apenas na zona do Mediterrâneo, cerca de 2500 kW difundem programas numa vintena de frequências em todas as línguas do puzzle humano da esfera árabo-muçulmana, sem falar naturalmente da Vatican Radio, a rádio oficial da cristandade católica. Retransmitindo os programas religiosos nas emissões profanas dos vectores internacionais, os meios de comunicação das grandes corporações religiosas optimizam ondas e frequências saturando o espaço hertziano, como que para o limpar de toda a poluição anti-ocidental, ao ponto de dar a impressão a um passageiro de voo nocturno de este ter sido propulsionado para os confins do paraíso, embalado pelo Cântico dos cânticos. Muito antes da emergência dos fedayins palestinos na paisagem árabe, muito antes de Osama Ben Laden, muitos decénios antes da designação "ameaça islâmica" como o maior perigo do século XXI, quotidianamente, invariavelmente, incansavelmente, tal como uma sinfonia pastoral, os encantamentos divinos da liturgia ocidental tomavam já conta das ilhas do Mediterrâneo, em direcção ao espaço árabo-muçulmano, com uma meticulosidade monástica.
Em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as línguas, a aspersão é contínua, a intensidade diluviana. Sem excepção, todas as ilhas, de nomes tão evocadores de férias paradisíacas como o Chipre, Malta, Rodes, Creta, Sicília, são mobilizadas para pregar a boa palavra. Todas, inclusive o promontório de Gibraltar e o sereníssimo enclave do Mónaco. Para cumular de contentamento o soberano marroquino muito rigoroso nas crenças dos seus fiéis súbditos, justificar as imprecações dos argelinos contra o partido do estrangeiro ou as dos teólogos de Qom contra o "Grande Satã americano" ou as dos islamitas salafistas sobre "uma nova cruzada ocidental". Assim se alimenta o imaginário colectivo de populações tensas.
14/Dezembro/2006
Tradução de Rita Maia.
[1] Entre as obras que preconizam a liberdade de informação, citamos Barriers Down (Abattre les frontières) de Kent Cooper, director executivo da agência estadunidense Associated Press, Farrar & Rinehart éd., 1942; bem como a contribuição de James Lawrence Fly, presidente da Federal Communications Commission (equivalente estadunidense do CSA francês) «A free flow of news must link the nations», Free World, Volume VIII, Août 1944. Bibliothèque du Congrès.
[2] «La propagande culturelle au service des Affaires», Herbert Schiller, professor na Universidade da Califórnia, em San Diego, in Manière de voir n°47 (Cinquante années qui ont changé notre Monde), avril -mai 2004.
[3] La Fondation Ford, paravent philanthropique de la CIA e Pourquoi la Fondation Ford subventionne la contestation por Paul Labarique, Réseau Voltaire, 5 et 19 avril 2004.
[4] Quand la CIA finançait les intellectuels européens por Denis Boneau, Réseau Voltaire, 27 novembre 2003.
[5] «Raymond Aron, avocat de l’atlantisme» par Denis Boneau, Réseau Voltaire, 21 octobre 2004.
[6] « Choc des civilisations : la vieille histoire du « nouveau totalitarisme » » par Cédric Housez, Réseau Voltaire, 19 septembre 2006.
[7] Manufacturing Consent : The Political Economy of the Mass Media por Noam Chomsky, linguista e filósofo, professor no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e Edward S. Herman.
[8] CSIS, les croisés du pétrole , Réseau Voltaire, 6 juillet 2004.
[9] La Pieuvre. La mafia à la conquète du monde, 1945-1989 et Pax mafiosa, les multinationales du crime vont-elles s’emparer du pouvoir mondial ? Robert Laffont éd., 1990 et 1993.
[10] Révélation$ par Denis Robert et Ernest Backes, Les Arènes éd., 2001. M. Backes foi administrador da Réseau Voltaire.
[11] Who paid the piper par Frances Stonor Saunders, produtora de documentários históricos para a BBC, Granta Books éd., 1999.
[12] Freedom House : quand la liberté n’est qu’un slogan , Réseau Voltaire, 7 septembre 2004.
[13] Holocaust and Collective Memory por Peter Novick, Bloomsbury Publishing éd., 2001.
[14] L’audiovisuel extérieur français : cahoteux, chaotique et ethniciste por René Naba, Réseau Voltaire, 6 décembre 2006.
[15] «Evangelized foreign policy?» por Howard LaFranchi, The Christian Science Monitor, 2 mars 2006
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