Depois de ter analisado a igualdade dos homens e a diferença de culturas, depois relembrado que desconfiamos das pessoas que não conhecemos, o autor aborda quatro aspectos do Médio-Oriente : a criação colonial de Estados ; a necessidade das populações em esconder os seus chefes ; o sentido do tempo ; e a utilização política da religião.
Este artigo é a continuação de :
« Compreender as relações internacionais (1/2) », Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 25 de Agosto de 2020.
Uma região histórica, dividida artificialmente
Contrariamente a uma ideia feita, ninguém sabe muito bem o que são o Levante, o Próximo-Oriente ou o Médio-Oriente. Estes termos têm tido diferentes significados segundo as épocas e as situações políticas.
No entanto, os actuais Egipto, Israel, Estado da Palestina, Jordânia, Líbano, Síria, Iraque, Turquia, Irão, Arábia Saudita, Iémene e os principados do Golfo partilham vários milénios de história comum. Ora, a sua divisão política data da Primeira Guerra Mundial. Ela é devida aos acordos secretos negociados, em 1916, entre Sir Mark Sykes (Império Britânico), François Georges-Picot (Império Francês) e Sergueï Sazonov (Império Russo). Este projecto de Tratado fixara a divisão do mundo entre as três grandes potências da época para o pós-guerra. Todavia, tendo o Czar sido derrubado e não se tendo a guerra desenrolado como esperado, o projecto de Tratado foi aplicado apenas ao Médio-Oriente pelos britânicos e franceses sob o nome de «Acordo Sykes-Picot». Ele foi denunciado pelos bolcheviques que se opuseram aos czaristas, nomeadamente contestando o Tratado de Sèvres (1920) e ajudando o seu aliado turco (Mustafa Kemal Atatürk).
De tudo isso, ressalta que os habitantes desta região formam uma única população, composta por uma multidão de povos diferentes, presentes um pouco por todo o lado e intimamente mesclados. Cada conflito actual prossegue batalhas passadas. É impossível compreender os acontecimentos actuais sem conhecer os episódios precedentes.
Por exemplo, os Libaneses e os Sírios do litoral são Fenícios. Eles dominaram comercialmente o Mediterrâneo antigo e foram ultrapassados pela gentes de Tiro (Líbano), que criaram a maior potência da época, Cartago (Tunísia). Essa foi completamente arrasada por Roma (Itália), depois o General Hannibal Barca refugiou-se em Tiro (Líbano), e na Bitínia (Turquia). Mesmo que não haja consciência disso, o conflito entre a gigantesca, autoproclamada, coligação (coalizão-br) dos «Amigos da Síria» e a Síria prossegue a destruição de Cartago por Roma e o conflito dos mesmos pretensos «Amigos da Síria» contra sayyed Hassan Nasrallah, o chefe da Resistência libanesa, prossegue a caçada de Hannibal durante a queda de Cartago. Com efeito, é absurdo limitar-se a uma leitura de estado sobre os acontecimentos e ignorar as clivagens transestatais do passado.
Ou ainda, ao criar o exército jiadista do Daesh (E.I.), os Estados Unidos ampliaram a revolta contra a ordem colonial franco-britânica (os Acordos Sykes-Picot).
O «Estado islâmico no Iraque e no Levante» pretende, nem mais, nem menos, do que descolonizar a região. Antes de tentar separar a verdade da propaganda, é preciso aceitar compreender como os acontecimentos são experimentados emocionalmente por aqueles que os vivem.
Guerra perpétua
Desde o início da história, esta região é o teatro de guerras e de invasões, de civilizações sublimes, de massacres e mais massacres dos quais quase todos os povos da região foram vítimas, cada um por sua vez. Neste contexto, a primeira preocupação de qualquer grupo humano é a de sobreviver. É por isso que os únicos acordos de paz que poderão durar têm de levar em conta as suas consequências para os outros grupos humanos.
Por exemplo, é impossível desde há setenta e dois anos chegar a um acordo entre os colonos europeus de Israel e os Palestinianos por que se negligencia o preço que teriam que pagar os outros actores da região. A única tentativa de paz que reuniu todos os protagonistas foi a Conferência de Madrid convocada pelos EUA (Bush Sr) e pela URSS (Gorbachev), em 1991. Essa poderia ter sido bem-sucedida, mas a delegação israelita continuou agarrada ao projecto colonial britânico.
Os povos da região aprenderam a proteger-se desta história conflituosa mascarando os seus verdadeiros chefes.
Por exemplo, quando os Franceses exfiltraram o «Primeiro-Ministro» sírio, Riad Hijab, em 2012, acreditaram poder-se apoiar num peixe graúdo para derrubar a República. Ora, este não era constitucionalmente o «Primeiro-Ministro», mas apenas o «presidente do Conselho de Ministros» da Síria. Tal como o chefe de gabinete da Casa Branca nos Estados Unidos, ele era apenas um alto funcionário, secretário-geral do governo, não um político. A sua deserção não teve consequências. Ainda hoje, os Ocidentais se interrogam acerca de quem são os homens que contam à volta do Presidente Bashar al-Assad.
Este sistema, indispensável à sobrevivência do país, é incompatível com um regime democrático.
As grandes opções políticas não devem ser discutidas em público. Assim os Estados da região afirmam-se tanto como Repúblicas, quer como Monarquias absolutas. O Presidente ou Emir encarna a Nação. Na República, ele é pessoalmente responsável perante o sufrágio universal. Os grandes cartazes do Presidente Assad nada têm a ver com o culto de personalidade que se observa em certos regimes autoritários, eles afirmam a sua responsabilidade.
Tudo o que dura leva tempo
Os Ocidentais estão habituados e anunciar o que vão fazer. Pelo contrário, os Orientais declaram os seus objectivos, mas escondem a maneira como pensam lá chegar.
Moldados pelos canais de televisão de informação contínua, os Ocidentais imaginam que qualquer acção tem um efeito imediato. Pensam que as guerras podem ser declaradas de um dia para o outro e resolver de imediato as situações. Pelo contrário, os Orientais sabem que as guerras se planificam com, pelo menos, uma década de antecedência e que as únicas mudanças duradouras são as mudanças de mentalidade que exigem uma ou mais gerações.
Assim, as «Primaveras Árabes» de 2011 não foram erupções espontâneas de raiva para derrubar ditaduras. São a execução de um plano cuidadosamente elaborado pelo Foreign Office (Ministério das Relações Exteriores-br) britânico, em 2004, revelado na época por um denunciante, mas que passou despercebido. Plano este que foi imaginado segundo o modelo da «Grande Revolta Árabe» de 1916-18. Os árabes estavam persuadidos que se tratava de uma iniciativa do xerife de Meca, Hussein ben Ali, contra a ocupação otomana. Foi, na realidade, uma maquinação britânica, executada por Lawrence da Arábia, para controlar os poços de petróleo da Península Arábica e colocar a seita dos Wahhabitas no Poder. Jamais os árabes aí encontraram a liberdade, mas, antes o jugo dos britânicos depois do dos otomanos. Da mesma forma, as «Primaveras Árabes» não visaram libertar fosse quem fosse, mas, sim derrubar governos para colocar os Irmãos Muçulmanos (confraria política secreta organizada no modelo da Grande Loja Unida da Inglaterra) no Poder em toda a região.
A religião é ao mesmo tempo o pior e o melhor
A religião não é apenas uma tentativa de conectar o homem com o transcendente, é também um marcador identitário. As religiões produzem pois, ao mesmo tempo, homens exemplares e estruturam as sociedades.
No Médio-Oriente, cada grupo humano identifica-se com uma religião. Há uma quantidade incrível de seitas nesta região e criar uma religião é frequentemente uma decisão política.
Por exemplo, os primeiros discípulos de Cristo eram judeus em Jerusalém, mas os primeiros cristãos — quer dizer, os primeiros discípulos de Cristo que não se consideravam judeus— estavam em Damasco juntos com São Paulo, de Tarso. De forma idêntica, os primeiros discípulos de Maomé estavam na Península Arábica, eram considerados como cristãos que haviam adoptado um rito beduíno particular. Mas os primeiros seguidores de Maomé a diferenciarem-se dos cristãos e a intitularem-se muçulmanos estavam em Damasco, junto dos Omíadas. Ou ainda, os muçulmanos dividiram-se em xiitas e sunitas, consoante decidiram seguir o exemplo de Maomé ou os seus ensinamentos. Mas o Irão só se tornou xiita quando um imperador safávida decidiu distinguir os Persas dos Turcos convertendo-os a esta seita. É claro, hoje em dia todas as religiões ignoram este aspecto da sua história.
Alguns Estados actuais, como o Líbano e o Iraque, baseiam-se numa repartição de cargos segundo cotas atribuídas a cada religião. No pior dos sistemas, o do Líbano, estas cotas aplicam-se não apenas às principais funções do Estado, mas a todos os níveis da função pública até ao de funcionário do nível mais baixo da escala. Os chefes religiosos são mais importantes do que os chefes políticos. Como resultado, cada comunidade coloca-se sob a protecção de uma potência estrangeira, os xiitas com o Irão, os sunitas com a Arábia Saudita (e talvez proximamente com a Turquia), os cristãos com as potências Ocidentais. De facto, cada um tenta proteger-se dos outros o melhor que pode.
Outros Estados, como a Síria, fundam-se na ideia de que somente a união de todas as comunidades permite defender a Nação, seja qual for o agressor e os seus laços com uma ou outra das comunidades. A religião é um assunto privado. Todos são responsáveis pela segurança de todos.
A população do Médio-Oriente está dividida entre laicos e religiosos. Mas as palavras tem aqui um sentido particular. Não se trata de crer ou não em Deus, mas de colocar o domínio religioso na vida pública ou na vida privada. De modo geral, é mais fácil para os cristãos do que para os judeus e para os muçulmanos considerar a religião uma questão particular, porque Jesus não era um chefe político enquanto Moisés e Maomé eram.
Misturando percepção de Deus e identidade de grupo, as religiões podem provocar reações irracionais e extremamente violentas, como o islão político tem abundantemente mostrado .
O «Estado Islâmico» (Daesh) não é uma fantasia de lunáticos, antes se inscreve numa concepção política de religião. Os seus membros são maioritariamente pessoas normais, inspiradas pela vontade de fazer o bem. É um erro diabolizá-los ou considerá-los como estando embarcados numa seita. Talvez seja mais conveniente perguntar-mos o que os cega face à realidade e os torna insensíveis aos seus crimes.
Conclusão
Antes de fazer um julgamento sobre um determinado actor regional, é preciso conhecer a sua história e os seus traumas para poder compreender as suas reações a um acontecimento. Antes de julgar a qualidade de um plano de paz, convêm interrogar-se não se ele beneficia todos aqueles que o assinaram, mas se ele não irá prejudicar os outros actores regionais.
Permaneçam em Contacto
Sigam-nos nas Redes Sociais
Subscribe to weekly newsletter