Em três anos, a França atravessou duas grandes crises que não tiveram respostas : a denuncia da globalização pelos Coletes Amarelos e a da desintegração do Estado pelos sindicatos da Polícia. Nenhuma delas recebeu qualquer resposta de fundo. Se as constatações destes lançadores de alertas são partilhados por todos, tornou-se impossível dizê-las publicamente. A democracia não morre pela ausência de debates com contraditório mas, pior, pelo erigir de tabus.
Os Coletes Amarelos contra a globalização
Em 2018, a França foi sacudida por um vasto movimento popular, os «Coletes Amarelos ». Partindo de uma reivindicação contra a alta das tarifas de carburante, depressa ele se mostrou como uma contestação aos efeitos sociológicos da globalização do comércio mundial : desaparecimento das classes médias ocidentais, empobrecimento nas áreas rurais mal apoiadas [1].
Duas semanas após o início das manifestações, grupos não-identificados infiltraram-se no movimento para o sabotar a partir do interior. Assim, enquanto, durante 15 dias, todos os manifestantes brandiam orgulhosamente a bandeira francesa e cantavam a Marselhesa —o que não se havia visto nas manifestações populares desde há cinquenta anos—, vândalos encapuçados, vestidos de preto, vandalizavam o Arco do Triunfo e especialmente a escultura da Marselhesa. O julgamento que se seguiu mostrou que esse grupo de provocadores não-identificados não tinha nenhuma ligação com os Coletes Amarelos que foram, eles apenas, presos.
Na ausência de um líder apto a condenar essa intrusão, o movimento dos Coletes Amarelos foi enfraquecendo lentamente durante um ano. No entanto, a razão das suas reivindicações não desapareceu.
Antigamente, os políticos criavam «Comissões Theódule» para abafar os problemas que não queriam ver. O Presidente Macron, esse, inventou um «Grande Debate Nacional» com o mesmo propósito, na era dos média (mídia-br) de informação contínua. Todos falaram, mas ninguém recebeu uma resposta pertinente, nem do Executivo, nem da Assembleia.
Os polícias contra a desintegração da nação
Um segundo alerta acaba de ocorrer. Desta vez o problema é a ausência do 3º Direito do Homem e do Cidadão de 1789 —não confundir com os «Direitos do Homem» no sentido anglo-saxão— : a segurança. Ou seja, a capacidade dos cidadãos em exercer os seus direitos inalienáveis de liberdade e de propriedade. Efectivamente, constata-se não um aumento geral da delinquência, mas uma disparidade geográfica cada vez maior. Se os cidadãos do 7º bairro de Paris não se sentem ameaçados, os do 15º bairro de Marselha podem temer constantemente vir a ser atacados por delinquentes. Ao mesmo tempo, a polícia que deveria defendê-los mudou de função. Ela hesita entrar em certos bairros onde é atacada com cada vez maior frequência. Muitos policias temem, com razão, pelas suas vidas: uma dezena deles morrem em serviço todos os anos. Também, alguns deles estão lentamente a transformar-se em agentes de repressão da oposição política. Assim, em muitos casos, polícias fizeram um uso desproporcional da força contra os Coletes Amarelos e, hoje em dia, contra os opositores da política de saúde. Embora estes casos não sejam tão numerosos à escala do país, eles atestam que se trata de uma orientação que não é casual, mas deliberada, apoiada ao nível de topo do Estado.
Por enquanto, os polícias mantêm-se ligados a uma noção republicana, quer dizer, ao serviço de todos e não apenas das autoridades políticas. Os seus sindicatos multiplicam os alertas neste sentido e denunciam as condições de recrutamento dos seus jovens colegas. Com efeito, hoje em dia são admitidas na academia de polícia pessoas com antecedentes psiquiátricos e até pequenos delinquentes.
A eleição presidencial de 2022
Este segundo movimento, depois dos Coletes Amarelos, surge quando o país se prepara para uma nova campanha eleitoral: em Maio de 2022, a qual irá designar o Presidente da República. Desde logo, dois terços dos eleitores não desejam que o Presidente Emmanuel Macron se recandidate.
Tendo em vista os fracassos de Nicolas Sarkozy e de François Hollande, ambos no fim do primeiro e único mandato, Emmanuel Macron apenas pode esperar obter um segundo mandato correspondendo à expectativa popular. A expressa pelos Coletes Amarelos contra a globalização e a expressa pelos sindicatos da polícia contra o declínio da República, quer dizer, a do Interesse Geral. Não tendo a mínima intenção de assumir isso, o Presidente Macron pode ainda tentar uma manobra eleitoral :
– multiplicar artificialmente as candidaturas e descredibilizar os candidatos susceptíveis de vencer a primeira volta (turno-br), à excepção de um que ele tenha escolhido, de modo a que o venha a enfretar na segunda volta.
– organizar uma segunda volta contra Marine Le Pen, que ele terá diabolizado, e forçar a maioria dos seus adversários a votar nele, mais do que nela, em nome de uma «frente republicana» contra o fascismo.
Esta estratégia funcionou para Jacques Chirac (82%), em 2002, face a Jean-Marie Le Pen (17%). Hoje é arriscada, uma vez não tendo Marine Le Pen a imagem de uma fascista como seu pai, mas muito mais a de uma republicana. O Eliseu está, pois, à procura de oportunidades para a transformar em repelente.
O apelo dos antigos militares
Acontece que alguns antigos militares escreveram uma «Carta aberta aos nossos governantes» na qual sublinham a desintegração actual das instituições e avisam antecipadamente sobre um eventual recurso às Forças Armadas, segundo eles inevitável, para resolver a questão da segurança. Este apelo foi publicado no seu sítio internet, Place d’Armes, em 13 de Abril de 2021. O semanário de direita Valeurs Actuelles retomou-a, não nas suas colunas, mas no seu sítio internet, em 21 de Abril. Marine Le Pen, que afirma partilhar há muito tempo o diagnóstico destes antigos militares, convidou-os então a votar nela no mês de Maio.
O Eliseu julgou que a ocasião era boa e enviou os seus ministros, um a um, denunciar perante os média um «quarteirão de generais aposentados» que apelam, segundo eles, aos seus camaradas no activo para perpetrar um Golpe de Estado militar. Todos fingiram datar o apelo como de 21 de Abril, e não de 13 de Abril, de modo a que isso fosse visto como uma tentativa subversiva, no exacto dia, cinquenta anos após o putsch dos generais de Argel contra a independência da Argélia. Por fim, denunciaram o fascínio de Marine Le Pen pelo «ressoar das botas».
Ciente que podia esperar fazer melhor do que Emmanuel Macron no primeiro turno de 2022, o líder do “França Insubmissa”, Jean-Luc Mélenchon, dirigiu-se ao Procurador (Promotor-br) da República para que processasse os «generais subversivos». Com efeito, Jean-Luc Mélenchon tinha ficado em terceiro lugar durante a primeira volta da última eleição presidencial (19% dos votos, contra 21% em Le Pen e 24% em Macron).
O lugar dos militares no debate público
Convidamos os leitores a ler o texto desta Carta Aberta [2] e a constatar, por si próprios, que se trata de muito barulho por nada.
Chama-se «estado de emergência» à possibilidade do governo requisitar o Exército para manter a ordem. No entanto, os militares não são treinados para isso e a sua intervenção arrisca levar à perda de vidas, quando apenas as polícias e os gendarmes são formados para tal. Ora, em 2005, em 2015 e novamente em 2017 os governos decretaram-no. Mesmo hoje em dia, cerca de 10.000 soldados podem ser requisitados no quadro da «Operação Sentinela» a fim de proteger os cidadãos face a riscos terroristas. O mesmo acontece na Bélgica e no Reino Unido.
Além disso, a Constituição de 1958 prevê no seu Artigo 36 a possibilidade, em último recurso, de transferir os poderes de polícia e de manutenção da ordem do Ministério do Interior para as Forças Armadas. É o «estado de sítio». Na V República ele jamais foi implementado, mesmo durante o Golpe de Estado dos generais em 1961.
O Governo e o “França Insubmissa” sublinham que a Carta Aberta dos antigos militares nunca menciona que eles se situam no quadro constitucional e, deste modo, insinuam a sua vontade golpista. É um processo de intenções muito mau. Nada, absolutamente nada, permite acusar estes antigos militares de intenções subversivas.
Todo este alvoroço terá servido apenas para chamar a atenção para este texto. Mais de 10.000 antigos militares de facto assinaram-no, entre os quais uma trintena de generais. A pergunta que ele coloca é agora avaliada por todos e a inação dos governantes —todos os partidos incluídos— é gritante.
Sanções contra os que lançam alertas
A Ministra da Defesa anunciou que sancionaria os signatários. O opróbrio dirigido a Marine Le Pen atinge agora as pessoas às quais ela se dirigia. Azar ! Apenas 18 entre 10.000 estão ainda no activo. Eles corem efectivamente o risco de serem excluídos por violação do dever de reserva. Os aposentados, esses, gozam de plena liberdade de expressão. Apenas podem incorrer numa culpa por terem dado o alerta, mas será no mínimo espantoso que estes 10. 000 homens sejam colectivamente sancionados pela sua legítima afirmação cívica.
Os militares, quer estejam no activo ou na reforma, não são mais súbditos, mas cidadãos como os outros. Após o putsch de Argel, o Presidente Charles De Gaulle iniciou uma profunda reforma das Forças Armadas. Os militares que haviam recusado obedecer aos generais golpistas eram, com efeito, puníveis por violação das ordens. O General De Gaulle, que tinha ele próprio recusado em 1940 obedecer ao seu superior, o Marechal Philippe Pétain, e criara a França Livre, introduziu a distinção entre o que é «legal» e aquilo que é «legítimo». O Código da Defesa foi, portanto, modificado. Ele não autoriza os militares a escolher o seu campo, mas confere-lhes a obrigação de recusar ordens ilegítimas, ou contrárias à honra, e a deter os seus superiores se eles se envolverem em tais actos. Não há, portanto, nenhum complô contra a República. Nenhuma conduta subversiva.
Foi com razão que os signatários da Carta Aberta exigiram «falar de igual para igual» com o seu Chefe de Estado-Maior que os insultou. Todo o soldado, no activo ou na reforma, tem esse direito na sua qualidade de cidadão. Esse direito é o corolário da sua obrigação de Obedecer e de Servir.
Ao qualificar os signatários desta Carta Aberta de «subversivos», o Ministro da Justiça, Eric Dupond-Moretti, expôs-se a processos de ação penal. O antigo advogado não estava argumentando num tribunal. Portanto, ele é responsável pelas suas declarações.
Tabu
O facto de alguns dos 10. 000 signatários serem membros ou próximos do Partido de Marine Le Pen, a União Nacional, ele próprio originário do antecedente histórico dos antigos colaboradores dos nazis e dos golpistas de Argel, a Frente Nacional, não autoriza, nem a condená-la, nem em condená-los colectivamente. Em República, não há culpa, nem colectiva, nem por hereditariedade. Todos são cidadãos franceses de pleno direito. Não apenas nenhum foi alvo de indignidade nacional, como muitos serviram o seu país com glória.
No seu diagnóstico, os antigos militares não se contentaram em denunciar a retórica woke (acordar-ndT) que inibe o uso do monopólio público da violência, nem a ideologia do islão político. Eles expressaram também a sua consternação face à utilização anti-republicana que as autoridades têm feito das forças da ordem contra os Coletes Amarelos. A resposta desproporcionada do Estado à sua Carta Aberta mostra que acertaram em cheio.
Assistimos a uma inversão de valores que faz com que se julgue os homens de forma mediática —e talvez amanhã pelos seus corpos militares— não pelo que fizeram, ou mesmo pelo que pensam, mas porque fazem um diagnóstico que todos subscrevem e que poucos se atrevem a enunciar em voz alta.
O discurso político afastou-se progressivamente das realidades. Ele entra hoje por uma zona alterada onde, como em certas sociedades polinésias, aquilo que não se controla se torna tabu. Não só o «círculo da razão» [3] tenta desde há trinta anos interditar opiniões contrárias, mas agora tenta proibir a simples abordagem de certos assuntos.
Assim que os três primeiros Direitos do Homem e do Cidadão desaparecem -a liberdade, a propriedade e a segurança— o quarto emerge: « a resistência à opressão » (Artigo 2º).
[1] “Como o Ocidente devora os seus filhos”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de Dezembro de 2018.
[2] «Carta abierta de ex militares franceses a sus gobernantes», Red Voltaire , 13 de abril de 2021.
[3] Em 1994, o lobista Alain Minc descreveu a Fundação Saint-Simon, da qual era membro, como o « círculo da razão » que ele contrapôs à demagogia de Jacques Chirac
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