Não é exagero, nem proclamação vazia. É uma constatação cristalina: a grande batalha contra a globalização neoliberal se dá na Venezuela. A vitória ou derrota do governo Hugo Chávez no referendo revogatório está longe de ser uma questão interna do país caribenho e possui a rara característica de sintetizar uma contenda muito maior. Ali se joga o futuro das forças democráticas e progressistas mundiais nos próximos anos.

Com a adesão ao modelo neoliberal dos governos Lula, no Brasil, e Lucio Gutiérrez, no Equador, contrariando um desejo expresso nas urnas, o presidente Chávez desponta quase solitário como uma pedra no sapato para a hegemonia estadunidense na América Latina. Seu acompanhante mais próximo é o líder cubano Fidel Castro. Daí as pressões externas brutais - que incluem tentativas de isolamento internacional - que se manifestam pelo menos desde o final de 1998.

O TEMOR DAS ELITES

Em que pese o verbo inflamado do presidente, a conduta oficial no terreno econômico caracteriza-se por extrema cautela. A dívida segue sendo paga, a reforma agrária ainda não tocou nas grandes propriedades e as empresas anteriormente privatizadas e os contratos firmados seguem como estavam. Oficialmente, não se pretende construir uma sociedade socialista e o maior parceiro comercial são os Estados Unidos.

Então, onde mora o perigo? Reside no fato de que Chávez não realiza um governo que tenha se enquadrado politicamente na mediocridade dos países que o circundam. Deseja transformar o petróleo, principal riqueza nacional, em bem público, cujos dividendos sirvam para fortalecer o Estado e melhorar seus serviços, como educação, saúde e infra-estrutura. Opõe-se resolutamente à implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Aprovou uma nova Constituição, extremamente democrática, em 1999, e investe fundo na organização popular. As classes dominantes têm medo do que Chávez aponta para o futuro, um futuro com roteiro imprevisível para elas.

Crise Anunciada

A Venezuela é um país rico. Tem petróleo em abundância, cuja renda responde por 28% da composição de seu PIB e representa quase 80% de sua pauta de exportações. Mas também é um país profundamente desigual e dependente. Segundo dados da FAO (órgão das Nações Unidas voltado para a alimentação), 49% da população têm renda anual inferior a 230 dólares e cerca de 80% vivem na pobreza; 70% do que os venezuelanos consomem vêm do exterior.

Durante a década de 1970, após a elevação dos preços do petróleo, patrocinada pela Organização dos Países Produtores de Petróleo (Opep), o ingresso de divisas trouxe uma súbita prosperidade para alguns setores da sociedade. Eram os tempos da Venezuela petrolera. Mas no início dos anos 1980, os preços internacionais do petróleo despencaram e a crise da dívida externa tomou conta do continente. A Venezuela quebrou. O 28 de fevereiro de 1983 ficou marcado como o fim de um sonho. O presidente da República, Luís Herrera Campíns desvalorizou a moeda nacional, o bolívar, como culminância de um processo que incluía, nos últimos anos, a queda substancial dos preços do petróleo, disparada da dívida pública, que fora multiplicada por dez entre 1974 e 1978, e o aumento dos juros para empréstimos. O desemprego avançou aos saltos. dando início a uma crise material e de valores, que acabou se mostrando irreversível.

Com o fim da Venezuela petrolera, entrava em parafuso também o pacto político que a sustentou. No entanto o desenlace dessa crise ainda levaria uma década e meia para se manifestar plenamente e teria seu ponto de ruptura no caracazo, uma rebelião popular que se prolongou por uma semana, a partir de 27 de fevereiro de 1989, e que resultou em mais de 1.500 mortos. O episódio, marcado por violentas manifestações de protesto e saques em várias cidades, ocorreu logo após a posse de Carlos Andrés Pérez, em dezembro de 1988.

Soberania e integraçao

Tentando fazer frente a uma crise de endividamento e fuga de capitais, Pérez fechou um acordo com o FMI que incluía um acentuado aumento nos preços dos combustíveis para o mercado interno. A rebelião - e uma feroz repressão - foi uma conseqüência lógica dessas medidas. E, depois da quebra, o povo encontrou um canal de expressão e um ponto de apoio: o tenente-coronel Hugo Chávez Frias, que tentara um fracassado levante militar contra o governo Pérez, em 1992. Guindado à condição de herói nacional, Chávez foi eleito presidente em fins de 1998, com a promessa de mudar o país.

O processo chavista não tem como meta o socialismo, mas a luta pela soberania nacional e pela integração latino-americana. “Entretanto, é radical na busca por transformações estruturais”, garante Rafael Vargas, ex-ministro da Secretaria da Presidência. O centro de sua estratégia econômica é o controle do petróleo por parte do Estado - a Pdvsa (Petróleos de Venezuela, estatal petrolífera) sempre teve uma autonomia tamanha, que era chamada, nos anos 80, de “um Estado dentro do Estado” - e a diversificação da atividade produtiva, com justiça social. Busca, a duras penas, realizar uma reforma agrária e urbana que contemple a maioria despossuída.

Chávez não tem um partido revolucionário à altura deste nome e apresenta um estilo personalista e centralizador à toda prova. Mas há um marco importante: as classes dominantes o odeiam e ele rejeita concessões fáceis. E incentiva como poucos a organização popular. Não é tudo, dirão os mais exigentes. Mas é meio caminho andado para que ele vire seu país de pernas para o ar em favor de seu povo.

Publicado no semanario Brasil de Fato