A direita inventou uma forma de desqualificar quem se opõe a ela: “populista”. Nos dias que correm, é pior do que ofender a mãe. Mas, afinal, o que é mesmo “populismo”?
A nacionalização plena das riquezas do subsolo boliviano, a partir de 1° de maio, gerou uma penca de acusações ao presidente Evo Morales. A maior parte delas deve-se à dificuldade da mídia e do conservadorismo brasileiro entenderem o que acontece no país vizinho. Outra parte vem de aberta má-fé. Uma das acusações mais repetidas é a de que estaríamos diante de mais um gesto de um “populismo retrógrado” que seria, segundo a revista “Veja”, o principal pecado mortal da política.
Acusações
O termo “populismo” tem sido alardeado pelo pensamento conservador como peça de acusação contra qualquer tentativa de rompimento com os estreitos caminhos da ortodoxia neoliberal. Quem ousar fortalecer o caráter público do Estado e tentar materializar políticas distributivas de renda, será logo xingado de “populista” nas páginas e telas da grande imprensa internacional. Equipara-se o termo à demagogia, à mentira e à conversa mole de políticos espertalhões para se manterem no poder.
Não é novidade que o pensamento neoliberal tem sido pródigo na apropriação de determinados conceitos para – numa eficiente luta ideológica – mudar-lhes completamente o significado. Assim, o embate entre direita e esquerda não existiria mais, o que haveria em seu lugar seriam os atritos entre o “moderno” e o “arcaico”. Direitos sociais adquiridos por trabalhadores, após décadas de lutas, não passariam de “privilégios”. “Reforma” e “mudança”, antigos motes da esquerda, agora são palavras de ordem de governos neoconservadores, para justificar restrições nos regimes previdenciários, trabalhistas, e educacionais. No Brasil, um dispositivo legal para comprometer a administração pública com o pagamento de dívidas financeiras ganhou o sonoro nome de “Lei de Responsabilidade Fiscal”.
Quanto a “populismo”, o termo foi maltratado e desqualificado por certa intelectualidade uspiana, com o sr. Francisco Correa Weffort à frente. “Populista” foi a Era Vargas (1930-1945 e 1950-1954), a quem o conservadorismo brasileiro queria a todo custo “enterrar”, como repetia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
É preciso examinar o que significa “populismo” e o que querem dizer os acusadores. Apesar do termo referir-se originalmente a uma parcela radicalizada da intelectualidade russa da segunda metade do século XIX, vamos nos ater a manifestações mais recentes do populismo.
Economist Entra em Cena
A revista britânica “Economist”, edição de 12 de abril último, publicou uma extensa matéria intitulada “O retorno do populismo”. Logo de saída, o semanário afirma que “A tão falada guinada para a esquerda mascara algo mais complexo: o renascimento de uma influente tradição latino-americana”. Os dirigentes continentais da nova safra são ali divididos em dois grupos. O primeiro seria formado por “sociais-democratas da esquerda moderada”, como Lula, do Brasil, Michele Bachelet, do Chile, Oscar Arias, da Costa Rica e Tabaré Vazquez, do Uruguai. Um segundo grupo inclui Hugo Chávez, da Venezuela, Nestor Kirchner, da Argentina, López Obrador, do México,Alan Garcia e Ollanta Humala, do Peru e Evo Morales, da Bolívia. Neste estariam os “populistas”.
Apesar de mais honesta que a maioria da imprensa brasileira, a revista não consegue definir bem o que seria "populismo". "O termo geralmente descreve um político que busca popularidade através dos baixos instintos dos eleitores". Ao que parece seria um apelo à irracionalidade. A revista nada fala sobre o marketing político, tão disseminado em nossas sociedades pretensamente modernas. O marketing busca justamente tirar da escolha política qualquer ranço de razão, esparamando-se largamente por aspectos emocionais e simbólicos de cada candidato.
Conceito Elástico
O conceito é elástico o suficiente para alcançar qualquer coisa. O “Dicionário de Política”, organizado por Norberto Bobbio, ressalta mesmo que “O populismo não conta efetivamente com uma elaboração teórica orgânica e sistemática. (...) Como denominação, se amolda facilmente a doutrina e a fórmulas diversamente articuladas e aparentemente divergentes. (...) As dificuldades do populismo se ressentem da ambigüidade conceitual que o próprio termo envolve”.
A socióloga venezuelana Margarita López Maya, por sua vez, assinala que “o populismo não é, estritamente falando, nem um movimento sócio-político, nem um regime, ou um tipo de organização, mas fundamentalmente um discurso que pode estar presente no interior de organizações, movimentos ou regimes muito diferentes entre si” .
Uma classificação geral do que seria um líder populista, comumente aceita, dá contas de tratar-se do dirigente que estabelece vínculos e canais diretos com o povo, sem a mediação de instituições, entidades ou instâncias.
O líder populista relaciona-se com multidões, acima dos partidos, parlamentos, sindicatos etc. Há um componente centralizador na figura do chefe populista, em que, à falta de mediações, se torna a própria encarnação do Estado no imaginário das classes populares urbanas. Assim, a figura do “pai dos pobres”, no caso de Getúlio Vargas, no Brasil, ou a de redentor dos “descamisados”, quando se alude à Juán Domingo Perón, na Argentina, representam expressões dessa encarnação e de um projeto de nação numa só pessoa.
Cases Objetivas
Mas não se podem examinar as ocorrências do populismo apenas por seus aspectos exteriores ou manifestações fragmentadas. É necessário observar quais as bases objetivas para seu surgimento.
Em primeiro lugar, é necessário verificar que o populismo aconteceu prioritariamente em sociedades de capitalismo tardio, industrialização e urbanização aceleradas e deslocamentos de grandes contingentes populacionais do campo para a cidade em curtos períodos de tempo. Esses fatores raramente estiveram presentes nos países de desenvolvimento industrial mais extensivo, como aconteceu na Europa e nos Estados Unidos.
Margarita López Maya sintetiza bem a questão: “O populismo (...) associado ao período de trânsito das sociedades agrário-exportadoras para as industriais”.
Os casos brasileiro, argentino e mexicano, na primeira metade do século XX são ilustrativos. Os três países souberam aproveitar-se de uma conjuntura internacional pós-crise de 1929 e de conflito armado na Europa, entre 1939-1945, para incrementarem processos de industrialização iniciados nas primeiras décadas do século. Nos três casos, a centralidade da ação estatal no jogo econômico era mais do que evidente. Aplicando políticas de substituição de importações, os três, em ritmos próprios e obedecendo a condicionantes internos e externos, lograram, em poucas décadas, tornarem-se sociedades industriais e urbanas.
Aconteceram brutais processos de desenraizamento de milhões de pessoas, que migraram do campo para a cidade em busca de vida melhor. Alteraram-se padrões de vida, de referências familiares, de sociabilização, de afeto e de cultura sedimentados em décadas e até séculos. No plano político, estava selado o fim de uma institucionalidade baseada em oligarquias rurais e suas instâncias de poder, em favor de uma sociedade de massas sem parâmetros de identificação definidos de imediato. Essas levas de exilados do campo, juntamente com fluxos de imigrantes europeus, em sua maioria, viriam a formar a classe operária dos três países, com reivindicações até então inéditas. As lutas por direitos sociais, trabalhistas e de cidadania criaram demandas que o velho Estado oligárquico já não conseguia atender.
No Brasil
A história brasileira é exemplar. A partir da década de 1920, começa a perder força a oligarquia agrária, em favor de uma burguesia urbana, ao mesmo tempo em que se avolumam as demandas operárias e cresce o descontentamento entre os chamados setores médios. Quando a revolta atinge os quartéis, há um golpe, que muda a face do país, em 1930. O chefe da rebelião, Getulio Vargas, assume a presidência da República e inicia um governo ditatorial que vira de pernas para o ar o desenho institucional brasileiro e busca, como base social de sustentação, os vastos contingentes de trabalhadores das cidades e setores da diminuta classe média.
Ao mesmo tempo em que reprime os movimentos sociais organizados, o governo Vargas atende parte das reivindicações históricas dos trabalhadores, como registro profissional, jornada de 8 horas, salário mínimo e cria todo um arcabouço legal de normatização do trabalho, além de vincular solidamente os sindicatos ao Estado. Havia um desenho de país em execução, dirigido autoritariamente por uma hábil política econômica, atendendo aos reclamos de paz social dos vários setores do capital e incorporando a classe operária na disputa política. E atuando diretamente no atendimento das insatisfações populares e manejando frações da burguesia, surgia a figura do “líder populista”, que dirigia o país acima das instituições, entre outros motivos, por elas serem ou irrelevantes para o jogo político, ou estarem em processo de criação.
Díspares e Complementares
O modelo teve variantes em outros países. Luiz Alberto Moniz Bandeira lembra que “O golpe militar de 1943 abatera a predominância da oligarquia agrário-exportadora na direção da Argentina e Perón, cuja força crescia, tratava de organizar um sistema de poder similar àquele que Vargas organizara no Brasil, após a revolução de 1930, ao entretecer, como alicerce, a aliança dos militares com os trabalhadores e as classes médias urbanas, em torno de um projeto de industrialização e de desenvolvimento nacional”. No México, o populismo foi identificado a partir do governo de Lázaro Cárdenas, iniciado em 1934, e no desenho de um projeto nacional que incluísse a classe operária como parceira da burguesia, através do atendimento de inúmeras reivindicações de demandas sociais.
Margarita López Maya nota que “O populismo não pode e nem deve reduzir-se a juízos de valor negativos centrados em seus potenciais atributos demagógicos ou de manipulação dos interesses das massas, pois se bem que tal característica pode acontecer – e muitas experiências populistas o constatam – ele é um conceito muito mais rico que isso (...) e facilitou a inclusão política de setores populares ao longo do século XX” .
Populismo Atual
Em que aspecto as práticas políticas de Hugo Chávez, Evo Morales e outros podem ser caracterizadam como populistam e que populismo é esse?
No caso de Chávez, por exemplo, ele está a quilômetros de distância da demagogia de setores que se valeram da prática populista como maneira de exercer o domínio conservador.
A Venezuela vive uma crise política e social profunda desde, pelo menos, 1983, quando, por conta de um alto endividamento externo e queda acentuada dos preços internacionais do petróleo, o país literalmente quebrou. Em 1989 a situação se agudiza ainda mais. Depois de um acordo com o FMI, assinado pelo recém-eleito presidente Carlos Andrés Pérez, é anunciado um rígido pacote econômico duplicando os preços internos de combustíveis, cortando gastos e empregos públicos e impondo severo controle fiscal à economia.
O resultado não tarda: três dias depois do anúncio, em 27 de fevereiro, uma verdadeira rebelião popular toma conta da Venezuela. Saques, quebra-quebras, e manifestações contra o governo espalham-se pelas principais cidades. O exército intervém com uma brutalidade inigualável. O episódio ficou conhecido como Caracazo.
Quebra-se ali uma arquitetura social e um padrão de convivência construídos ao longo de todo o século, pretensamente baseado na tolerância e no respeito às diferenças. E o país assiste a um longo desmanche de suas instituições representativas, com a perda de legitimidade da Justiça, do parlamento, dos sindicatos e associações de classe. A crise econômica completava-se com a crise política. Hugo Chávez, que tentara uma sublevação militar em fevereiro de 1992, surge na esteira dessa crise e torna-se uma liderança extremamente popular da noite para o dia.
Sociedade Esgarrada
Quando se candidata e vence as eleições, Chávez se vê diante de uma sociedade esgarçada e sem referenciais institucionais com credibilidade. Sem marcos legais para se calçar, ele vale-se fundamentalmente de seu imenso prestígio pessoal e agudíssima intuição e ousadia políticas. Não havia, na Venezuela, outro caminho se não o de exercer sua liderança em linha direta com as massas.
Há aqui uma distante semelhança com características de alguns países latino-americanos no século XX, relatada anteriormente: estamos numa sociedade em transformação acelerada, em processo de definição de novos arcabouços institucionais e políticos. Não há movimento social organizado autonomamente no país, como acontece no Brasil. Em uma frase, inexistem pontos de apoio. Não se tratava – e não se trata – de uma vontade pretensamente caudilhesca ou autoritária, como acusam seus inimigos, mas de uma adaptação ás condições objetivas encontradas.
Chávez é não só um líder, mas o principal e praticamente único garantidor do processo político em curso no seu país. Não é de se espantar que sua prática tenha, de fato, contornos populistas. Seu populismo radical , no entanto, tem características civilizatórias na realidade venezuelana. Ao liderar o processo constituinte e estabelecer novos parâmetros de convivência e incentivar a organização social, o mandatário venezuelano busca redesenhar o Estado e seu papel como ente público. Ironicamente, ele é um populista que, ao fortalecer a organização popular, caminha para acabar com o populismo.
Evo Morales, por sua vez, lidera um movimento social e político mais organizado, o MAS, Movimiento Al Socialismo. Ao contrário de Chávez, que irrompe subitamente na cena política em 1992, Morales é fruto de décadas de mobilização social. Suas características populistas são menores, embora ele lidere um país em queas representações institucionais clássicas também entraram em crise. Desde que tomou posse, ele busca lidar com insatisfações e fazer concessões a movimentos organizados. A própria nacionalização do gás é uma reivindicação antiga e de diversos setores da sociedade boliviana.
Sobre Ollanta Humala, ainda é cedo para avaliar suas diretrizes, embora ele tenha aparecido após uma década e meia de desastres econômicos e sociais, produzidos por Alberto Fjimori e Alejandro Toledo.
Nesse ponto, a “Economist” é bastante franca: "Uma grande razão para a persistência do populismo é a extrema desigualdade social na região". É possível completar: desigualdade acentuada pela vigência do neoliberalismo.
Há um traço comum nos países latino americanos que assistem o surgimento de novos personagens políticos. Eles entram em cena na esteira da destruição de normas e parâmetros de convivência social e institucional nos últimos 15 anos. E as lideranças que surgem são mais ou menos populistas, de acordo com cada situação.
Em Resumo
1. Ninguém é populista porque e quando quer. Isso corresponde a necessidades históricas objetivas;
2. O populismo permitiu a entrada das massas empobrecidas no cenário político latino-americano;
3. A acusação de “populista” feita pela direita na atualidade busca encobrir o deate sobre as alternativas ao pensamento único;
4. O populismo não é, em si, positivo ou negativo. O centro da questão é: a devastação neoliberal enfraqueceu parâmetros de convivência institucionais. Recuperá-los muitas vezes – como o caso venezuelano mostra – tem sido tarefa de dirigentes com capacidade de se relacionar em linha direta com a população.
Isso tudo é teoria. Na prática, a direita odeia os populistas, acima de tudo, porque no termo está implicita a palavra “povo”.
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