De olho na implosão do Mercosul e no isolamento dos governos de esquerda, conservadorismo quer “porrete”. Após uma semana quente, Bolívia recua dos ataques ao Brasil.
A quem interessa uma radicalização das posições entre os governos do Brasil e da Bolívia? Seguramente não aos governos do Brasil e da Bolívia. O aumento da temperatura, com direito a faíscas, nos últimos dias, anima iniciativas delirantes da direita brasileira. O jornal “O Estado de S. Paulo” – nunca nos esqueçamos, um dos mais ativos agentes do golpe de 1964 – soltou na sexta-feira (12) um editorial intitulado “É hora de usar o porrete”. O jornalão vai logo dizendo: “O cenário mudou. Diante das declarações feitas pelo presidente Evo Morales em Viena, só resta ao Itamaraty exibir o porrete”. A expressão tem origem numa célebre frase do presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt (1901-1909). “Fale macio e leve um porrete” (“Speak softly and carry a big stick”).
Azedar as relações entre países do continente, neste momento, interessa fundamentalmente à Casa Branca e à direita latino-americana. No caso dos EUA, as razões são mais ou menos óbvias. O desentendimento regional implodiria a principal articulação dos países da região, o Mercosul, isolaria os governantes de esquerda, Hugo Chávez, Evo Morales e Fidel Castro, e abriria espaço para a ampliação da influência estadunidense na região. No caso brasileiro, colocaria em xeque a política terceiro-mundista do Itamaraty, cuja tradição, lançada pelo chanceler Antônio Azeredo da Silveira (1917-1990), remonta os anos 1970. Com isso, o país poderia retomar a política de maior submissão aos países ricos, marca do governo FHC, responsável, entre outras coisas, por uma acentuada perda de mercados internacionais para produto brasileiros. Em países como a Venezuela e Bolívia, o desentendimento reforçaria os setores mais reacionários, que não engolem a vontade popular expressa nas urnas. E, no plano imediato, acabaria com o maior e mais ousado projeto de integração regional, o Gasoduto do Sul, com mais de 10 mil quilômetros de extensão, da Venezuela ao sul da Argentina.
Prudência e deslizes
A condução da crise, pelo lado do governo brasileiro, tem se pautado pela prudência e pela maturidade, em meio ao intenso fogo de barragem desfechado pelas diversas vertentes do conservadorismo nacional, que vai do destemperado deputado Roberto Freire (PPS-PE) às alas mais xiitas do PFL. No entanto, dois pequenos deslizes verbais de autoridades brasileiras serviram, involuntariamente, de estopim para o aprofundamento da crise.
Primeiro foi o assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia. No domingo (7), ele declarou à “Folha de S. Paulo”, referindo-se a Chávez: “Não queremos na América Latina um clima de Guerra Fria. Até porque a Guerra Fria já acabou. (...) Determinadas intervenções que Chávez faz em determinados momentos não me parecem as mais adequadas”.
No dia seguinte, foi a vez do chanceler Celso Amorim. Em depoimento de cinco horas à Comissão de Relações Exteriores do Senado, ele rebateu as provocações, afirmando que "A política do Brasil nunca será a do porrete, mas a da boa vizinhança". No entanto, provocado insistentemente, o diplomata falou: "Foi transmitido ao presidente Chávez nosso desconforto e o desconforto pessoal do presidente Lula com algumas de suas ações".
Ambas as declarações – especialmente a de Amorim – foram detalhes em meio a falas, no geral, positivas. No entanto, elas ganharam destaque na imprensa. Foi o que bastou para uma elevação de tom na escala Richter da retórica latino americana. Na terça feira (10), a chancelaria venezuelana externou sua contrariedade:
“Com muita surpresa tomamos conhecimentos das declarações atribuídas pelos meios e comunicação a Marco Aurélio García, assessor especial da presidência, (...) e ao ministro de Relações Exteriores. (..) Afirmar que a decisão soberana ditada pelo presidente Evo Morales, de nacionalizar os recursos de hidrocarbonetos bolivianos obedeceu à influência do presidente Chávez pode-se atribuir a qualquer outra coisa, menos ao desconhecimento por nossos apreciados amigos brasileiros”. A nota considera ainda “um desrespeito repetir as provocações que a imprensa reacionária tem vertido sobre o presidente da Bolívia, apresentando-o como um tipo de homem sem personalidade e nem critério próprio para cumprir um mandato popular e um compromisso eleitoral”.
Pestempero e ressentimento
A entrevista coletiva de Evo Morales, em Viena, na quinta-feira (11), ajudou a piorar o clima. Num destempero verbal extremamente inábil, Morales atacou duramente a Petrobrás e o Brasil. Foi seguido pela declaração de seu Ministro dos Hidrocarbonetos, Andrés Soliz Rada, sobre o projeto do gasoduto do Sul: “Para que ele funcione, é preciso que seja executado por empresas estatais. Há um grave problema com a Petrobrás, pois 60% de suas ações estão nas mãos de transnacionais. Vamos investir enormes somas de dinheiro para beneficiar as sócias da Petrobrás?”.
O tom se elevaria mais, com a recuperação de uma pendenga de um século atrás por Evo Morales. Trata-se da negociação que resultou na incorporação dos estado do Acre ao Brasil, em 1903. Através do Tratado de Petrópolis, a área de 147 mil quilômetros quadrados passou para o território brasileiro, mediante a compra de interesses dos EUA e de uma indenização à Bolívia de dois milhões de libras-ouro, além da garantia da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, em plena selva amazônica, para escoamento de suas exportações em direção ao mar.
A Bolívia nunca conseguira ocupar plenamente o Acre, pela extrema dificuldade de acesso. Desde 1869 legiões de brasileiros chegaram à área. A migração se acentuou após a seca de 1877, no Ceará. Rica em seringais, a região acabou por se tornar uma das principais fontes de divisas para o Brasil. Luiz Alberto Moniz Bandeira, em seu fundamental “Brasil, Argentina e os Estados Unidos” (Editora Revan, 2003) detalha as intrincadas negociações com a Bolívia, que solicitou intervenção dos EUA na questão. Em 1901, o país assinou um contrato de arrendamento por 30 anos com o Bolivian Syndicate, de cuja sociedade fazia parte a família do presidente dos EUA, Theodore Roosevelt.
Vários levantes armados geraram um clima de conflagração na região. Um tortuoso jogo diplomático e de negócios, repleto de intrigas e agentes duplos, resultou no acerto final entre as três partes, a Bolívia, o Brasil e a empresa estadunidense. O acordo provocou dissensões na diplomacia brasileira. Rui Barbosa, que participara das articulações, logo afastou-se da delegação responsável, por discordar dos termos firmados. Podem existir ressentimentos do lado boliviano. Mas não se pode alegar que o Acre foi trocado “pelo preço de um cavalo”, como fez o presidente Evo Morales.
O tom do governo boliviano não se justifica. O governo brasileiro tem desafiado a truculência da direita interna e, em momento algum, se contrapôs aos reclamos nacionais de seu vizinho. Foi tratado como se fosse um inimigo a se derrotar. Ao que parece, o mandatário boliviano recuou das alegações, mas o clima segue tenso.
Processo contra ex-presidente
Em seu front interno, Morales sente necessidade de manter a temperatura elevada na disputa internacional, não apenas para garantir a maioria de votos nas eleições para a Assembléia Constituinte, mas para outras ações paralelas. Isso lhe dá popularidade e legitimidade para alterar a seu favor a correlação de forças nas instituições de seu país. Uma das ações governamentais é dar andamento a um processo judicial contra o ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada (2002-2003). Na última quarta-feira, a Corte Suprema de Justiça negou-se a abrir o processo e remetera a decisão ao Congresso. A pauta deve ser debatida nos próximos dias.
Segundo o jornal boliviano “El Diário”, a base de apoio governista garante a autorização congressual à para a abertura de um “Juízo de Responsabilidade” contra o ex-mandatário. Com a popularidade governamental em alta, até mesmo os partidos oposicionistas, apoiadores da gestão de Lozada, resolveram não se contrapor. O ex-presidente e 15 ministros são acusados, segundo o jornal, de “crime de genocídio, com a morte de pelo menos 60 pessoas”, por conta da repressão desencadeada pelo governo contra as revoltas populares ocorridas em fevereiro, setembro e outubro de 2003.
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