Chávez mais uma vez rouba a cena em encontro com seus colegas Lula e Kirchner, em São Paulo. Em coletiva de quase duas horas, ele fala dos projetos do gasoduto e de infraestrutura. Mais comedido nos ataques pessoais a Bush, não deixa, no entanto, de atacar a agressividade bélica dos EUA.
SÃO PAULO - A pontualidade segue a mesma: uma hora e dezessete minutos de atraso. A quase meia centena de jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas que se acotovelavam no mezanino do elegante hotel Sofitel, zona sul de São Paulo, estavam indóceis. “Que desrespeito, coisa mais terceiro mundo!”, “nem o subprefeito de Pinheiros faz uma coisa dessas” e “Vamombora!” eram as frases ouvidas. No relógio, 14:15 hs. da quente quarta-feira (26). A maioria estava ali desde as oito da manhã, sem almoço. Após horas de rarefeitas novidades, apenas o chanceler Celso Amorim dera uma rápida entrevista, sobre o encontro entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Nestor Kirchner e Hugo Chávez.
É o primeiro entre os três, desde a reunião de Puerto Iguazú, Argentina, em novembro de 2005, que praticamente enterrou a Alca. Na pauta, além de um encontro do mandatário brasileiro com sindicalistas, o trio detalharia a construção do Gasoduto do Sul, ambiciosa obra de mais de 10 mil quilômetros de extensão, os planos de integração comercial e a integração plena da Venezuela ao Mercosul.
Espaço Aberto
Parco em imagens e informações, o espaço estava aberto para Chávez. Nenhum dos jornalistas falava sério sobre retirar-se de um evento no qual uma das estrelas do cenário internacional dá as caras. Tanto que, ao entrar, de terno azul escuro impecável e ar tranqüilo, Chávez foi saudado por uma curta salva de palmas. Dominou o ambiente sem abrir a boca. Vários ministros venezuelanos estavam na sala.
Ensaiou desculpas, alegando que a coletiva não estava prevista, mas que resolvera falar sobre “tão importante reunião”. Seus colegas, que zarparam pouco antes, perderam generosos espaços na mídia continental. O clima lembrou as longas e informais entrevistas dadas pelo mandatário no palácio de Miraflores, em Caracas, para jornalistas internacionais. Largas elipses, citações de personagens históricos e tiradas espirituosas fazem parte de seu arsenal. Mas há um certo refinamento no discurso. Os ataques pessoais à Bush perdem evidência, enquanto critica de forma contundente a política e os atos da Casa Branca. “Não tenho nenhuma razão para duvidar da palavra das autoridades iranianas sobre seu programa nuclear pacífico”, responde, ao ser perguntado sobre uma possível invasão. Querem atacar o país como fizeram com o Iraque e o Afeganistão, assegura.
Comunidade Andina Morreu
Mas sua ênfase principal vai para os problemas regionais. “A Venezuela saiu da Comunidade dos Países Andinos porque esse grupo morreu. Quando um de seus membros resolve fazer tratados de livre comércio (TLCs) com os EUA, não há conciliação possível. Ou se tem o grupo, ou se negocia isoladamente com os norte-americanos”. A Venezuela exerceu sua soberania. Os EUA fazem uma ofensiva com os TLCs, como o acertado com a Colômbia e não nos restou alternativa, fala pausadamente..
Chávez aproveita-se das perguntas sobre o gasoduto e mostra ser essa sua atual menina dos olhos. Maior obra civil projetada no Ocidente, seus números finais sequer foram calculados. “É muito cedo”, diz ao microfone. “Os trabalhos começam agora, terão várias ramificações pelo Brasil, Argentina e demais países, empregará um milhão de pessoas e só serão finalizados em 2017”.
Perguntado se a eleição de Lula seria fundamental para o prosseguimento da obra, Chávez responde na lata: “Se fosse brasileiro, votaria em Lula”. Frases adiante, pondera. “Mas é uma construção tão fundamental, que existirá independentemente de quem venha a governar nossos países”. E explica: se o gasoduto não for construído, teremos um apagão energético em três ou quatro anos no coração do continente. “Se prevalecesse a visão dos anos 1990, a visão do neoliberalismo, do Consenso de Washington e do Estado mínimo, não haveria escoamento para o gás”. A frase serve de gancho para outra de suas idéias fixas. “É a materialização de nossa união, é a garantia de nossa independência e soberania”. E cita os tópicos da integração: Telesul, Petrosul, Banco do Sul e Gasoduto do Sul.
Outra pergunta. Olha para os lados, em meio a profusão de fios, cabos, objetivas e braços erguidos. “Você. De onde é?”. A repórter quer saber da viabilidade econômica da obra.
Integrando a Bolívia
“Se pensássemos apenas em ganhos e lucros, não estaríamos aqui. Estaríamos fazendo um gasoduto para o norte”. Puxa mapas e dados. “Um vício de militar”, brinca. “Olhem este aqui. Os Estados Unidos consomem 20 milhões de barris de petróleo por dia”. Pausa rápida. “Por dia”, repete. E agora vejam quanto produzem: “oito milhões”. Nova pausa. “Nunca terão autonomia petroleira, nunca”. E volta ao gás. “Queremos integrar a Bolívia a esse projeto. Juntos, Venezuela e Bolívia, detêm 80% das reservas do produto da América do Sul”. Tem encontro marcado com Evo Morales, sábado (30), em Cuba. Junto com Fidel, enfatiza. “Vamos discutir a integração via ALBA, a Aliança Bolivariana das Américas, nossa alternativa à Alca”.
Um copo d’água. Com a caneta na mão, indaga, “que pergunta mais, mais uma?”. Situação política? “A direita está desesperada no continente”, responde. Agora será no Peru, “Estamos falando bye-bye para o presidente Toledo. Espero que Ollanta Humala vença”.
Um repórter de televisão insiste. Quer saber de onde virá o dinheiro para tocar todos os planos. Confortável, com o petróleo batendo o recorde histórico de preços, ultrapassando os 75 dólares o barril, Chávez não perde o traquejo: “dos governos, dos estados e da iniciativa privada”. Há muitos empresários de porte querendo investir em projetos que dêem certo, como o do gasoduto, ressalta.
A esquerda está avançando, garante ele. “E que queremos com isso? Queremos o socialismo, não apenas para melhorar a vida das pessoas, mas para podermos viver em paz, sem guerras”.
Uma hora e cinqüenta minutos depois de iniciada a conversa, um locutor anuncia o fim da sessão. Chávez levanta-se, enquanto as pessoas o cercam para abraços, fotos e autógrafos. Ele ri. Parece estar em casa. Nem sinal da inquietação coletiva inicial.
Lula e Kirchner realmente perderam um bom lugar na foto.
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