O governo Lula acabou como agente de mudanças. É o grande legitimador não só da política econômica do governo anterior, mas da perpetuação do quadro de injustiças e desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira. Poucos são os que, conhecendo o governo e suas ações, têm expectativas de alteração da rota em curso. Isso se dá não apenas porque seu chamado "núcleo duro", a começar pelo próprio Presidente da República, se converteu no principal instrumento político, com legitimidade, para a aplicar um receituário econômico repudiado pelas urnas em 2002.
A senda adotada se torna também de difícil alteração pelo fato de o próprio governo ter, durante os últimos 18 meses, levado a cabo um deliberado processo de queima de navios que o ligavam a sua baseeleitoral e social e buscado estabelecer pontes com os setores que historicamente impediram qualquer esboço de mudança no Brasil.
A essa altura do campeonato, é quase inútil listar as ações que comprovam o inequívoco caráter neoliberal e conservador do governo Lula. Elas não estão apenas na fidelidade ao receituário de mega-superávits fiscais, taxas estratosféricas de juros, aprovação de reformas constitucionais em favor do capital financeiro, na manutenção do arrocho ao salário mínimo etc. etc. A bússola conservadora aponta também sua agulha para a aproximação com a Casa Branca, na política externa, através do envio de tropas ao Haiti e do afastamento crescente para com o governo Hugo Chávez, da Venezuela, no impedimento de se revelarem os documentos do exército sobre a guerrilha do Araguaia, na definição de um grande Proer da mídia, dentre outros, que nada têm a ver com exigências diretas do mercado financeiro.
O sintoma mais evidente disso é que praticamente não existe oposição política de direita ao governo Lula. Há oposição eleitoral e é importante separar as duas coisas. A primeira leva em conta a possível existência de um projeto alternativo no campo conservador, composto basicamente por PSDB e PFL. Isso não existe e as votações decisivas das reformas no Congresso Nacional o comprovam. A segunda se refere à disputa de espaço regional nas eleições que se avizinham, com vistas à sucessão presidencial de 2006. O apoio da direita parlamentar a um valor maior para o salário mínimo atém-se muito mais cálculos eleitorais do que disputa de concepções estratégicas.
Fim de um ciclo
Mas o que quer dizer exatamente "o governo Lula acabou"? Não significa, obviamente, que o presidente será retirado do poder de uma hora para outra, com todo seu séqüito de ministros e auxiliares. O fato é que a administração petista fecha um longo ciclo da história das lutas populares no Brasil, iniciado no final da década de 1970, nos últimos anos da ditadura militar.
O roteiro é por demais conhecido. A partir de 1973, após os choques do petróleo, a elevação dos juros norte-americanos e a desaceleração econômica nos países centrais, o modelo econômico da ditadura, baseado em alto endividamento externo, investimentos estatais e atração de capital estrangeiro entra em parafuso. A chegada de uma crise de grandes proporções, desemboca em duas maxi-desvalorizações da moeda nacional no final da década e na virtual quebra do país em 1982. Na esfera política, a degringolada da ditadura se concretiza na derrota do partido governista, a Arena, nas eleições proporcionais de 1974 e numa vigorosa ascensão do movimento de massas a partir de 1977, com a eclosão de mobilizações estudantis, greves operárias no ABC, culminando com os grandes atos pelas eleições diretas em 1984. Por suas dimensões e extensão temporal e geográfica, não é arriscado dizer que aconteceu naquela década a mais espetacular entrada das massas populares na cena política do país.
Essa onda de mobilizações teve como saldos organizativos o PT, a CUT, o MST, a UNE e uma série de outras entidades por todo o país, além dos grandes avanços sociais embutidos na Constituição de 1988. Tal impulso apresentou como último evento de grandes proporções a campanha eleitoral de Lula, em 1989. Precisamente nesse ano, dois fatores serviram para colocar na defensiva os movimentos populares em todo o mundo: a queda do muro de Berlim, com todo seu significado político, social e histórico, e a implantação definitiva do neoliberalismo em várias partes e, em especial, na América Latina, através das eleições de Salinas de Gotari, no México, Carlos Menem na Argentina e Collor de Mello no Brasil.
O reflexo do refluxo
O importante é analisar não apenas o refluxo do movimento, a partir dessa época, mas seu reflexo no principal instrumento político construído na década anterior, o Partido dos Trabalhadores. O 5o. Encontro Nacional do partido, em 1987, produziu as resoluções mais "à esquerda" que a agremiação teve em toda sua história. Nelas se colocava claramente o "rompimento com o FMI, a realização de auditoria interna e contra o pagamento da dívida externa", o "controle das remessas de lucro ao exterior", a "estatização dos serviços de transporte coletivo", "estatização do sistema financeiro" e, como "objetivo estratégico" estava "a conquista do socialismo e a construção de uma sociedade socialista no Brasil". Embora insuficientes, as resoluções buscavam apontar as características dessa nova sociedade.
No I Congresso do PT, em 1991, a formulação está mais mediada. O texto final faz "uma apreciação sobre as mudanças no cenário internacional, onde a crise do socialismo real se desenrola num contexto de reestruturação global da economia, da política e da sociedade", e afirma "nossa visão sobre o socialismo petista (nem socialismo real, nem social democracia)" e a "estratégia para alcançá-lo, com ênfase na disputa de hegemonia". O documento reconhecia ainda "o esgotamento do ciclo de revoluções socialistas, iniciado com a Revolução Russa de 1917".
Em 1993, no 8o. Encontro, ainda se diz que "o capitalismo e a propriedade privada não representam um futuro para a humanidade", menciona-se de passagem a "luta pelo socialismo", mas é apontada como estratégia a construção de um "governo democrático e popular".O encontro seguinte, realizado em maio de 1994, já sob o impacto do início do Plano Real, sequer menciona o socialismo e concentra-se muito mais em questões táticas do que em digressões estratégicas.
O 10o Encontro, em 1995, propõe-se a construir "uma alternativa ao neoliberalismo", com "uma nova política econômica com reformas sociais". Sai de cena definitivamente qualquer referência ao socialismo e evidencia-se com todo o vigor o oportunamente vago "modo petista de governar", buscando-se universalizar mecanismos que obtiveram relativo sucesso localizado, como o Orçamento Participativo, o Programa Primeiro Emprego, Bolsa-escola etc.
Pouco depois, o "modo petista de governar" incorporava as privatizações das empresas municipais de telefonia de Ribeirão Preto e Londrina, as "parcerias" com setores da burguesia, através do financiamento de campanhas e projetos administrativos levados a cabo onde o PT era governo.
Para não cansar o leitor com a descrição fria de trechos de resoluções partidárias, é importante apenas frisar que o caminho que vai do 5o Encontro até a Carta aos Brasileiros, tem seu desaguadouro na supremacia do marketing na definição das movimentações partidárias. O Farmácia Popular, por exemplo, nunca foi objeto de debate algum, tendo sido uma inestimável contribuição do marqueteiro Duda Mendonça à plêiade de factóides que se constituiu na campanha televisiva de Lula em 2002. No meio do caminho, tivemos o programa econômico construído fora do âmbito partidário, nos marcos da ONG de Lula, o Instituto da Cidadania. Trata-se de um texto bem intencionado, repleto de boas propostas pontuais, mas sem consistência macroeconômica, ao não tocar em temas essenciais, como a dívida pública.
Saída...pela direita
A trajetória aqui sucintamente arrolada representa um lento, gradual e seguro rumo à direita adotado pelo partido. Isso levava em conta a conjuntura nacional, a situação interna ao país e as próprias transformações tendentes a desintegrar a classe operária e os trabalhadores, base social original do PT, com a chegada do neoliberalismo e suas altas taxas de desemprego e pauperização acelerada. Cai a taxa de sindicalização e a informalidade avança no mundo do trabalho. Em outras palavras, a metamorfose pela qual passou o PT tem base material, para usar o jargão.
Mesmo assim, existiu uma aguda luta interna ao partido e os setores mais à esquerda conseguiram, por um breve momento, deter a maioria no comando da agremiação. Mas a partir de 1995, com a eleição de José Dirceu para a presidência, constitui-se o chamado Campo Majoritário, formando uma maioria estável na direção. Acelera-se a burocratização interna, a desmobilização de atividades de formação, de estudo e de formulação em favor de táticas eleitorais cada vez mais imediatistas.
A resistência da esquerda segue existindo, mas com um poder de influência decrescente.
A principal base organizada do governo Lula no movimento social, a CUT, não ficou atrás neste caminho. Depois de seu presidente à época, Vicente Paulo da Silva, apoiar a reforma previdenciária de Fernando Henrique Cardoso, em 1997, a entidade, apesar de esboçar resistências à reformas da previdência e ao novo valor do salário mínimo, não se opõe decididamente à essência destas medidas, que é a manutenção de um forte arrocho fiscal nas contas públicas.
Não há surpresa ou traição
Assim, ninguém bem informado pode se dizer surpreendido pelas ações do PT no governo federal e nem se sentir traído. Há anos Lula tem dado demonstrações cabais de que rumo tomava. Duas delas são significativas. A primeira foi sua oposição pública e frontal à longa greve dos petroleiros, em 1995, na qual o governo FHC agiu à imagem e semelhança de Margareth Tatcher diante dos mineiros ingleses no início dos ambos 1980: foi duro e inflexível, até quebrar a espinha dorsal da categoria, que até hoje, em que pese sua grande combatividade, amarga aquela pesada derrota. A segunda se materializou numa reportagem de três páginas da revista Veja, em 1997. Nela, Lula externa as seguintes opiniões à repórter Thaís Oyama: "Quero ser rico e anônimo, cansei de ser pobre e famoso" , "eu sempre tive o sonho de ir ao Massimo (um dos restaurantes mais caros de São Paulo)" e "vou fazer plástica quando tiver condições (...), quero tirar essa papada aqui do olho".
O exame destes fatos todos não resolve problema algum. Ao contrário, evidencia que os problemas para a esquerda brasileira são enormes e complexos. O governo Lula não é mais um governo apenas. Com todos os seus problemas, é resultado de pelo menos duas décadas e meia de história e acúmulo de forças dos movimentos populares. Hoje, quem rompe com essa história é o governo e este fato traz imprevisíveis conseqüências para os movimentos sociais e para a esquerda. Tomar posição diante da gestão Lula envolve debater de maneira aprofundada o significado dessa história e desse acúmulo. Apenas para nos mirarmos em outros momentos, vamos dar uma rápida examinada em situações de grandes mobilizações populares na história mais ou menos recente do Brasil.
Ei-los, os trabalhadores
Os trabalhadores aparecem com vigor na conjuntura política brasileira em
pelo menos mais três episódios do século XX. O primeiro deles se dá a partir das grandes greves paulistanas de junho de 1917, que praticamente pararam a atividade produtiva da cidade, deflagrada a partir dos operários têxteis do bairro da Mooca. A mobilização, dirigida pelos anarco-sindicalistas, repercutiu em paralisações por todo o Estado, chegando até o Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia Pernambuco e Rio Grande do Sul. A data coincide também com a Revolução Russa, que forneceu um formidável impulso às reivindicações libertárias em todo o mundo.
O resultado organizativo mais expressivo dessa fase foi a fundação do Partido Comunista (PCB), em março de 1922. Apesar dos esforços de seus militantes, nos anos iniciais, o Partido era pouco mais do que um reduzido agrupamento político com pouca presença no movimento popular.
A repressão feroz do governo Arthur Bernardes em muito contribuiu para isso, além do peso ainda relativamente pequeno da classe operária na estrutura social brasileira. Somente no início dos anos 30, quando o Partido recebe a adesão de Luis Carlos Prestes, já então uma figura lendária, o Partido passa a ter voz mais expressiva no cenário político.
Este ciclo de acúmulo de forças fecha-se em 1935, após a equivocada tentativa de levante militar patrocinada pelo Partido, que é quase dizimado pela duríssima repressão da ditadura Vargas.
Os ciclos pós-Estado Novo
Uma onda curta, mas profunda, acontece na queda do Estado Novo, em 1945, com larga mobilização sindical e popular. Surge aí todo o arcabouço partidário - UDN, PTB, PSD e reaparece com força o PCB - que regerá a vida institucional até 1964. Esta etapa se encerra com a agudização da guerra fria e a ecretação da ilegalidade do PCB, em 1947. ma terceira vaga de mobilizações intensas acontece no início dos anos 1950 e tem como marcos a campanha do "Petróleo é nosso", a greve dos 300 mil, em março de 1953, em São Paulo e as manifestações ocorridas por ocasião do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. Disputavam a direção do movimento popular o PCB e o PTB, de forte influência getulista. É um dos períodos mais complexos da história da luta de classes do Brasil e não é propósito destas linhas examiná-lo no detalhe. Como saldo organizativo, o período gerou o
Comando Geral dos Trabalhadores, a Contag, as ligas camponesas e um vigoroso movimento sindical urbano e rural. Este acúmulo de forças é interrompido violentamente com o golpe de 1964.
Ao contrário do período pós-Estado Novo, em que a esquerda permaneceu, em sua maior parte, unida em torno do PCB, o que temos a partir do golpe é um cenário de dispersão e fragmentação. As diversas organizações de esquerda sobreviventes a partir daí só viriam a convergir novamente quase duas décadas depois, com o surgimento do PT, a partir das greves de São Bernardo do Campo. Vale notar que diante das duas derrotas, a esquerda levou um longo
período para se reorganizar com força.
Significado perverso
Para que serve rememorar estes dois ciclos anteriores? Por dois motivos. O primeiro é para evidenciar que organizações populares só ganham musculatura em períodos de ascensão das lutas de massas. E segundo, para mostrar que outra derrota está em curso. Este é o significado mais perverso da estratégia do governo Lula de "acalmar os mercados" e "ganhar a confiabilidade dos investidores". Embora a conversão do núcleo dirigente do PT fosse previsível, as expectativas de grande parte de sua base social, que nele votou esperando mudanças vão, paulatinamente, se transformando em frustração. A distância entre o que simbolizava a eleição de Lula para largas parcelas e o que é de fato o governo Lula, com o deslumbramento desbragado evidenciado por seus dirigentes, é um poderoso fator de dese ducação política e ideológica. Mais do que ninguém, Lula hoje reforça a
idéia de que "político é tudo igual, diz uma coisa e faz outra".
Pensando domesticar forças sobre as quais não têm o menor controle - os
fluxos internacionais de capitais - a administração federal enreda-se nos descaminhos dos pequenos negócios parlamentares em busca de votos, enquanto vê seu capital político junto às camadas populares decrescer. Tenta aproximar-se das classes dominantes, continuando o serviço que seus representantes preferenciais - PSDB e PFL - não conseguiram levar a cabo, mas estas o apóiam momentaneamente, enquanto não consegue derrotá-lo nas urnas.
O cruel de toda a história é que as elites econômicas desprezam Lula e o que ele ainda apresenta de características populares. Nenhuma manifestação de preconceito de classe é mais cristalina que uma passagem de um editorial do jornal O Estado de São Paulo de 20 de maio de 2004. O título é sugestivo: "Saudades de Marco Maciel". O texto começa lamentando "A falta que faz o vice-presidente Marco Maciel!" Ele teria sido "o que todo chefe de governo espera de seu eventual substituto". E logo em seguida o jornal dos Mesquita
fulmina: "Já não bastasse o fato de o presidente (Lula) não ser nenhum
Fernando Henrique (...), o perfil do segundo de Lula é a antítese de todos aqueles atributos".
Com tudo isso, com a perspectiva de uma derrota inesquecível nas urnas -
para a velha direita, é bom lembrar! -, com a crescente insatisfação popular e com esse desprezo da burguesia, é quase inacreditável que o governo siga firme o caminho que escolheu. Mas os mistérios da alma dos recém-convertidos a seitas fundamentalistas são insondáveis...
A esquerda e seu labirinto
A esquerda brasileira está diante de seu mais complexo desafio, esteja ela dentro ou fora do PT, nos movimentos sociais ou na universidade, em todos os cantos enfim. Não são os insatisfeitos do PT que vivem um dilema; são todas as forças progressistas no Brasil. Um ciclo se fecha mas não está claro se outro se abrirá tão cedo. A onda de descontentamento que possibilitou a vitória de Lula se agudiza e ela pode se voltar contra o próprio PT e, no limite, contra a esquerda em geral.
Não há evidências ainda de que este descontentamento possa se transformar em impulso mobilizador real no curto prazo. Mas há que resistir a cada investida governamental contra direitos sociais, serviços e equipamentos públicos. Resistir sem ilusões de que este seria "nosso" governo, o governo da esquerda. Lamentavelmente não é.
O debate dos próximos anos entre aqueles que desejam uma efetiva
transformação da sociedade brasileira deve se dar sem sectarismos, sem
fórmulas prévias e com o espírito desarmado. Para que a derrota que de fato existe seja examinada e superada no menor período possível.
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