Tomar o poder para transformar o mundo, mesmo que seja em pequenas doses. Esta é a avaliação do escritor e cineasta anglo-paquistanês, Tariq Ali, um dos principais líderes mundiais do movimento antiglobalização. Para Ali, o laboratório de experimentos do modelo neoliberal, a América Latina, começa a rebelar-se contra o "império estadunidense" e um dos exemplos dessas mudanças é a Venezuela.
"Esse é um exemplo que os estadunidenses querem eliminar", diz Ali.
O escritor, que esteve em Caracas semanas antes do referendo revogatório, avalia que mais do que basear-se em estereótipos para qualificar o governo de Hugo Chávez, é preciso avaliar as mudanças que estão ocorrendo na vida das pessoas. Em contrapartida, critica o presidente brasileiro, Luiz Ignácio Lula da Silva, por não governar para a população que o elegeu. "Lula é um líder débil que está tão emocionado de estar no poder que se esqueceu porque está no poder".
Para ele, a solução para a crise que enfrenta a esquerda latinoamericana, refletida em grande medida no Brasil, seria a criação de um movimento para a refundação da esquerda.
- Como se explica a explosão dos movimentos sociais latinoamericanos contra o neoliberalismo?
- Acredito que a razão é que a América Latina foi utilizada pelos Estados Unidos, durante muito tempo, como laboratório. Tudo que os EUA propunha colocava em prova primeiro na América Latina. Quando queriam, utilizavam os militares, a nível político, para esmagar os movimentos populares, soltando as rédeas às ditaduras militares. Primeiro fizeram na América Latina: Brasil, Argentina e Chile, três das ditaduras mais brutais que já vimos. Logo depois do colpaso do inimigo comunista (União Soviética), baixaram a guarda na frente política, mas fecharam a América Latina com o punho econômico e disseram: "Essa é a única maneira de avançar". Se damos uma olhada no mundo, poderíamos resumir-lo desta maneira: América Latina, o laboratório do império estadunidense, e a primeira a rebelar-se contra ele. Por isso, muito processos distintos e interessantes estão ocorrendo na região e acredito que onde se concentra a debilidade dos movimentos é a sua incapacidade para se unir e refundar a esquerda latinoamericana.
- Quando o modelo neoliberal começou a se decompor?
- O que se iniciou aqui foi um processo de desindustrialização e de ingresso de investimentos estrangeiros. Os exemplos mais clássicos foram Chile sob (o general Augusto) Pinochet, Brasil com (Fernando Henrique) Cardoso e Argentina durante distintos governos sucessivos. Eles desindustrializaram o país. Acreditavam que poderia funcionar dentro de uma bolha econômica criada por um auge fictício, em grande parte impulsionado pelos investimentos estrangeiros, capitais que ingressavam aos bancos onde ofereciam juros baixos. No entanto, quando apresentavam algum risco para os investimentos, reitaravam os fundos. Eram capitais internacionais, não tinham a mínima motivação para desenvolver o Brasil ou Argentina. Com esses efeitos, começaram a surgir da base movimentos sociais de camponeses sem-terra, da classe trabalhadora desempregada, que começaram a fazer frente a esta realidade.
- As respostas foram mobilizações em todo o continente...
- Os resultados são muitos. A luta em Cochabamba, na Bolívia, contra a privatização da água, a dos campesinos de Cuzco, no Perú, contra a privatização da eletricidade. Em ambas lutas os governos primeiro reprimiram, e logo tiveram que retroceder. Depois, diante de um insólito colapso na Argentina, onde em um período de três semanas ascenderam ao poder e foram depostos quatro ou cinco presidentes, começou a se evidenciar de maneira gráfica a crise do capitalismo neoliberal. No Brasil, Cardoso havia desindustrializado o país completamente, havia desaparecido a burguesia nacional, assim como as tradições dentro da esfera capitalista e o país começou a sofrer. Este sofrimento estimulou o avanço dos Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e a um enorme sentimento que conduziu eleitoralmente Lula e o PT ao poder.
- E o caso da Colombia, a militarização é bastante similar à estratégia estadunidense durante a Guerra Fria. Como se interpreta isso no marco de uma estratégia essencialmente econômica?
- A Colombia é um caso excepcional neste momento, assim como a Venezuela, onde se fracassou um falido golpe de Estado. O farão se nada mais der resultado, quando sentirem que a democracia já não serve a seus interesses e acudirão novamente aos militares, isso é óbvio. No momento o problema é como desenhar uma sociedade em que se possa concretizar projetos, projetos social-democrata para os pobres. Na minha opinião, essa é a chave. É por isso que a Venezuela é muito importante. Antes de ser eleito, Lula surgiu como uma possibilidade. Argentina havia entrado em colapso e na Venezuela havia um Chávez. Se existisse uma Confederação Bolivariana, integrada por Brasil, Argentina, Ecuador, Bolívia, Venezuela e Cuba, juntos poderiam gerar uma maneira totalmente distinta de ver o mundo e uma forma distinta de sociedade, não repressiva, sem vícios, que transformaria a vida dos pobres todos os dias. Isso não tem ocorrido. Neste caso, Kirchner tem sido melhor que Lula porque tem resistido em alguns níveis. A grande decepção é o PT brasileiro. (Com unidade) se aproveitariam as fortalezas de cada um e não as debilidades. Por isso é muito importante que a Venezuela e Chávez estejam aproveitando as fortalezas de Cuba, a estrutura social que têm criado, a saúde, educação, isso é algo que o Brasil poderia fazer também, mas não faz.
- Neste caso, fracassado o modelo neoliberal, os EUA tentarão propor uma versão mais suave para seguir com o modelo?
- Não acredito que estejam preparados para isso. Só farão isso se sentirem-se ameaçados e atualmente não estão. Eles não se sentem ameaçados porque existe um slogan idealista entre os movimentos sociais que diz: "Podemos mudar o mundo sem tomar o poder". Este slogan não ameaça a ninguém, é um slogan moral. Quando os zapatistas, os quais admiro, marcharam de Chiapas a Cidade do México, o que acreditavam que aconteceria? Nada aconteceu! Foi um símbolo moral, nem sequer uma vitória moral, porque não aconteceu nada. Ainda assim, creio que essa fase era compreensível na política da América Latina, onde o povo havia sofrido recentemente grandes golpes, como a derrota sandinista e dos movimentos armados, de modo que as pessoas se sentiam nervosas. Acredito, deste ponto de vista, que o exemplo venezuelano é o mais interessante, porque mostra que para mudar o mundo é preciso tomar o poder e começar a implementar mudanças, em pequenas doses se necessário, mas é necessário fazê-lo. Ao contrário, nada mudará. Essa é uma situação interessante e espero que em Porto Alegre, no Forum Social Mundial, do próximo ano, todas essas coisas sejam discutidas e debatidas.
- Se o movimento contra a globalização não aspira o poder, qual suas alternativas então?
- Não têm nenhuma alternativa. Eles crêem que é uma vantagem não ter. A meu ver, isso é um sinal de bancarrota política, Se não há alternativa, o que dirão às pessoas quando elas se mobilizarem? O MST no Brasil tem uma alternativa. Eles dizem: "tomar a terra e entregá-la aos camponeses pobres para que nela trabalhem". No entanto, a tese de John Holloway, sobre os zapatistas, é virtual, uma tese para o ciberespaço, mas vivemos em um mundo real, essa tese não vai funcionar. Portanto, para mim, o modelo do MST no Brasil é muito mais interessante do que o modelo dos zapatistas em Chiapas, muito mais...
- Nesse sentido, qual sua avaliação sobre o impasse entre os movimentos sociais e o governo no Brasil?
- Creio que o problema no Brasil é o seguinte: o PT captou as aspirações do povo, em especial dos pobres, mas não pode cumprir nada até agora. De fato, a repressão contra o MST no primeiro ano de Lula tem sido muito maior do que em qualquer ano do governo de Cardoso. Os latifundiários e a polícia têm assassinando e vitimizado a muitos militantes do MST. Isso não terminará bem. Isso acontece, a meu ver, porque o PT não se preparou seriamente para pensar sequer em uma alternativa real. Em público diziam: "sim, vamos dar terras aos sem-terra, faremos isso, aquilo", mas não estavam realmente preparados. Temo, porque Lula é um líder débil. Um líder débil que está tão emocionado de estar no poder que se esquece porque está no poder. O mesmo que aconteceu com Lech Walesa na Polônia, quando um grande movimento de massas Solidarnosc o lançou e finalmente o elegeu. O que cumpriu? Nada. E foi deposto pelo povo, em eleições. O mesmo acontecerá com Lula.
- Qual o desafio aos setores da esquerda brasileira que restaram, que não foram cooptados pelo governo?
- Penso que o que necessitamos é um movimento para refundar a esquerda brasileira. E este movimento deve incluir, falando em sentido amplo, àquelas pessoas dentro do PT, deputados, senadores e membros das bases, do MST e a capa de intelectuais socialistas, que atualmente estão muito desiludidos. Esses três componentes são muito importantes para refundar a esquerda brasileira. É uma besteira fazer isso só com algumas pessoas que renunciam e declaram "somos um novo partido". Para refundar a esquerda brasileira se necessita de um novo tipo de movimento e um partido distinto ao PT. As prioridades são diferentes. Hoje o grosso da classe trabalhadora brasileira, atualmente está no trabalho informal, que não era o caso quando foi fundado o PT. Há que se refundar uma esquerda que atente a estas novas prioridades e realidades do Brasil atual e não um retrato mitológico do passado. Antes das eleições no Brasil, estava em um festival em Ribeirão Preto e me perguntaram: "Se você fosse brasileiro por quem votaria ?". Respondi que votaria em Lula, ao lado da maioria dos pobres do Brasil, mas disse que minha grande preocupação era que Lula se esquecesse de quem havia votado nele e sucumbisse às políticas daqueles que não votaram por ele, como as do FMI, Banco Mundial e das instituições financeiras internacionais. Não votaram por Lula, mas suas políticas são as que se levam a cabo. As pessoas ficaram boquiabertas, mas foi o que aconteceu. Para mim, a relação entre Lula e Cardoso é a mesma que de (Tony) Blair e (Margareth) Thatcher. Blair emulo a Thatcher assim como Lula está emulando Cardoso. As duas histórias se mesclam, a qual é uma tragédia para o Brasil. Ao cabo de quatro, cinco anos, haverá uma desilusão massiva. Possivelmente a direita ganhará de novo e teremos que começar a luta desde o início.
- Os acordos de livre comércio são a estratégia para tomar o controle do continente com um novo nome para o chamado Consenso de Washington?
- Os EUA sempre atuam em função de seus próprios interesses e esses interesses são os de impedir que uma força regional emerja na América Latina sem a sua presença. Impedir que uma força regional surja no Oriente, entre China, Japão, Coréia, impedir que a Europa se converta em uma potência econômica e política . Os EUA só farão concessões à aqueles que atendam a seus interesses, desde que não se sinta ameaçado nem politica, nem economicamente. Até podem fazer algumas concessões, mas em geral preferem acordos bilaterais: "Negociem com nós. Negociem com nós mas não em coletivo e sim um a um, isso nos convém", essa tem sido sua política.
- O movimento antiglobalização é cauteloso com Chávez, por suas características populistas, por sua formação militar e ao que temem que poderá vir de um processo controlado de cima...
- Enquanto os pobres da Venezuela apoiarem este governo, ele sobreviverá. Quando retirarem seu apoio, cairá. Seria útil que o movimento antiglobalização - e há muitas correntes diferentes ali- viessem observar o que passa aqui. Qual é o problema? Venham aos bairros, vejam como é a vida das pessoas e como era antes que de este governo assumir o poder e não se deixam levar por estereótipos. Não se pode mudar o mundo sem tomar o poder, e esse é o exemplo da Venezuela. Chávez esta melhoramdo a vida de gente comum. Por isso é difícil derrubá-lo. Isso é algo que as pessoas do movimento antiglobalização deve entender, isto é política séria. Não tem importância simplesmente mudar de slogan, porque para gente comum, que o movimentro diz lutar em seu nome, é muito mais importante a educação gratuita, a saúde gratuita, a comida a preço baixo do que todos os slogans juntos.
- Qual sua avaliação sobre as mudanças promovidas pelo governo venezuelano?
- Acredito que necessita se fortalecer, ainda é débil. Creio que o movimento aqui precisa se institucionalizar em todos os níveis, a nível de pequenos povoados, de paróquias, e pode chegar a ser mais amplo, como em Círculos Bolivarianos, ou com qualquer outro nome, desde que se reúnam regularmente e que não sejam simplesmente algo dirigido de cima. Isso é muito importante porque Chávez é um homem fora do comum na América Latina, muito especial e jovem, pode viver muitos anos ainda, mesmo assim, deve criar instituições que perdurem e transcedam sua à presença no futuro do país.
- Porque o governo Chávez tem sofrido tantas pressões de Washington? Quais são os interesses em jogo?
- A Venezuela é um exemplo que os estadunidenses querem eliminar. Porque se existe esse exemplo e se fortalece cada vez mais, os povos do Brasil, Argentina, Ecuador, Chile, Bolivia, dirão: se os venezuelanos podem, nós também podemos. Desse ponto de vista, a Venezuela é um exemplo muito importante, por isso os EUA está tão alterado. Por isso invertem milhões de dólares para ajudar a estúpida oposição venezuelana, incapaz de oferecer uma alternativa real para as pessoas, sem contar com o que existia anteriormente: uma oliguarquia corrupta e servil. Isso é o que a Venezuela representa e acredito que uma debilidade é que até há pouco tempo a revolução bolivariana não ter feito mais pela América Latina, porque está sitiada a nível local. Creio que uma vez que Chávez, isso espero, ganhe o referendo e depois as eleições regionais em setembro, deve empreender uma grande ofensiva para o resto da América Latina. Dessa perspectiva, o modelo dos médicos cubanos é muito bom. É dizer que dentro de cinco anos regressaram venezuelanos de Cuba convertidos em médicos, e poderão ajudar tanto a seu próprio país como ir a outros ajudar nas favelas. São pequenas coisas, mas que no mundo em que vivemos são grandes coisas. Se há cinqüenta anos tivessem sido pequenas, hoje seriam grandes. Por isso temos que preservá-las e melhorá-las.
- Outro fenômeno são os meios de comunicação que têm um papel político especial no cenário venezuelano. Qual seria a saída para este descontrole midiático?
- O que faz falta na América Latina são meios de comunicação. Necessitamos de um canal satelital como a Al Jazeera (Oriente Médio), que podería se chamar "Al Bolívar". Faz falta alguém que reporte regularmente o que diz a direita, o que dizem os movimentos de esquerda, que diga o que quer o MST que desafia a Lula, mas de maneira independente, sem vincular-se a nenhum Estado. Este canal poderia ser muito importante para a América Latina em geral, para desafiar o mundo da BBC e da CNN, com um canal latinoamericano. Isso é para o próprio interesse dos argentinos, venezuelanos...
- Estamos há menos de um mês do referendo. Se Chávez ganhar o plebiscito a oposição seria capaz de adotar um discurso de que houve fraude por parte do governo para deslegitimar o resultado?
- Teremos que combater isso quando acontecer, mas acredito que é por isso que o processo deve ser transparente e penso que virão muitos observadores. Se isso acontecer o governo deve pasar diretamente para ofensiva e dizer que essa é uma clara vitória. Se quiserem caminhem por todo o país e falem com cada votante. O governo não deve andar na defensiva, têm que passar diretamente à ofensiva e dizer: "Isto aqui não é a Flórida". Em todo o caso, não se deve estar preocupado de maneira constante ou cair na paranóia. Se deve contar com o apoio e a fortaleza do povo. Se o povo vota por Chávez e ele ganha o referendo, haverá celebrações por todo o país e o fato será óbvio.
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