Esta não é a primeira vez, como se sabe, que o Brasil envia tropas para a Ilha Hispaniola, que o Haiti divide com a República Dominicana. Já fez isso em 1965, quando o general ditador Humberto Castelo Branco, também atendendo a um chamado do presidente dos Estados Unidos (no caso, Lyndon Johnson), enviou mais de mil soldados como integrantes de uma Força Internacional de Paz (FIP) liderada pelos generais brasileiros Hugo Panasco Alvim e Álvaro da Silva Braga.
Nos anos 60, como agora, os Estados Unidos orquestraram um golpe para derrubar um presidente livremente eleito. No caso dominicano, Juan Bosch, vencedor, em dezembro de 1962, das primeiras eleições livres no país após três décadas da ditadura sangrenta de Rafael Trujillo, permaneceu apenas sete meses no poder, durante os quais promulgou uma série de leis de distribuição da terra, reformas sociais e econômicas. Foi deposto por um golpe articulado pela CIA, que conduziu uma junta militar ao poder.
Essa sucessão de fatos levou à eclosão da guerra civil, em 24 de abril de 1965, quando militares partidários de Bosch iniciaram um levante para restituir-lhe o cargo. Sob o argumento de que se tratava de uma conspiração urdida por Fidel Castro, Johnson ordenou o desembarque de 30 mil fuzileiros navais no país. Para dar legitimidade à invasão, forçou a criação da FIP na OEA, com o entusiástico apoio da ditadura brasileira.
No caso atual, o ex-padre católico Jean Bertrand Aristide, adepto da Teologia da Libertação, venceu as primeiras eleições democráticas do Haiti, em 1990, com 67% dos votos; foi deposto por um golpe orquestrado por George Bush (pai), em setembro de 1991 e reconduzido ao poder, em 1994, com o apoio do então presidente estadunidense Bill Clinton, interessado, entre outras coisas, em conter a crise dos refugiados, quando milhares de haitianos desesperados tentavam entrar clandestinamente em Miami.
Vencido o mandato, em 1995, Aristide teve que esperar até 2000 para concorrer de novo ao cargo. Ganhou, novamente, em eleições conturbadas (seu partido, o Lavalas, obteve cerca de 80% dos votos), para de novo ser deposto, em fevereiro de 2004, por um golpe apoiado por tropas dos Estados Unidos e localmente liderado por gente como os torturadores Prosper Avril e Guy Philippe (treinado em base militar estadunidense no Equador e admirador confesso de Augusto Pinochet e Ronald Reagan). George Bush, como Lyndon Johnson há quatro décadas, quis legitimar a deposição do presidente eleito mediante o envio de uma “força de paz”. Convocou o Brasil para liderar o circo.
As razões de Castelo Branco, em 1965, eram claras. A ditadura queria provar sua utilidade a Washington, no jogo da Guerra Fria. Uma das primeiras medidas adotadas por Castelo Branco, nesse sentido, foi a ruptura das relações com Cuba, em 13 de maio de 1964, obtendo de Johnson, em troca, a aprovação para a concessão de empréstimos financeiros ao Brasil, interrompidos sob o governo João Goulart, em 1963.
As razões do governo Lula também são claras. Elas obedecem, no plano da política externa, à mesma lógica adotada no da economia: negociar posições com Washington, no quadro de uma fidelidade canina à estratégia global adotada pela Casa Branca. Lula mantém no horizonte o objetivo de conquistar para o Brasil um assento no Conselho de Segurança da ONU, e em nome disso mostra-se um parceiro tão confiável quanto os antigos ditadores. Mas a sua fidelidade não se limita “apenas” a gestos esporádicos em situações espetaculares.
O governo Lula acata, por exemplo, a política de militarização da “guerra ao narcoterrorismo” exigida ao Brasil, desde os anos 80, por Washington (posição sustentada, doutrinariamente, pela série Documentos de Santa Fé, síntese da perspectiva neoconservadora para a América Latina) e plenamente encampada pelo governo FHC. A guerra ao suposto “narcoterrorismo” legitima a presença de tropas estadunidenses na Amazônia (Plano Colômbia), e coloca tanto a Polícia Federal quanto as Forças Armadas do Brasil no encalço da guerrilha que resiste ao imperialismo.
Um relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos, divulgado em março de 2004, elogia as ações do governo Lula contra o “narcoterrorismo”. Cita a intensificação da “vigilância” das fronteiras por meios das operações Cobra (Colômbia, financiada por Washington), Vebra (Venezuela), Pebra (Peru) e Brabo (Bolívia) e intenção de ampliar a fiscalização para a Guiana, Suriname e a fronteira tríplice com Argentina e Paraguai.
Que o governo do PT aceite cumprir semelhante papel de guardião da Casa Branca, como aquele jogado pela ditadura militar, só prova, mais uma vez, a implacável força do complemento proposto pelo bom e velho Marx à observação criada por Hegel: a história se repete... como farsa.
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