“Sempre admirei pessoas que combinam teoria e prática. Henry Kissinger é um homem de elevado intelecto. E, inegavelmente, é um homem de ação. É um raro tipo de homem que pode, com sucesso, traduzir o pensamento estratégico em políticas públicas e medidas concretas. Sua grandiosa e importante produção acadêmica só encontra paralelo em sua contribuição para a formulação da política externa dos Estados Unidos, assim ajudando a mudar o mundo em que vivemos, especialmente nos anos 70. É, portanto, um grande prazer para mim ser um conferencista, nesta noite, no programa Henry Kissinger de palestras sobre política externa e relações internacionais.”
O conferencista que presta tão tocante homenagem ao grande homem é ninguém menos que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, durante uma palestra proferida em 23 de fevereiro, no centro John W. Kluge da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Ao assumir o microfone, FHC agradeceu a presença de Kissinger, por ele qualificado de “um velho amigo meu e de todos vocês”. A íntegra da palestra pode ser encontrada, em inglês, no site do Instituto Fernando Henrique Cardoso (<www.ifhc.org.br/theneed.htm> ).
A íntegra? Não exatamente. No texto oferecido ao público pelo próprio FHC você não encontrará a menção ao “velho amigo”, notam os redatores da revista eletrônica Carta Maior (<cartamaior.uol.com.br>
), edição de 3 de março. Em compensação, você pode ver e ouvir a saudação, no site do centro Kluge (<www.loc.gov/loc/kluge/kluge-cardoso.html>
).
“O velho amigo” foi responsável por alguma das maiores matanças produzidas nos anos da Guerra Fria (basta lembrar os horrores do Vietnã, Laos e Cambodja), e teme sair dos Estados Unidos, tantas são as acusações e pedidos de extradição para ser levado a julgamento como criminoso de guerra.
Isso, por si só, já seria suficiente para qualquer brasileiro sentir vergonha de ver um ex-presidente prestar-se a um papel tão infame. Mas a coisa fica realmente sórdida quando se recorda que durante a ditadura militar, FHC recorreu ao Chile de Salvador Allende, em busca de asilo. Foi bem recebido, como se sabe. E quem foi o mentor intelectual do golpe desferido por Augusto Pinochet, que resultou na morte de Allende? Ninguém menos que o “velho amigo”.
Talvez por isso, para não causar embaraços, o representante do centro Kluge, ao apresentar o palestrante, tenha se referido apenas de passagem aos anos de exílio de FHC, sem mencionar a incômoda palavrinha “Chile”. Ás vezes, a memória causa muito aborrecimento. FHC sabe disso: lembram quando ele pediu que todos esquecessem os seus escritos? Pois é. Não há limite para a iniqüidade.
Se a coisa parasse por aí, o escândalo já seria de bom tamanho. Mas o episódio apenas abre a tampa do bueiro. Deu no Financial Times, em 25 de fevereiro, como foi bem notado, na Carta Maior, por Marco Aurélio Weissheimer: FHC participa de um grupo de monitoramento da situação política da América Latina, com Carla Hills, mulher de confiança da família Bush e uma das principais articuladoras da Nafta (Associação de Livre Comércio da América do Norte). Uma das primeiras providências do tal grupo, com sede em Washington, foi encaminhar um relatório à Casa Branca para pedir uma “presença maior” dos Estados Unidos no hemisfério. O relatório cita, especificamente, o governo do presidente Hugo Chávez como exemplo “preocupante” de “desrespeito à democracia”. A “polarização política” na Venezuela, diz o velho amigo de Kissinger, ameaça produzir instabilidade em toda a região andina.
FHC e a torcida do Corinthians sabem perfeitamente bem da participação da CIA nas tentativas de golpe de Estado para derrubar Chávez; sabe também que o apelo à “presença maior” dos Estados Unidos abre uma avenida para uma eventual intervenção na América Latina, que, aliás, já está em curso na Amazônia colombiana e equatoriana; e sabe que, não fosse a heróica resistência de iraquianos e afegãos, a sanha intervencionista de George Bush teria produzido resultados ainda mais catastróficos no planeta. O que pretende, portanto, o “velho amigo” de Kissinger?
Não é absurdo supor que entra em seus cálculos cultivar as amizades certas em Washington, com o objetivo de facilitar o caminho para a disputa presidencial brasileira de 2006. Que tal criar um distanciamento entre a Casa Branca e o governo Lula, mostrando-se muito mais confiável do que o metalúrgico do ABC, que sequer fala inglês? Não que o presidente Luiz Inácio represente qualquer desafio, longe disso, como mostra a participação vassala brasileira no Haiti. Mas Lula mantém encontros mais ou menos cordiais com Chávez e acaba de anunciar um convênio comercial com a Venezuela; e ainda por cima comete o ultraje de se abster em votações organizadas pela ONU para condenar Cuba. Não é exatamente o perfil desejado por Bush.
Em visita ao Brasil, no final de março, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld cobrou publicamente, ao Planalto, um posicionamento mais duro contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e o congelamento das relações com Caracas. Humanista e pacifista sincero, Rumsfeld condenou o “terrorismo” das Farc e se disse preocupado com a aquisição, pela Venezuela, de cem mil fuzis AK-47 russos. Para quê a Venezuela precisa dessas armas, qual o objetivo de tanta violência, pergunta a nova versão de Gandhi. Alguém tem uma sugestão? Rumsfeld não conseguiu tudo o que queria, pelo menos por enquanto. O governo brasileiro recusou-se a qualificar as Farc como terroristas, e manteve o princípio de respeito à soberania nacional, isto é, de não ingerência nos assuntos internos de outros países. Decididamente, FHC é mais confiável.
O quadro, então, é esse. O “velho amigo” de Kissinger integra um “grupo de monitoramento” da América Latina e pede uma “presença maior” de Bush no hemisfério. FHC não apenas esqueceu tudo o que escreveu (não que tenha sido um Lênin ou coisa parecida, mas ao menos pretendia-se dotado de coluna vertebral), como apagou da memória os Allendes do passado, para não falar de professores como Florestan Fernandes.
Você convidaria esse sujeito para jantar em sua casa?
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