Novo presidente, Tabaré Vázquez assume no dia 1° de março com o desafio de construir um novo Uruguai. Para isso, aposta no fortalecimento dos laços com Brasil, Argentina, Venezuela e Cuba, com a constituição de um novo eixo de poder na região.
Quando o médico oncologista Tabaré Vazquez tomar posse como presidente do Uruguai, no dia 1° e março, estará se configurando com maior nitidez um novo mapa político na América Latina. Após cerca de três décadas caracterizadas pela hegemonia de governos militares e conservadores, alinhados com a política externa dos Estados Unidos, a região deslocou-se alguns graus para a esquerda. O tamanho e a natureza desse deslocamento ainda não são precisos, mas há algo diferente no ar.
Os governos de Tabaré Vazquez, no Uruguai, de Néstor Kirchner, na Argentina, de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, e de Hugo Chávez, na Venezuela, têm a oportunidade histórica de constituir um novo e potente eixo político e econômico no hemisfério sul. As diferenças de conjuntura e de projetos envolvendo estes governos não são insignificantes. Tampouco o são as afinidades entre eles, que podem dar um novo impulso a um projeto de integração regional, alternativo aquele proposto por Washington nos termos da proposta de criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
Os sinais desta possibilidade de mudança são cada vez mais visíveis. Assim que assumir, ainda no dia 1° de março, Tabaré Vazquez, vai reatar as relações diplomáticas com Cuba, rompidas em abril de 2002, depois de uma pesada troca de críticas e insultos por parte de representantes dos dois governos, em função do voto uruguaio, em Genebra, favorável ao envio de uma missão internacional para inspecionar a situação dos direitos humanos na ilha. A presença de Fidel Castro na posse de Vazquez pode ser confirmada nos próximos dias. A última vez que o líder cubano esteve em Montevidéu foi em 1995, quando foi convidado pelo então presidente Julio M. Sanguinetti. Outras presenças dadas como certas, em Montevidéu, são as de Lula, Kirchner e Chávez, além de outras lideranças da região. O presidente venezuelano já anunciou que aproveitará a ocasião para assinar um tratado especial de comércio com o Uruguai.
“Um país pequeno, quase um segredo”
Mas qual é exatamente o aporte que o novo governo uruguaio pode dar para o fortalecimento deste projeto de integração? Como disse recentemente, em Porto Alegre, o escritor Eduardo Galeano, o Uruguai é um país pequeno, quase um segredo. Segundo os números da primeira fase do censo, realizado em 2004, o país tem hoje uma população um pouco maior de 3 milhões de habitantes. O número exato é 3.240.676. As mulheres constituem 52% da população. Os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística revelam que, desde o censo de 1996, a população uruguaia aumentou em cerca de 77 mil pessoas, uma taxa de crescimento de 3,2 por mil, a mais baixa da América Latina. Outro dado importante do censo confirma a tendência da fuga de jovens. Desde 1996, cerca de 110 mil uruguaios deixaram o país, a maioria entre 20 e 40 anos. Com 13,4% de sua população acima dos 65 anos (cerca de 432 mil pessoas), o Uruguai é hoje o país mais envelhecido da América Latina e Caribe.
Na avaliação do Instituto Nacional de Estatística, a pronunciada queda no ritmo de crescimento da população uruguaia é resultado do comportamento das taxas de fecundidade, mortalidade e de migração. Os uruguaios que deixaram o país nos últimos oito anos têm entre 20 e 40 anos, com uma predominância de homens entre 25 e 29 anos e entre 35 e 39. Mas essa fuga do país, ainda segundo o instituto, atinge todas as idades, pois famílias inteiras estão tentando a sorte em outro país. Esse fenômeno afeta também a taxa de natalidade, uma vez que muitos homens e mulheres deixam o Uruguai no auge de sua capacidade reprodutora. A taxa de crescimento populacional de 3,2 por mil pessoas (ano) está muito abaixo da média da região, que é de 15 por mil.
Também é inferior àquela verificada em países industrializados (6 por mil, ou seja, seis novos habitantes para cada mil) e similar a da Espanha e do Japão (3 por mil). Estancar essa fuga de habitantes para o exterior é um dos desafios do governo Tabaré Vazquez. Para isso, entre outras coisas, o país precisa voltar a apresentar uma perspectiva de crescimento e desenvolvimento para sua população. Uma tarefa nada fácil, mas o novo presidente tem uma potente carta na manga: a coalizão de partidos que o apóia conseguiu eleger maioria no parlamento.
Para onde vai Tabaré?
Um “Novo Uruguai” é o que pedem os eleitores de uma das maiores vitórias eleitorais obtidas pela esquerda na América Latina. A afirmação não é um exagero, tendo em vista a rara conjugação de eleger o presidente e a maioria no Congresso. Médico oncologista, Tabaré Vazquez tornou-se uma figura pública no país a partir de sua atuação como tesoureiro da comissão que lutou para revogar a lei que anistiava os crimes cometidos por militares durante a ditadura. Mas não foi só o prestígio de médico de uma doença - o câncer - ,cujo nome os uruguaios têm até medo de pronunciar, que fizeram dele uma figura pública respeitada e admirada. Vázquez é autor de façanhas como a de conduzir para a primeira divisão do futebol uruguaio o Clube Progresso, na condição de dirigente de um time que só conhecia derrotas na segunda divisão.
Estes atributos, entre outros, fizeram com que sua auto-definição como marxista não tivesse grande impacto durante o processo eleitoral. Sua especialidade, aos olhos da população, é ser médico e não marxista. Tabaré contribui para o fortalecimento dessa condição. Ele não se dirige a seus militantes e apoiadores como camaradas ou companheiros e companheiras, mas sim como uruguaios e uruguaias. Com uma linguagem mais direta, ele foi se livrando da linguagem típica de esquerda, preocupado em ser entendido pela gente do povo, por donas de casas e trabalhadores, historicamente dispostos a dar mais audiência a blancos e colorados, que se revezavam no poder praticamente desde sempre.
Mas Tabaré fez bem mais do que ganhar a confiança e os votos de centro no espectro político uruguaio. Logo após as prévias que garantiram sua indicação como candidato presidencial da Frente Ampla - uma coalizão de partidos de esquerda e centro-esquerda -, ele incluiu em sua comitiva que visitaria os Estados Unidos e a Europa o economista e senador Danilo Astori, alguém com quem não tinha relações políticas desde as eleições de 1999 e de quem divergia sobre as propostas de reformas que permitiam a associação entre empresas públicas e setores privados.
Em uma audiência com o presidente do BID, Enrique Iglesias, Vázquez ouviu um não ao seu convite para que Iglesias fosse seu ministro da Economia, no caso de uma vitória eleitoral. Astori passou a ser, então, seu nome preferencial. Assim, bem antes da vitória de Vazquez, os uruguaios foram informados que o futuro ministro da Economia seria o ex-reitor da Faculdade de Ciências Econômicas, entre 1971 e 1973 (até o golpe de Estado), e ex-vice na chapa liderada pelo general Liber Seregni. Astori é um dirigente da Frente Ampla que fez uma adequação em seu pensamento econômico. Originário das fileiras do Partido Comunista uruguaio, é hoje um defensor enfático dos investimentos privados, dos cuidados com os equilíbrios macroeconômicos e da competitividade do mercado.
Inquietação com os rumos da economia
Essa adequação gerou inquietação entre muitos apoiadores de Vázquez. O discurso do futuro presidente acabou ficando parecido ao dos economistas dos partidos tradicionais, um filme bem conhecido no Brasil e em outros países onde a esquerda teve vitórias eleitorais desta magnitude. Para outros, isso não é tão simples assim uma vez que Vázquez não teria dado um cheque em branco para Astori e seu giro moderado. O novo presidente sabe que Astori representa um elemento de confiança no processo de transição e procurou sinalizar, à esquerda, com a nomeação de um ministério com figuras fortes dos diversos grupos partidários que compõem a Frente Ampla. Além disso, garantiu que seu governo terá uma especial sensibilidade para com os mais pobres, para o estímulo à produção nacional e para um tratamento transparente do patrimônio público. Mas a inquietação permanece.
O seu programa de governo tem políticas concretas nesta direção, mas outras orientações são consideradas muito vagas e pouco claras sobre os resultados efetivos que podem produzir. É o caso do anunciado Conselho de Economia Nacional, que pretende ser um espaço de debate público dos interesses nacionais, com efetiva influência na condução da política econômica. Ou dos conselhos de salários para encaminha negociações coletivas, vistos como capazes de desencadear fortes pressões empresariais, mesmo já tendo funcionado no fim dos anos 1980.
Entre os 17 grupos políticos que compõem a direção da Frente Ampla, um deles oferecerá especial resistência a Vázquez. O Movimento de Participação Popular (MPP), integrado pelo Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T) e outros grupos de esquerda, obteve nas eleições de 2004 mais votos sozinho do que todo o tradicional Partido Colorado. A clara estratégia socialista do MLN-T já produziu críticas duras aos governos da Frente Ampla que se sucedem na administração de Montevidéu. Em um de seus documentos é dito que o governo municipal “é excessivamente tecnocrático e autoritário” e que “não transfere a possibilidade de que a comunidade e os trabalhadores municipais possam decidir”.
O MLN-T não deverá renunciar a um patrimônio político de esquerda construído durante décadas, mesmo tendo o mítico guerrilheiro “Pepe” Mujica como ministro de Pecuária e Agricultura. Para os tupamaros, o novo governo precisa criar estruturas adequadas a um governo popular e não utilizar a velha estrutura montada por blancos e colorados. Mujica, agora ministro, foi o senador da República mais votado e constitui hoje a expressão política mais forte dos que querem construir um novo Uruguai.
Essas são algumas das contradições que Tabaré Vázquez deve enfrentar no início de seu governo. Contará com uma forte base de apoio em seus primeiro passos. No dia 5 de fevereiro, o futuro ministro da Economia, Danilo Astori, informou que os partidos políticos uruguaios firmarão um acordo para apoiar o programa econômico do novo governo. O senador do Partido Nacional (Blanco), Francisco Gallinal, um dos representantes da comissão de transição, explicou que esse apoio se dará em torno da proposta de retomar o crescimento da economia, priorizar o combate aos problemas sociais e elevar os níveis de emprego no país. Tabaré Vázquez sabe que, para chegar perto disso, precisará do apoio do Brasil, da Argentina e da Venezuela. O fortalecimento do Mercosul é uma de suas prioridades. No dia 1° de março, essa aliança terá uma oportunidade histórica de fortalecimento.
Agência Carta Maior
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