Antes da resposta, cabe outra pergunta: o governo do PT, com a prática que vem tendo, será capaz de bancar - no plano da realidade e não no da propaganda - o enfrentamento com os verdadeiros senhores da vida e da morte na Amazônia?
Mais uma pessoa lutadora e bem-intencionada tombou sob a ação dos bandidos e assassinos que controlam há pelo menos quatro décadas boa parte da Amazônia brasileira. Mais uma vez, os governantes prometem “apuração rigorosa” dos fatos. Mais uma vez, muito provavelmente, o mandante e mentor intelectual do crime ficará impune.
O governo do PT, ciente e cioso de seu papel de novo protagonista da história do país, parece disposto a interromper essa revoltante seqüência, repetição infinita de uma novela bem brasileira. Mas, será este governo, com a prática que vem tendo, capaz de bancar - no plano da realidade e não no da propaganda - esse enfrentamento com os verdadeiros senhores da vida e da morte na Amazônia?
Até agora não tem sido, e o terrível assassinato de Dorothy Stang tornou isso claro da pior maneira possível. Algumas análises, feitas no calor da hora por representantes do governo, afirmavam que o recrudescimento da ação assassina dos grileiros de terras públicas no Norte do país acontece como reação às tentativas federais de assumir o controle legal da região.
Nada mais falso. Infelizmente, em que pese o fato de que setores do governo estão conseguindo avançar em terrenos movediços como o trabalho escravo, por exemplo, o que existe entre os grileiros, madeireiros e outros bandidos da Amazônia é a sensação de um vazio de autoridade que precisa ser ocupado o quanto antes, uma vez que a esperada ofensiva do governo de esquerda, tão temida por eles, ainda é um rato que ruge.
O assassinato de Dorothy e o recente bloqueio de estradas por madeireiros no Pará revelam que as tentativas de implementação in loco de políticas agrárias e ambientais numa das áreas mais delicadas do país não ganham força, neutralizadas pelos acordos político-partidários feitos seja em Brasília, Manaus, Porto Velho ou Belém. Não adiantam os programas e projetos dos ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, se não existe a possibilidade prática de implementa-los.
Não adianta, por exemplo, ter no comando do Incra um nome como Rolf Hackbart _ que é honesto, identificado com a reforma agrária e defensor do desenvolvimento sustentável _ se na outra ponta da corda, lá na fiscalização em áreas de conflito e cobiçadas pela grilagem, existe corrupção e conivência de uma parte dos servidores do órgão. O mesmo raciocínio vale para Marcus Barros, presidente do Ibama.
Ou alguém acha que o governo vai conseguir alguma coisa nas áreas fundiária e ambiental antes de “limpar” esses órgãos? Para quem não sabe, uma das principais dificuldades da administração do Incra em retomar as terras griladas na Amazônia são as centenas de ações fraudulentas impetradas pelos invasores na Justiça, com a conivência da própria e dos técnicos do instituto. Como lutar com uma máquina que envolve há tantos anos tanta “gente importante”, até mesmo no Legislativo e no Judiciário? Como tirar de postos-chave servidores que têm sua manutenção pedida por caciques regionais de partidos aliados do PT, se o que parece importar mesmo nesse governo Lula é o pragmatismo das alianças? É uma tarefa hercúlea, e deve ter sido nisso que pensou no Fórum Mundial da Reforma Agrária, realizado em dezembro na Espanha, o ministro Miguel Rossetto (Desenvolvimento Agrário) quando disse a militantes da Via Campesina que “o PT conquistou a presidência, não o poder”.
Impunidade e falta de empenho
Outra falha grave dos governos estaduais e federal é não ter ainda revertido a realidade de impunidade para os assassinos que aterrorizam camponeses e ativistas nas áreas de conflito social. Nesse ponto, alguns governistas também tentam jogar a culpa no colo das administrações estaduais, mas existe responsabilidade também no plano federal. O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles (uma das gratas surpresas desse governo), vai pedir que as investigações sobre a morte de Dorothy sejam federalizadas. Ora, isso teria que acontecer com todos os casos de violência na Amazônia! Ou os cardeais do PT, na sua nova fase, passaram a considerar que o governo do Pará, só para ficar no pior exemplo, é confiável quando o assunto é empenho contra os matadores? A História diz que não, a lista dos casos impunes no estado é grande, vai de uma margem à outra do rio Guamá.
Nem a saída dos velhos coronéis mudou o quadro no Pará, onde até o “tucano de alta plumagem” Almir Gabriel manchou sua biografia com sangue ao deixar os matadores da Polícia Militar agirem livremente contra camponeses (Eldorado dos Carajás é o caso mais notório). O atual governador, Simão Jatene, parece seguir a linhagem. Dois dias antes do assassinato de Dorothy, o mandatário paraense se prestou ao papel de mensageiro dos madeireiros revoltosos, tendo ido à Brasília para levar algumas de suas reivindicações ao conhecimento do governo.
Se não encarar essas três realidades _ corrupção nos órgãos do governo, impunidade dos assassinos com a conivência das autoridades locais e boicote político, decorrente da “governabilidade” acertada em Brasília, a um real processo de mudança _ o governo Lula vai fracassar na tentativa de recuperar o controle legal da Amazônia. O deslocamento dos ministros Marina Silva (Meio Ambiente) e Nilmário Miranda (Secretaria de Direitos Humanos) para tratar da questão é motivo de esperança, pois ambos pertencem à banda boa desse governo. Mas, não seria mais uma “causa perdida” que os pragmáticos do Planalto estariam jogando no colo desses ministros? Se fossem budistas, o católico Nilmário e a evangélica Marina estariam seguros de estar queimando carma neste governo...
Mudança de atitude
Porque, se não houver vontade política vinda de Brasília, tudo será mera retórica de governo e Lula repetirá a (falta de) postura dos governos anteriores também neste terreno, o que é lamentável. A força-tarefa anunciada depois da morte de Dorothy parece importante, com o deslocamento de 90 novos fiscais do Incra e sete novas equipes da Polícia Federal para a região amazônica, além do aumento de seis para 19 no número de postos avançados do governo nas áreas de mais difícil acesso. Mas, vale lembrar que o envio de uma força-tarefa já havia sido anunciado depois do deplorável recuo frente aos madeireiros que bloquearam estradas no Pará. O mesmo aconteceu em Unaí (MG) e em outros casos de repercussão e significa uma solução apenas paliativa. É preciso mudança na atitude política.
Atitude que não houve na negociação com os madeireiros paraenses. Depois de afirmar que “correria muito sangue” nas cidades de Rondon e Novo Progresso se o governo não liberasse os planos de manejo que queriam, o presidente do Sindicato dos Madeireiros do Sudoeste do Pará, Luiz Carlos Tremonte, saiu cantando vitória após o recuo do governo. Foi esse estado de ânimo que, certamente, motivou a audácia da mão assassina contra Dorothy em Anapu.
A mesma Dorothy que havia cansado de alertar o governo sobre as ameaças que pairavam sobre ela e outros ativistas na região (esteve com Nilmário uma semana antes de ser morta) sem receber a devida atenção. Agora, como é praxe no Brasil, tenta-se colocar o cadeado na porta arrombada.
Para finalizar, quero registrar minha homenagem à essa freira norte-americana, naturalizada brasileira, que tinha sua alma tão ligada (e assim o será para sempre) à floresta amazônica. Quem chegou a conhecer Dorothy nas suas andanças e atividades de militância sabe que o interesse que ela sentia pela floresta e seus habitantes era fruto de um amor maior. Nada a ver com aqueles que querem esgotar a floresta em nome de um acúmulo capitalista ilegal e assassino e que não tiveram pudores em acertar à queima-roupa dois tiros na cabeça e um no abdome de uma senhora de 73 anos, tão frágil fisicamente.
É a mesma covardia que, quase diariamente, se abate sobre caboclos, indígenas, trabalhadores extrativistas, mulheres e crianças da Amazônia. Sentenças de morte como a de Dorothy serão assinadas a cada que vez que um governo que veio para mudar os desmandos na região abaixar a cabeça para criminosos.
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