Se há algo que o pontificado de Wojtyla cultivou, foi o medo. Menos pela personalidade do papa, que demonstrou coragem e determinação pessoal, sobretudo diante da morte; mais pela contínua conspiração vaticana, soturna e implacável, que sua personalidade midiática continuamente recobria. A análise é do colunista Flávio Aguiar.
A fé é o claustro da subjetividade: em seu espaço, dentro de cada indivíduo, só entra o próprio ego. Ai de quem desafiar este espaço: o ego ameaçado imediatamente demoniza
a alteridade, temeroso que é de sua própria alteridade, seja a da liberdade que pode conquistar modificando-se, seja o do retorno de tudo aquilo que teve de renegar para consolidar-se, e que muitas vezes retorna em momentos em que o indivíduo, como se diz, “perde a cabeça”, ou em linguagem jurídica, “é tomado de forte emoção”.
O ego que navega em seus espaços de fé, portanto, ainda que solitário, está acompanhado de seus apetites, mas sobretudo de seus medos. E se há algo que o pontificado de Wojtyla cultivou, regou, acolheu, adubou, foi o medo. Menos, talvez, pela personalidade do papa, que demonstrou possuir muita coragem e determinação pessoal, sobretudo diante da morte nos últimos dias de seu tempo terreno; mais pela contínua conspiração vaticana, soturna e implacável, que sua personalidade midiática continuamente recobria.
A construção do pontificado de Wojtyla antecipou a da presidência de George Bush, The Second. Como esta, aquela foi fruto de um golpe de Estado, cujo gatilho foi disparado com a morte súbita de João Paulo I. Se esta morte foi natural ou criminosa, só Deus, com certeza, sabe. O que é certo foi que a cúpula vaticana, que fora ameaçada em seus interesses e desinteresses pela eleição de um cardeal com espírito de frade franciscano, reagiu de modo fulminante, abrindo o caminho, num perplexo colégio de cardeais, para a escolha oposta, a de um conservador oriundo de uma das plagas onde vicejavam os brotos mais reacionários da Igreja Católica: o Leste Europeu. E este conservadorismo vinha embalsamado pela aura do martírio e da perseguição, graças ao fundamentalismo da burocracia de raiz soviética.
As aberturas da Igreja à sua face esquerda produziram os pontificados de João XXIII e de Paulo VI, abertos aos desafios de um mundo cujos paradigmas comportamentais, éticos e sociais passavam por desafios de monta, sobretudo aqueles emergentes na juventude, de unir a ética pessoal ao comportamento público.
A Igreja passou por uma descentralização benfazeja e substantiva, enfraquecendo o poder do papa. Mas numa hierarquia pesada como a sua, o resultado posterior dessa descentralização foi a escolha de um papa fraco e debilitado, que se enredou nas contradições e labirintos do poder, e a elas não resistiu, seja por incapacidade pessoal, seja por indução criminosa.
Seja lá por que razão ou caminho tenha sido, a maioria do Colégio de Cardeais entendeu a mensagem, e a resposta veio fulminante, com a escolha de um papa conservador, crescido numa igreja reacionária. Era alguém forte, personalista, que se colocou a serviço do restabelecimento da autoridade do papa, de Roma e sobretudo da cúpula vaticana. Numa palavra: medo. A ala esquerda da Igreja assistiu perplexa, aturdida, à desconstrução do seu espaço tão arduamente conquistado.
O medo é o sentimento hoje social e culturalmente dominante. O medo sustenta e dirige as políticas econômicas no mundo inteiro; o medo da guerra, seja ela a da política do império único, ou as guerras de ocupação, como no Oriente Médio, ou a guerra civil, ou ainda a guerra social como no Brasil, dirige as expectativas dos cidadãos, sejam eles abastados, remediados, pobres ou miseráveis. A solidariedade está em declínio como valor; abrir-se mão de uma prerrogativa é mais difícil do que um rico entrar no céu no cristianismo de antigamente.
O medo de perder a própria fé, inclusive a fé no próprio ego e nos limites da identidade, perpassa todas as opções. Basta olharmos para a nossa política para vermos os efeitos devastadores dessa cultura do medo, que se não venceu, tolheu a esperança, podou-a: todo mundo se aferra aos próprios ditames e foge à verdadeira negociação. Negociam-se cargos e princípios, mas não o que de fato interessa: políticas. Concluída a acomodação dos egos comprimidos pelo medo, cada um, de acordo com a faixa de poder que detenha, segue o seu caminho.
E a opção de Wojtyla foi a de dialogar com o medo. Exerceu com mão de ferro o direito e o dever contraído na construção de seu mandato, de domar, punir e excluir as oposições internas. Promoveu onde pôde as direitas católicas, como a Opus Dei, e espezinhou como quis as esquerdas. Não as destruiu, porque isso já era impossível e mesmo impensável num mundo tão variegado como o de hoje.
Uma obviedade dessa política foi o retalhamento da diocese de São Paulo, sob os cuidados de D. Evaristo Arns, para possibilitar o melhor controle conservador sobre a região. Em exemplos já lembrados na imprensa por esses dias, Ernesto Cardenal foi publicamente repreendido; Leonardo Boff foi calado; D. Pedro Casaldáliga foi punido e quase escorraçado de sua prelazia; o bispo Romero foi esquecido; Escrivá, o fundador da Opus Dei, beatificado.
O papa voltou a infundir o medo ao sexo. A conquista das gerações revolucionárias de meados do século XX, renegando a hipocrisia de seus pais e avós culturais, que pregavam uma moral dentro de casa e praticavam outra no bordel, se viu relegada à condição de ser uma perversidade punida pela aids, como nos velhos tempos bíblicos de Sodoma e Gomorra. A palavra de Cristo, acolhedora nos evangelhos da adúltera e da concubina, foi deixada de lado, em favor de uma visão fundamentalista do credo na tradição que vê no sexo ainda a razão, ou o resultado, da perda do paraíso terreno.
O cristianismo evangélico (dos evangelhos, não o das religiões pós-modernas) tem duas fontes de inspiração e construção: a profética e a messiânica. A profética se enraíza na inspiração de que a descrição da vinda e vida terrena de Cristo deve realizar a palavra e as metáforas dos profetas do Velho Testamento. Por isso, por exemplo, é que João Batista diz que Cristo é o cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo: tal expressão está contida nas palavras de Isaías (Ver João, 1: 29-34; e Isaías, 53: 6 e seguintes).
A messiânica vem da inspiração de que essa descrição da primeira vinda do Messias deve preparar então os corações e as mentes dos fiéis e conversos para a segunda vinda, a definitiva, implantando no tempo terreno a sementes do não-tempo do paraíso ou infernos finais. É por isto que na tradição Cristo diz para se dar a César o que dele é, e a Deus o que lhe pertença: ele veio abrir o caminho neste mundo para a restauração de um reino que na verdade não é deste, mas do outro.
Esse aparente dilaceramento abriu caminho para uma verdadeira dicotomia nas igrejas e movimentos cristãos subseqüentes, que tendem a abrigar em si uma vertente profética, digamos, mais progressista, e outra messiânica, mais conservadora. Ao contrário do que se pensa vulgarmente, a função profética é menos a de prever e mais a de advertir. Diz o profeta: “olhem, se as coisas continuarem como estão, vejam o tamanho do buraco em que vamos cair”.
Como usualmente quase ninguém ouve o profeta, a sua advertência se torna previsão: cai-se no buraco. Portanto as missões proféticas têm uma nítida inclinação reformadora, senão revolucionária, como em muitas passagens de Isaías, por exemplo, e mesmo do próprio Cristo.
Já a missão messiânica tem em geral uma inclinação restauradora e outra autoritária, pois se trata de restaurar a imagem de um reino cuja visão se perdeu e ao mesmo tempo de reafirmar peremptoriamente a autoridade de quem anuncia este verdadeiro reino simultaneamente passado e futuro neste tempo terreno, tolhendo todos os outros caminhos e possibilidades. No Brasil, por exemplo, o MST abriga ambas as tendências, mas mais a profética do que a messiânica, até porque nele não há messias nem candidato a tal.
Pois a função deste pontificado, “o código Wojtyla”, bem adequado a este tempo de best-sellers, fulgurâncias de mercado e literatura de aeroporto (que tem inegavelmente o direito de existir, divertir e distrair), foi bem mais messiânica do que profética, ao contrário do pontificado de Paulo VI e sobretudo de João XXIII.
Como tal, foi uma função conservadora, de reinstaurar o medo à liberdade e de deixar solta a liberdade do medo nos muitos egos do mundo.
Isto não quer dizer que o seu pontificado seja completamente destituído de predicados ao olhar humanista, seja ele laico ou religioso. Seu pontificado não se acovardou, como o de Pio XII; medo e covardia são coisas distintas, ainda que esta possa ter raiz naquele.
A cúpula vaticana pode acovardar e se acovardar; mas não era essa a têmpera de Wojtyla, crescido num país espezinhado por vários impérios, desde os tempos dos czares e dos prussianos e depois pelo nazista e pelo soviético. O conservadorismo para ele era uma espinha dorsal, não uma retórica qualquer. Como tal, fez críticas poderosas ao neoliberalismo e à política de guerra do império norte-americano, por exemplo.
Entretanto, o cristianismo católico sai de seu pontificado singularmente cindido. Seu tolhimento a ousadias de pensamento e práxis deslocou a melhor teologia, a melhor reflexão católica do seminário para a universidade, ou para um espaço intermédio entre ambas. Cresce cada vez mais uma curiosa “teologia laica”, pouco temente à instituição e à hierarquia religiosas, cuja manifestação mais ousada foi a realização do 1o. Fórum Mundial de Teologia e Libertação, em espaço anexo ao do 5º Fórum Social Mundial, em janeiro de 2005, em Porto Alegre, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
É a semente de um espaço alternativo, confirmando que mesmo nos campos intermediários entre este mundo terreno e os vislumbres dos espaços infinitos da criação e recriação também há lugar para todas as dissensos libertadores.
Pois bem, não queria terminar estas observações sem ressaltar que uma coisa é julgar o pontificado e seu significado histórico, outra é encarar o homem Wojtyla e seu destino também histórico. Do pontificado já se falou. Quanto ao homem Wojtyla, ele deixa, ao lado da mensagem conservadora de seu reinado, uma imagem de alguém que foi sempre coerente ao extremo com os princípios que o animaram. Isto, neste tempo de fantoches e simulacros, não é pouco, e deve, para todos, ser motivo de ilustração e ensinamento.
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