O enfrentamento, entre o jogador argentino Desábato e o brasileiro Grafite, expôs uma cicatriz de origem de nossas sociedades nacionais latino-americanas que não podemos nem devemos renegar, mas que devemos conhecer, reconhecer, para poder, talvez, superar.
As recentes discussões sobre racismo em nossa região sul-americana puseram em pauta não mais apenas como ele se formou nas diferentes nações emergentes da derrocada dos impérios europeus, mas como se formou entre elas. O enfrentamento, entre o jogador argentino Desábato e o brasileiro Grafite, expôs essa cicatriz de origem que faz parte dos processos de formação das sociedades nacionais que não podemos nem devemos renegar, mas que devemos conhecer, reconhecer, para poder, talvez, superar.
Esses enfrentamentos raciais, que formariam as fronteiras começaram, no caso da região platina, no século XVIII. Curiosamente, não envolveram os índios, que não eram considerados nessa altura raça “inferior”, só uma “gente condenada”, anticristã, selvagem. Isso não melhorou o seu destino, que fique claro. Mas o motivo não era racial, era “civilizatório” e era “imperial”.
Não podia alegar o motivo “cristão”, pois o cristianismo se dividiu: os superiores da ordem dos Jesuítas, a Companhia de Jesus, se colocaram, por interesses políticos europeus, do lado dos impérios, mas houve padres que generosamente lutaram ao lado dos guaranis, como o padre Balda, personagem do poema Uraguai, de Basílio da Gama, publicado em 1769.
Raízes raciais começaram a aparecer diante das disputas de fronteiras das nações novas que emergiam das contradições das sociedades coloniais. Os espanhóis, nas terras planas de Buenos Aires e dos campos orientais do Uruguai, exerceram uma política implacável de eliminação dos indígenas e limitadora da presença dos negros nas sociedades em formação.
Os portugueses levavam sua política de utilização dirigida de todos os povos que dominavam. Formaram batalhões de guerreiros negros, escravos ou ex-escravos, para combater nas lutas de fronteira.
Tal fato foi registrado por poeta-soldado “castelhano”, cujo nome não se preservou, diante das escaramuças constantes provocados sob a liderança luso-e-já-brasileira do caudilho Rafael Pinto Bandeira:
“Pinto Bandeyras llamado
Era en efecto este tal
Fidalgo de Portugal
Y era Coronel Graduado:
Lleva siempre a su lado
Segun voces diferentes
Horror de negros valientes
Que el temor no conocían,
Mas por Dios que no querían
Hacerse nunca presentes”.
Eis aí: guerreiros bravos, respeitados, temidos, mas que de alguma forma, por algum motivo, não queriam mostrar-se, “hacerse nunca presentes”. Erro de sentido? Cumprimento de olhares de condição e raça...
Nas terras da futura Argentina, sobretudo em Buenos Aires e seus arredores, houve uma sistemática política de extermínio, promovida pelos “unitários” vitoriosos, em relação a índios, gaúchos”, mestiços e por fim a negros, e muitos destes começaram a fugir para o Uruguai e o Brasil.
Nas terras do Uruguai a presença negra foi mais duradoura, e formou um bairro próprio em Montevidéu, o de Palermo. Até hoje o carnaval de Montevidéu aí começa, com os batuques fortes ressoando em tambores e tamborins. Um dos grandes heróis uruguaios, hoje pouco conhecido nestas plagas, foi o negro Aguiar, que acompanhou Garibaldi e Anita em sua volta à Itália, e lá morreu na resistência da República Romana, em 1849, contra o poder papal, as monarquias européias e a presença das tropas francesas de Napoleão III.
No Brasil houve uma complicação dos problemas com a Revolução Farroupilha, que de 1835 a 1845 proclamou uma Republica independente e formou corpos de cavalarianos conhecidos como os Lanceiros Libertos ou Lanceiros Negros, que durante os dez anos da guerra, como os de Pinto Bandeira, foram “o terror” dos inimigos. A paz de Ponche Verde (e disso tratarei em outro artigo sobre nossa tradição republicana) enviou boa parte dos remanescentes desses corpos para as lutas no Prata, onde se reforçou a “temida” presença dos negros.
A Guerra do Paraguai (1865 - 1870) encontrou um terreno propício para manifestações racistas. O Brasil, pego de surpresa, exceto pelo Rio Grande do Sul, onde a mobilização militar era constante e quotidiana, mobilizou os “voluntários da pátria”, isto é, escravos a quem a liberdade era prometida, caso lutassem na guerra, afinal inglória. Os batalhões “paraguais”, como se dizia na época, eram formados por mestiços de índios guaranis ou de guaranis mesmo; não havia negros.
Foram os militares paraguaios que começaram a chamar os brasileiros de “macacos”, ou de “macaquitos”. Nas rivalidades entre os militares argentinos e brasileiros, aqueles adotaram alegremente o ápodo em relação a seus aliados, até porque a oficialidade portenha se injuriou diante do fato de que a guerra realmente só se decidiu com a concessão do comando geral das operações ao Duque de Caxias.
Daí a Desábato insultar Grafite é só um século e meio de distância e o deslocamento das rivalidades da guerra para o estádio de futebol, agora visto como o campo de batalha, como a sociedade, da auto-sobrevivência a qualquer preço. Porque o objetivo do jogador insultante não era o de ser racista, ainda que o insulto fosse, mas o de obter a reação e a expulsão do adversário, coisa que conseguiu.
Várias manifestações deram conta de que jogadores brasileiros negros que jogam em times na Argentina não têm qualquer dificuldade dentro ou fora do campo. Isso é compreensível, pois o ser “negro”, como depreciativo, está associado a ser do “país rival”, ou “inimigo”. Basta a gente lembrar que durante século e meio, depois da Guerra do Paraguai, Brasil e Argentina prepararam-se pare a guerra mútua, até a loucura da disputa nuclear, hoje felizmente algo afastada.
Do lado dos países amigos pairam problemas específicos complicados. A distância entre campo e cidade na Argentina e no Uruguai é muito maior do que aquela que tradicionalmente existiu no Brasil. Nós nos formamos um país muito mais caboclo nas cidades, do que nos vizinhos, a não ser no Paraguai, que foi mais diretamente guarani.
Buenos Aires e Montevidéu foram cidades onde em determinadas épocas o número de imigrantes europeus superava os de habitantes autóctones, e não em pouco. Isso nunca aconteceu sequer em cidades como São Paulo, onde a imigração foi massiva no começo do século XX.
No Brasil hoje a imagem do caboclo, mistura das três etnias e culturas formadoras da nação, está em declínio como fonte de identidade nacional e regional, graças a transformações dramáticas introduzidas na nossa sociedade pelo avanço do agribusiness, e pela ampliação brutal dos espaços urbanos como fonte de confrontos entre excluídos, pobres, remediados e ricos. A resultante não é promissora. Ficamos cada um e cada uma entregue aos fantasmas de nossas origens particulares, isolados em nossos nichos individuais ou grupais. Isso é que deu margem à multiplicação dos prefixos de identificação neste nosso Brasil.
O grupo mais em evidência no país em urbanização galopante é o dos “afro-brasileiros”, ou “afro-descendentes”; mas proliferam também os “ítalo-brasileiros”, os “teuto-brasileiros”, além de que, no nosso mundo da globalização conservadora, tornou-se motivo de orgulho, de prestígio, senão de necessidade, para um brasileiro, ir atrás de um passaporte europeu para si e para a família. Confesso que nunca vi brasileiros disputando, avidamente, passaportes angolanos, senegaleses ou moçambicanos.
O racismo está sendo combatido com mais vigor, como demonstra o caso que teve por teatro o estádio do Morumbi. Mas acontece que ele está sutilmente mudando de lugar e de natureza. A questão racial brasileira está se deslocando na geografia e se tornando mais “norte-americana”, cercada por políticas compensatórias, sem termos a mesma história daquele país. Por outro lado, está havendo uma sutil lavagem de responsabilidade, uma vez que daqui por diante o combate ao racismo histórico das nossas sociedades passa a ser uma “coisa de governo”.
No mundo do individualismo feroz em que mergulhamos, eu posso lavar as minhas mãos e ir cuidar da minha “diferença”, ou particularidade, e lutar para subir ou não descer socialmente a qualquer preço: o governo que se encarregue do racismo através da compensação. “Eu” não tenho nada com isso, a não ser considerar se a compensação me favorece ou me atrapalhe. Caso favoreça, luto por ela; caso atrapalhe, entro na justiça para garantir os “meus direitos”.
A escravidão introduzida pelos sistemas coloniais nas Américas nos deixou com uma dívida histórica universal. Cabe a nós carrega-la, elabora-la, e impedir a sua reprodução nas gerações futuras, e não absolve-la, transformando-a apenas numa espécie de conta-poupança compensatória destinada a satisfazer o impulso emergente das gerações presentes. O gesto de Desábato foi responsabilidade dele também. Condenável, ele não pode tornar-se o bode expiatório do problema coletivo.
Naquele estádio presenciou-se o capítulo agônico e patético de um drama secular, aliado à quebra completa de solidariedade entre colegas profissionais, ainda que momentaneamente adversários, o que faz que dentro da panela de pressão que é um jogo de futebol liberem-se todos os demônios possíveis em nome da auto-defesa. Tanto é assim que acredito piamente que o jogador argentino não tenha até hoje compreendido a natureza do crime que cometeu.
Mas o importante é também compreendermos que todas as relações sociais passam a ser encaradas dessa forma, passíveis de ser tratadas com todos os demônios liberados. Daí que num país como o nosso, com a formação misturada que tivemos, alguém disputar uma vaga pelo sistema de quotas sem merece-lo seja algo visto também como “natural”, e não como um crime igualmente racista, ou pelo menos uma contravenção, algo como furar a fila graças a um novo pistolão: a cor da pele, o formato do cabelo, etc.
A consideração, o julgamento e o combate ao racismo estão vendo declinar a dimensão ética que já tiveram, para se tornar uma questão prioritariamente de “oportunidade”. Se a política compensatória abre as portas do futuro, é uma incógnita, pois não sabemos de que futuro ela abre a porta, e isso vai depender menos dela e mais das políticas que lhe servirão de moldura: a educacional, a econômica e a cultural. Por exemplo: a política de quotas no ensino superior pode tanto “amorenar” nossas universidades, o que seria interessante, como “branquear” o espírito de quem “subir na vida” graças a ela, esquecendo-se da solidariedade com os “de baixo”. Do jeito que as coisas estão planteadas, é mais provável que aconteça a segunda hipótese, e que a primeira se transforme apenas num detalhe da paisagem, uma vez que nosso ensino superior vai perdendo a olhos vistos seu espírito público graças à sua crescente privatização em verbas e mentalidades.
É verdade que a política compensatória traz para o primeiro plano uma discussão que nele nunca esteve de fato. Mas é certo que fecha as portas do passado, ou pelo menos o blinda com um vidro à prova de outras considerações. O problema não está só “encaminhado”; ele está “resolvido”, e agora cada um que se vire.
De qualquer modo continuamos a ser um país caboclo. Basta nos despirmos da miragem norte-americana, ou européia, para percebe-lo. Nossa política compensatória de futuro transformador é a do combate à miséria, à pobreza, à ignorância, através da escola pública. Se houver quota no ensino superior, que haja para egressos da escola pública, e que nela tenham feito toda a sua formação.
Também é a do combate à desigualdade econômica, bem como ao esquecimento da história. Nosso combate também é o de abandonarmos a perspectiva litorânea com que nossas classes dirigentes se formaram e de que continuam padecendo. Antigamente a linha costeira do Brasil era vista como pontilhada de portos por onde chegavam as benesses da civilização e de onde partiam para ela os navios com quem lá podia ir.
Hoje uma linha pontilhada (só que dupla) continua a obsedar as classes dirigentes: são as luminárias das pistas de aeroporto de onde partem os vôos noturnos para o hemisfério norte. Nosso combate é o de intensificar a proximidade, o conhecimento, a integração educacional e o conhecimento cultural com nossos povos fronteiriços e outros da América Latina e da África. Pensar que o Brasil terá uma alternativa descolada de sua realidade regional é delírio de quem só pensa em seu negócio exportador ou importador, e assim mesmo só no curto prazo.
Com isso poderemos de fato solapar as raízes que levaram ao triste episódio do Morumbi. Um jogo entre Brasil e Argentina é impensável sem rivalidades acaloradas ou palavrões; aliás, qualquer jogo de futebol ou coletivo, profissional ou amador, o é. Mas assim estaremos de fato dando um passo para nos libertarmos dos atavismos do passado, sem esquecê-lo, ou, no fundo, absolvermo-nos dele.
Agencia Carta Maior
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