A América Latina está se tornando o espaço diversificado e protagonista da retomada histórica do compromisso e dos valores solidários do socialismo. Não há, é claro, uma revolução socialista em curso nos Andes; mas caminha-se nessa direção.
A rodada em Caracas do 6º Fórum Social Mundial demonstrou que um outro socialismo não só é necessário, e já, como também é possível. As experiências latino-americanas põem na ordem do dia um socialismo que inclua princípios republicanos e democráticos.
Cada edição do Fórum Social Mundial continua o processo por ele aberto, e ao mesmo tempo traz uma marca inconfundível. Em 2001, em Porto Alegre, foi a descoberta de “não estarmos sós”, na oposição ao Consenso de Washington e como alternativa ao Fórum Econômico de Davos. Em 2002, foi o desafio direto a Davos, inclusive com o diálogo aberto com representantes do encontro na cidade suíça. Em 2003, o Fórum deixou de ser uma alternativa ao outro encontro, e passou a delinear um rumo próprio, tendo como eixo a oposição à guerra, à iminente invasão do Iraque (sem sucesso), e a busca de uma cultura da paz. Em 2004, na Índia, a exclusão social (com a presença dramática dos dalits, os “intocáveis”) veio à tona como marca específica. Em 2005, em Porto Alegre novamente, cresceu o espaço da discussão política e sobre poder, no Fórum. Lançou-se o “Manifesto de Porto Alegre”, com consignas mínimas para orientar uma ação internacional.
Desta vez, no Fórum Policêntrico começado em Bamako e continuado em Caracas, ficou evidente o retorno do socialismo como tema central (também, entre outros) das discussões. Trata-se de um socialismo cujas definições, ao lado da retomada de seus princípios fundamentais de solidariedade e espírito coletivo, ainda estão em debate. Não há, é claro, uma revolução socialista em curso nos Andes; mas caminha-se nessa direção.
E nesta comarca cultural fortemente marcada pela presença indígena remanescente há, sim, uma revolução republicana e democrática que ao mesmo tempo aflora e se enraíza, e que com certeza, ao se demonstrar consistente, poderá ser uma base segura para se retomarem experiências socialistas ou socializantes com ingredientes inovadores. Essa inovação deriva daquilo que – de modo compreensível, mas nem por isso menos trágico – faltou às experiências socialistas do século XX. De repúblicas e democráticas, elas acabaram tendo só o nome, em que pesem as conquistas extraordinárias de seus povos. O socialismo do século XX não conseguiu integrar avanço social, planejamento econômico, com liberdade e democracia, e por isso ruiu na maioria dos países em que se implantou, depois de reproduzir muitas vezes as piores qualidades autoritárias das sociedades em que ele medrou.
Agora a América Latina está se tornando o espaço diversificado e protagonista da retomada histórica do compromisso e dos valores solidários do socialismo. Este é diversificado como diversas são as experiências à esquerda trabalhada em diferentes ritmos no Brasil, no Uruguai, no Chile, na Argentina, na Venezuela e na Bolívia, onde há governos que emergiram da história de lutas de seus movimentos sociais e dos partidos ou movimentos que os exprimem. Em breve se esperam impactos semelhantes no Peru, no Equador e no México. Cuba continua seu rumo tão problemático quanto emblemático e admirável. A esquerda mundial está de olho nas Américas.
Mas não se trata apenas de experiências governamentais, mais ou menos dramáticas, mais ou menos problemáticas. Há um “alevantamento” generalizado dos povos na região, cuja direita se põe cada vez mais assustada e decidida a susta-lo, como no Brasil, onde os episódios das CPIs, e a campanha conservadora na mídia, reeditam, mutatis mutandis, os sinistros momentos da famigerada “República do Galeão”, quando da queda e do suicídio de Vargas em 1954. Esse “alevantamento” está pondo fim, na comarca andina, ao legado do sistema colonial, numa revolução que as oligarquias locais jamais empreenderam e cujo alcance até hoje lhes escapa de todo, como escapa à da Venezuela, cujas passeatas são recheadas por dólares do governo norte-americano e por bandeiras dos Estados Unidos, numa reedição grotesca e anacrônica dos tempos da Guerra Fria.
É neste contexto, entre polêmicas e controvérsias sobre seus limites políticos, que o Fórum retomou a bandeira socialista e a discussão sobre o socialismo do século XXI. Também retomou a discussão, aprofundada em Porto Alegre em 2005, sobre a necessidade de se debruçar sobre a questão do poder para transformar o mundo. As polêmicas, que antes se davam entre “ongueiros” e “partidistas”, eclodiram neste 6o. Fórum sobre a forma de se ele deveria promover lutas concretas, ainda que genéricas, ou se deveria permanecer apenas como um espaço de discussão.
Se estas polêmicas dividiram as cúpulas, a militância que acorre ao Fórum decidiu a parada, assumindo o comportamento (que alguns líderes assumiram também) de que o Fórum deva permanecer sem votações, sem estabelecimento de maiorias e minorias, sem se transformar, em suma, numa Quinta Internacional partidária. E ao lado deste o de que nada impede, por outro lado, que correntes de pensamento se reúnam no espaço de Fórum e lancem suas campanhas e manifestos, como o que surgiu em Porto Alegre, em 2005, e em Bamako, em 2006 (lançado antes da abertura do Fórum), conclamando uma luta anti-imperialista.
Neste sentido, o Fórum está de fato redefinindo as bases de um outro socialismo possível, baseado no pluralismo, no reconhecimento das diferenças e da importância central de todas as lutas contra as desigualdades, tanto as de classes quanto as baseadas em sexo, etnia, cultura, ou outras formas de discriminação.
E o Fórum continua sendo também o espaço da festa. Não há revolução nem transformação sem festa. Um dos dramas do socialismo do século XXI foi ter se tornado velhoto, sem alegria, rompendo relações com a juventude, eternizando-se em ditaduras intermináveis e cinzentas, marcadas ao longo do tempo mais por desfiles militares do que pelo estro da transformação. O Fórum é o contrário desse envelhecimento precoce.
Nele há espaço para tudo. Tudo? Tudo! Estávamos alocados – o estúdio e a equipe de TV da Carta Maior – nos amplos espaços do Centro Cultural (mais que um Teatro, embora assim se chame) Teresa Carreño. No saguão do andar térreo apresentavam-se grupos musicais de todos os tipos, em meio à multidão que tudo acompanhava ardorosamente.
A certa altura entrou um grupo Hare Krishna, com seu ar compenetrado, e a modéstia (diante da exuberância dos outros grupos) de seus cantos monocórdicos, seus plim-plim, tóim-tóim e dong-dong. Mas a multidão foi se concentrando ao redor deles, e entoando junto o canto monótono, que logo passou a pluritonal; a percussão começou a entrar num novo ritmo, a multidão foi gritando cada vez mais alto, os Hare-Krishnas desandaram num ritmo frenético de pulos cada vez mais altos, pareciam querer voar com aquela massa humana desenfreada que pulava e gritava, todos subitamente convertidos não a uma fé única e implacável, mas àquele canto da confraternização improvisada e inovadora.
Alienação? Uma ova. Festa, isto sim. Foi daí que comecei a pensar nesta carta: se um outro Hare-Krishna (assim como qualquer religião) é possível, por que não um outro socialismo, cuja travessia, afinal, se dá neste nosso vale de risos e lágrimas?
Retomo como afirmação pergunta feita por Marco Aurélio Weissheimer, em artigo publicado tempos atrás: “Um outro socialismo é possível?”
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